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O Coruja/III/XXV

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Que mais podia desejar?

Aos quarenta e tantos anos havia já percorrido a enorme gama das classes sociais e experimentado, uma por urna, toda a impressão capaz de fazer vibrar o coração humano. Desde os seus primeiros tempos de colégio até aquela elevada posição a que chegara, sua vida fora uma série de conquistas fáceis, uma interminável cadeia de bons acasos.

Mas agora justamente que mais nada lhe faltava a conquistar; agora que ele, dispondo ainda de uns restos de mocidade para ser amado como homem, era já celebrizado como medalhão; agora que ele possuía tudo; agora que todas as classes do seu país haviam já lhe tributado a melhor parte do seu entusiasmo; agora é que ele se sentia menos satisfeito, porque, à medida que se alargavam os horizontes da sua ambição tanto mais a consciência da sua mediocridade o estreitava em um terrível círculo de inconsoláveis desgostos.

Pouco a pouco foi-se tornando invejoso. Afinal já não podia ouvir falar dos homens verdadeiramente grandes, sem ficar com o coração apertado por um punho de ferro que o estrangulava. As grandes e legítimas reputações, os nomes universais, fossem de artistas, de poetas, de descobridores, de filósofos ou de guerreiros, o irritavam acerbamente e enchiam-no de um ódio surdo, inconfessável e assassino.

Principalmente ao voltar dos seus relativos triunfos, quando no círculo mesquinho das suas glórias ouvia o próprio nome aclamado e coberto de ovações, é que mais desabrida lhe roncavam por dentro a dor da inveja e a consciência da sua incapacidade.

— Oh antes nunca chegasse a ser nada, nem tivesse pensado em ser alguma coisa!

Ser tão pouco, quando tanto se ambiciona; ambicionar tanto e ter certeza de nunca ir além da própria pequenez, é muito mais doloroso, é muito mais cruel do que ficar eternamente sucumbido ao peso da primeira desilusão!

Era isto que agora o fazia mau de todo; era isto o que agora o tornava infeliz, desconsolado e triste.

Nunca houvera penetrado dentro de si mesmo e, quando, graças à franqueza da esposa, o fizera pela primeira vez, achou-se tão vazio e tão ridículo aos próprios olhos, achou-se tão de gesso, que sentiu ímpetos de reduzir-se a pó.

E, com o correr de mais algum tempo e com a percepção da sua inferioridade, veio-lhe o tédio, o desprezo próprio, a grande moléstia dos que sobem na convicção e sem causa; veio-lhe o desfalecimento dos que vencem sem ter lutado, dos que olham para trás e não encontram no passado sequer uma boa recordação, à sombra da qual repousem o espírito fatigado e o coração desiludido; veio-lhe o fastio e o cansaço dos que nunca amaram, dos que nunca sofreram nem se sacrificaram por ninguém; veio-lhe enfim o desespero dos egoístas, o desespero dos que se vêem isolados no meio do público que os aclama vitoriosos, mas que, está pronto a virar-lhes as costas logo que o menor interesse particular chama a sua atenção para outro lado.

E, da mesma forma que o Coruja sentia-se cansado de ser tão bom, tão dos outros e precisava cometer uma ação má para repousar; assim Teobaldo, reconhecendo o seu egoísmo e a sua indiferença pelos que o amaram, desejou pela primeira vez em sua vida praticar o bem.

Mas, se àquele era impossível cometer uma ação má, a este não seria mais fácil praticar um rasgo de abnegação e de heroísmo.

Os extremos encontraram-se de novo; as duas criaturas, que o isolamento unira no colégio, fugiam agora dos homens, homens tão caprichosos, tão ruins e tão pequenos como os seus condiscípulos de outrora.

E, ainda como o Coruja, Teobaldo pensou na morte, não como ele por não conseguir abominar seus semelhantes, mas por não conseguir amá-los.

E fez-se cada vez mais sombrio, mais concentrado e mais doente.

Agora passava horas e horas esquecidas no seu gabinete, sozinho, fechado por dentro, a cismar; ou enterrado sombriamente no fundo de uma poltrona, ou passeando de um lado para outro, com as mãos nas algibeiras e os olhos postos no chão.

E a sua figura, ainda elegante e altiva, mas prematuramente envelhecida e gasta, havia de impressionar a quem o surpreendera pelas horas silenciosas da madrugada nessas profundas meditações.

— Afinal que fiz eu?... interrogava ele a si mesmo em um desses momentos; sim, qual foi a minha obra?... Qualquer homem, por mais pequeno, por mais obscuro, tem sempre um ideal na sua vida: uns dedicam-se à família, e cada filho é um poema, bom ou mau que eles deixam à pátria; outros trabalham para enriquecer, e depois da morte, ainda são lembrados pelos seus herdeiros; outros nos legam um livro de suas memórias, ou uma casa comercial, ou uma empresa que criaram, ou uma idéia a que se sacrificaram por toda a vida! Todos deixam alguma coisa atrás de si: um nome ou uma recordação, só eu não deixarei nada, por que todo o meu ideal durante a minha vida inteira fui eu próprio! Nunca fiz nada aos outros; nunca amei pessoa alguma que não fosse eu mesmo. E, de tudo que apresentei durante a vida como produto do meu esforço, e de tudo que me engendrou este nome transitório que possuo, nada foi obra minha. Eu nada fiz!

Depois pensou nos entes que mais o estremeceram e, defronte da memória de cada um, seu coração sentiu-se envergonhado e arrependido.

E, daí em diante, quem o visse, apesar de tão profundamente abatido pelos seus padecimentos morais, ainda assim não podia calcular os desgostos que iam por aquela pobre alma.

A sua larga fronte, já despojada de cabelos até ao meio do crânio, raiara-se de longas rugas paralelas, como um horizonte no crepúsculo que se enfaixa de nuvens sombrias; seus grandes olhos, dantes tão insinuativos e lisonjeiros, amorteciam agora em uma profunda expressão de mágoa sem esperanças de consolo; seus lábios pareciam cansados de tanto sorrir para todo o mundo e como já não tinham forças para fingir, quedavam-se em uma imobilidade cheio de tédio e desdém; e todo o seu aspecto, ao contrário do que fora, servia agora muito mais para fazer pena do que para seduzir.

E daí principiaram todos a notar a sua ausência nos lugares em que ele era dantes mais frequente; afinal já nunca o encontravam em parte alguma onde houvesse um pouco de alegria ou um pouco de prazer; agora o riso lhe fazia mal, ao passo que ao cair da tarde viam no sempre nos arrabaldes mais solitários, passeando a pé, vagarosamente; as mãos cruzadas atrás, a cabeça baixa, o ar todo preocupado como de um mísero pai de família que vai sentindo faltar-lhe a vida e treme defronte da morte, não por si, mas pelos entes que lhe são caros e que aí ficam no mundo abandonados.

Todavia era justamente o inverso o que se dava com Teobaldo; sucumbia à falta da família; sucumbia à falta de afeições sinceras e à falta de carinhos legítimos.

E quanto mais, com o correr do tempo, a falta de tudo isto lhe apertava o coração e lhe ensombrava os dias, tanto mais insuportáveis se lhe faziam as tredas amizades da rua, as falsas relações políticas, os frívolos protestos dos seus admiradores e o palavreado venal daqueles que mendigavam a sua proteção.