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O Crédito/I

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Entrada de uma casa em São Clemente. À esquerda, a fachada do edifício, com porta e escada de pedra sobre o pátio. À direita, uma gradil elegante e um belo portão. No fundo, um muro baixo e a chácara. No centro um alegrete com um cedro.

São cinco horas da tarde de um dia de setembro.

CENA PRIMEIRA

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JULIETA, CRISTINA, depois uma VELHA e uma MENINA CEGA

(JULIETA está na janela, quando aparecem no portão CRISTINA e BORGES. BORGES cumprimenta JULIETA e sai.)

JULIETA (na janela) - Cristina!

CRISTINA (correndo para a porta) - Julieta!

(A porta abre-se, JULIETA sai, as duas moças abraçam-se.)

JULIETA - Adeus; ingrata!

CRISTINA - Um mês, é verdade! Tiveste saudades minhas?

JULIETA - Ainda perguntas?...

CRISTINA - E eu, não fazes idéia! Todos os dias pedia a mamãe para voltar. Não sei que encantos acha ela em S. Domingos!

JULIETA - É um belo lugar para tomar ares!

CRISTINA - Qual! Pois ainda acreditas nisto! Os médicos inventaram esse meio de se livrarem dos doentes que não sabem curar. Os melhores ares são os que se respiram perto daqueles que amamos.. Por isso eu aqui era São Clemente, junto de ti, estou sempre alegre e satisfeita.

JULIETA - Minha boa Cristina... Tu me queres então muito bem, tanto como eu te quero?

CRISTINA - Muito! Se tu fosses homem, palavra que me casava contigo. Que bonito maridinho havias de ser! (Beija-a na lace.)

JULIETA .- Eu tenho um ainda mais bonito para dar-te.

CRISTINA (sorrindo) - Quem? Hipólito?... Onde está ele? Saiu?

JULIETA - Sim, foi dar um passeio com o Sr. Rodrigo, não deve tardar...

CRISTINA - Rodrigo!... Não é um moço que chegou há pouco da Europa? Mamãe conhece-o.

JULIETA - É esse mesmo. Seu pai preferiu gastar o pouco que possuía em dar-lhe uma bela educação, e mandou-o estudar na Alemanha.

CRISTINA - Ele é pobre, então?

JULIETA - Pobre de dinheiro, mas rico de inteligência.

CRISTINA - Ora que vale essa riqueza? JULIETA - Mais do que pensas. Não é só o dinheiro que é riqueza, Cristina. A inteligência vale mais do que o ouro.

CRISTINA - Falas dele com um interesse!

JULIETA - Interesse muito natural; é um moço digno de estima, que tem um brilhante futuro.

CRISTINA - Há muito tempo que se dá em tua casa?

JULIETA - Há oito dias.

CRISTINA - E já o conheces tanto?

JULIETA - É amigo íntimo de Hipólito.

CRISTINA - Quem sabe se aí não anda volta de alguma paixãozinha?

JULIETA - Criança! Tu bem sabes que devo amar outra pessoa.

CRISTINA - Sei que vais casar com o Oliveira, mas às vezes sem querer o coração muda!

JULIETA - Está bom! Deixemos esta conversa; tu és muito maligna. Brincas com as coisas mais sérias.

CRISTINA - Sim! Desculpa-te comigo!

(Uma MULHER VELHA e uma MENINA CEGA que têm saído da casa atravessam para o portão.)

JULIETA (à MENINA) - Adeus! Minha mãe tomou a medida?

A VELHA - Sim, senhora...

JULIETA - Pois quando voltar achará o seu vestido pronto.

CRISTINA - Que é isto? Deste em costureira?... (Rindo-se)

JULIETA - É um passatempo... não tenho que fazer...

CRISTINA - Hão de reparar!...

JULIETA - Que importa! Mas com a alegria de te ver esqueci-me de perguntar por D. Olímpia!

CRISTINA - Mamãe? Não tarda... Saímos todos para fazer algumas visitas; porém eu estava ansiosa para ver-te e pedi a papai que me trouxesse até aqui; deixou-me no portão.

JULIETA - Eu vi-o; reparei que não entrasse.

CRISTINA - Já volta com mamãe! E D. Antônia, e o Sr. Pacheco, todos estão bons? Apesar de não terem passado um mês aborrecido a tomar banhos do mar! Ah! quem inventou as barcas. de S. Domingos não tinha juízo!

JULIETA - Pois olha, foi o mesmo que inventou os carros em que tanto gostas de passear!

CRISTINA - Neste caso eu lhe perdôo; e quero conhecê-lo. Dize-me, quem foi esse grande homem?

JULIETA - Não foi um homem, mas o que há de melhor no homem; foi o trabalho.

CRISTINA - Meu Deus! Deste agora em estudar estas coisas? Daqui a pouco és capaz de me falar em política!

JULIETA (sorrindo) - Perdoa, Cristina. Foi uma distração. Nós as mulheres não nascemos para esses estudos; mas Deus nos deu a inteligência do coração que compreende tudo que é nobre e grande. Quando ouvimos um bonito pensamento, é como se ouvíssemos uma linda música; fica-nos de memória e às vezes repetimos sem querer.

CRISTINA - Tu ouviste isto!... Foi ele quem disse?

JULIETA - Ele, quem?

CRISTINA - O Sr. Rodrigo.

JULIETA - Cristina!

CRISTINA - Como adivinhei!

JULIETA - A culpa tenho eu de falar-te de coisas que não entendo, em vez de conversarmos de nós, de ti sobretudo. Vamos a saber, durante esse tempo este coraçãozinho mudou? Viu alguma coisa em S. Domingos que o fizesse palpitar?

CRISTINA - Nada! Eu o tinha deixado aqui!

JULIETA - A quem? A Hipólito...

CRISTINA - A ti!

JULIETA - A mim só?

CRISTINA - Só!

JULIETA - Não creio!

CRISTINA - Por quê?

JULIETA - Pois olha; como tu mo deixaste, eu o dei.

CRISTINA - E se eu tornar a tomá-lo?

JULIETA - Então não queres ser minha irmã?

CRISTINA - Sim, sim, maninha Julieta. É assim que te hei de chamar.

JULIETA - Travessa... Mas quando será isto?

CRISTINA - Mais cedo do que tu pensas.

JULIETA - Ah! parou um carro.

CRISTINA (olhando) - o Macedo, e teu noivo.

JULIETA - Não digas isto!

CRISTINA - Por quê? Não vai casar contigo?

JULIETA - Não quero que saibam.

CENA II

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As mesmas, OLIVEIRA e MACEDO

MACEDO - Muito boa tarde, minhas senhoras.

OLIVEIRA (a JULIETA) - Adeus, como passou?... D. Cristina!

CRISTINA (a MACEDO) - Mamãe está muito zangada com o senhor.

MACEDO - Por que razão?

CRISTINA - Pois durante um mês não achou um momento para ir vê-la em S. Domingos?

JULIETA - Vem ainda hoje para falar de negócios com o meu pai?

OLIVEIRA - Não; venho de propósito para compensar a minha tarde de ontem, apenas tenho algumas palavras que dizer ao Sr. Pacheco sobre um objeto...

MACEDO - Importante! bastante importante!...

JULIETA - Sempre um negócio importante, grave, que exige uma decisão imediata! Não fazes idéia, Cristina, os homens agora já não têm um momento livre para conversar conosco. O seu tempo está de tal maneira absorvido pelos negócios, que às vezes nem se lembram que existimos.

CRISTINA - Por isso nós fazemos o mesmo com os vestidos e os chapéus; as modas são os nossos negócios.

OLIVEIRA - Justamente!

JULIETA - Mas nós, quando nos ocupamos em escolher o que é elegante e bonito, é para parecermos bem a seus olhos; enquanto que eles só pensam nos seus cálculos e nas suas contas.

OLIVEIRA - Com que fim?

MACEDO - Sim, o fim, eis a questão, os meios nada valem.

CRISTINA - E qual é esse fim?...

JULIETA - Enriquecer!

OLIVEIRA - Enriquecer é verdade; enriquecer para poder um dia deitar aos pés daquela que amamos uma fortuna colossal, para satisfazer todos os seus desejos e caprichos, para dar-lhe enfim a soberania do dinheiro, já que não podemos elevar-lhe um trono.

CRISTINA - Sim senhor, é bonito!

JULIETA - Mas que necessidade tem o homem de fazer esses sacrifícios quando não é pobre e possui bastante para tornar a vida doce e tranqüila?...

OLIVEIRA - Não há necessidade, há um prazer, um orgulho que sentimos em que a mulher da nossa escolha nos deva tudo!

JULIETA - Assim é por nós mesmas que nos esquecem?

OLIVEIRA - Que as esquecemos? Quando a todo o momento, se calculamos uma operação, se planejamos uma empresa considerável, se fazemos uma grande especulação, é sempre com a idéia naquela que nos inspira e anima? Não tem razão!

JULIETA - E não entra nisso um pouco de vaidade e ambição? OLIVEIRA - A vaidade de merecer e a ambição de possuir o objeto de nosso amor.

JULIETA - Não sei; mas parece-me que não é possível existir amor. rio meio de algarismos e cálculos.

MACEDO - E eis onde está todo o seu erro, D. Julieta. O amor não é compatível com as operações mercantis, mas pode ser um elemento delas.

CRISTINA - Bravo! Esta é nova!...

JULIETA - O Sr. Macedo naturalmente alude a esses casamentos que vemos todos os dias, e em que o marido ou a mulher fazem o que chamam um bom negócio, vendendo o seu coração.

(HIPÓLITO entra pelo portão; CRISTINA dirige-se a ele; OLIVEIRA aperta-lhe a mão enquanto MACEDO fala.)

CENA III

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Os mesmos e HIPÓLITO

MACEDO - Perdão, minha senhora, o casamento é o casamento, e o amor é o amor; duas coisas bem distintas, que podem existir e existem, uma sem a outra. A indústria do casamento é muito velha. Serve para arranjar algum caixeiro desempregado, algum advogado sem clientes, algum médico sem clínica, ou...

HIPÓLITO - Ou algum negociante falido. (Aperta a mão de CRISTINA.)

MACEDO - Oh! Sr. Hipólito! Desculpe, não o tinha visto!

HIPÓLITO - Continue. Expunha naturalmente o plano de alguma empresa gigantesca para a exploração da indústria dos casamentos!

JULIETA - Coisa melhor! Teu amigo?

HIPÓLITO - Ficou na calçada conversando com meu pai. (Voltando-se) Então, Sr. Macedo?

MACEDO - Estas senhoras admiraram-se de ouvir-me dizer que o amor ainda se há de tornar um dos mais fortes auxiliares do comércio, e um dos meios de fazer fortuna rapidamente. Mas atenda bem, quando eu falo de amor, refiro-me ao verdadeiro amor, à paixão!

HIPÓLITO - Explique-me isto, por obséquio, até aqui o amor tem entrado em meu orçamento como uma verba de despesa, e bem considerável!

MACEDO - Falta de experiência! Está destinado a tornar-se uma verdadeira fonte de receita.

HIPÓLITO - Vamos à explicação: estou impaciente! O amor moeda corrente! É admirável!

MACEDO - O senhor não ignora que a base do comércio hoje é a confiança: todas as operações repousam unicamente sobre esse princípio.

HIPÓLITO - Confesso que estava enganado, Sr. Macedo. Em tempo de tantos velhacos, julgava que a base do comércio devia ser a desconfiança!

MACEDO - Uma supõe a outra.

HIPÓLITO - Mas isto ainda não me diz como o amor...

MACEDO - De todas as confianças a mais cega, a mais forte, é o amor, o amor que resiste a tudo, ao dever, à honra, e ao próprio dinheiro. No dia em que um homem hábil se propuser a explorar essa confiança ilimitada, poderá dispor de uma massa de capital enorme!

HIPÓLITO - Mas de que maneira?

MACEDO - O segredo é a alma do negócio!

HIPÓLITO - Desculpe, fui indiscreto. Pretende então pôr em prática a sua idéia?

MACEDO (sorrindo) - Talvez!

HIPÓLITO - O que lhe peço é que me reserve algumas ações. (Alto) Uma empresa para a exploração do amor! (Ri-se.)

CRISTINA - Ora, Sr. Macedo!... (Ri-se.)

MACEDO - Riem-se? (RODRIGO entra.)

JULIETA - Decerto, quem pode tomar a sério semelhante coisa?

MACEDO - É pena que a senhora não entenda de negócios.

JULIETA - Ao contrário, julgo uma felicidade.

MACEDO - Digo que é pena porque então me compreenderia. Toda a dificuldade está em substituir o amor à hipoteca nas operações de endosso e desconto de letras mercantis.

CENA IV

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Os mesmos e RODRIGO

HIPÓLITO - Tu entendes isto, Rodrigo?

RODRIGO - Perfeitamente, meu amigo. O Sr. Macedo quer dizer que em vez de um homem dirigir-se a um usurário, ou a um capitalista e hipotecar-lhe um prédio, usará da influência que tem sobre a sua namorada, filha ou mulher desse usurário e conseguirá sem o menor sacrifício a firma necessária para o desconto do título.

HIPÓLITO - A lembrança é engenhosa.

RODRIGO - Quando se trata de fazer valer todos os bens do homem, não era justo que se esquecesse o coração, o espírito, a elegância, as boas maneiras, e mesmo os bonitos olhos. Até agora a sociedade tinha reservado isso para sua distração, mas o gênio da especulação entende que esses valores reais não devem ficar improdutivos, e trata de levá-los ao mercado; não tarda que eles sejam cotados na praça, como a ação de uma companhia, o ordenado de um empregado público, ou a promessa de um agiota. Então, um moço capaz de se fazer amar pelas senhoras ricas, valerá, em matéria de crédito, o mesmo que um negociante honesto e um industrial ativo; porque terá uma conta corrente aberta sobre a burra dos maridos, ou dos pais de suas namoradas. Eis qual é a idéia do Sr. Macedo, idéia sublime, digna de um homem empreendedor. (Voltando-se) Creio que expliquei o seu pensamento...

MACEDO - Melhor do que eu mesmo. Gostei de ouvi-lo. (Voltando-se.)

OLIVEIRA (baixo e rapidamente) - Que imprudência!

MACEDO (idem) - Não percebem!

OLIVEIRA (idem) - Embora!

(Entra D. OLÍMPIA. BORGES fica no portão conversando com PACHECO.)

CENA V

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Os mesmos e D. OLÍMPIA

OLÍMPIA - Como está, Julieta?... E mamãe?

JULIETA - Vou chamá-la.

OLÍMPIA - Não precisa. Ela está boa?... Temos muitas modas novas e bonitas... já sei.

MACEDO (aproximando-se) - Divertiu-se em S. Domingos, D. Olímpia? (Aperta-lhe a mão.)

OLÍMPIA - Não, fugi mesmo dos divertimentos; estava tão fatigada dos bailes e teatros, que precisava restabelecer a minha saúde!...

MACEDO - Fez muito bem. Um mês de repouso é muito necessário a sua saúde... e até mesmo à... economia!

JULIETA - Então não se gasta fora de sua casa?

MACEDO - Gasta-se, mas poupam-se certas coisas; por exemplo, os vestidos novos para os grandes bailes, os camarotes nos dias de gala! Quando uma senhora está na cidade a sua ausência é reparada, mas quando ela toma ares em Petrópolis ou na Serra, sente-se que não apareça nos salões, mas ninguém se lembra que lhe falta uma toalete deslumbrante!

OLÍMPIA (com desdém) - Foi talvez por essa razão que eu estive fora da cidade...

MACEDO - Não disse isto!

OLÍMPIA - Mas deu a entender.

MACEDO - Não tive semelhante intenção, D. Olímpia, nem era possível. A senhora sabe que é sempre admirada pela sua graça, pelo seu bom gosto, pela sua elegância; por isso de vez em quando desaparece para se fazer desejada. Eis a razão...

OLÍMPIA - Obrigada, mas aqueles que sentiam a minha falta, podiam ver-me com o pequeno sacrifício de algumas horas.

MACEDO - Se refere-se a mim, é injusta; não era o desejo que me faltava, mas o tempo. O tempo é dinheiro!

OLÍMPIA - Há sempre tempo para ver aqueles que se estima.

MACEDO - É o que a senhora pensa!

OLÍMPIA - Pois agora estou em S. Clemente; lembre-se mais dos amigos. (Volta-se para JULIETA) Aquele moço que conversa com o Hipólito não é o Rodrigo?

JULIETA - É.

OLÍMPIA - Não me cumprimentou.

JULIETA - A senhora conhece-o?

OLÍMPIA - Estive com ele em um baile.

(Entra D. ANTÔNIA que desce da casa; fala com RODRIGO, OLIVEIRA e MACEDO que a cumprimentam.)

CENA VI

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Os mesmos e D. ANTÔNIA

JULIETA - Ah! Aí está, minha mãe!

OLÍMPIA (voltando-se) - D. Antônia... adeus...

(Sobem ambas a cena para encontrar-se com D. ANTÔNIA; é o tempo que OLIVEIRA toma o braço de MACEDO e descem.)

OLIVEIRA - Não acha o Pacheco tão frio?

MACEDO - Não; por que diz isto?

OLIVEIRA - Ainda não veio falar conosco, deixou-se ficar no portão!

MACEDO - Ele é seco; porém no fundo é homem de palavra. Demais nós temos a garantia principal.

OLIVEIRA - Qual?

MACEDO - O amor da pequena. Não está seguro?

OLIVEIRA - Não sei; parece-me despeitada quando conversa comigo.

MACEDO - Arrufos de namorados; está queixosa porque ontem não lhe falou. Mostre-se apaixonado, e deixe o mais por minha conta.

OLIVEIRA - Sim; mas Julieta é bonita, espirituosa, e eu tenho medo de apaixonar-me realmente.

MACEDO - Que mal lhe vinha daí; um casamento vantajoso por todos os lados: formosura e dinheiro. Duzentos contos de dote, e o dobro em operações.

OLIVEIRA - É um belo casamento, mas sabem as minhas idéias a este respeito. Quero ser rico e livre, para poder gozar só da minha fortuna; para poder amar as mulheres que desejar e esquecê-las no dia seguinte, sem que ninguém me venha lembrar que sou um marido, isto é, o ente mais escravo que existe sobre a terra. Olhe o Borges; tem um bom emprego, podia viver tranqüilo... mas a mulher sacrifica-o com o seu luxo.

MACEDO - É verdade; o pobre homem está crivado de dívidas, e: não faz senão queixar-se da exigüidade dos ordenados, sem lembrar-se da monstruosidade das despesas.

OLIVEIRA - O senhor deve saber disto, e bem. (Sorrindo.)

MACEDO - Por quê?

OLIVEIRA - Segundo dizem as más línguas, carrega com uma grande parte dessas despesas.

MACEDO - Não há tal!

OLIVEIRA - Ora! O senhor passa como amante de D. Olímpia!

MACEDO (rindo) - É uma calúnia!

D. ANTÔNIA - Hipólito, meu filho, manda vir cadeiras para os senhores se sentarem. Se não preferem entrar...

OLIVEIRA - Estamos tão bem aqui!

D. ANTÔNIA - Como quiserem!

OLÍMPIA - Então, Julieta, ainda não me deu notícias do que houve pela corte nestes dois meses que estive ausente. Muitos bailes, muitos divertimentos.

JULIETA - Como de costume.

D. ANTÓNIA - Não foi a nenhum, apesar dos pedidos do pai que deseja levá-la sempre: preferiu fazer-me companhia.

(O PARDINHO, escravo de PACHECO, traz cadeiras.)

OLÍMPIA - Deveras?

D. ANTÔNIA - O Sr. Pacheco zanga-se com razão! Vêm da modista as coisas mais lindas e ficam perdidas inutilmente, sem que use delas uma só vez!

OLÍMPIA - Assim não me sabe contar!... Pois vim ansiosa por saber...

JULIETA - Aqui está quem pode dizer-lhe... (MACEDO e OLIVEIRA vão ao portão.)

CENA VII

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JULIETA, RODRIGO, OLÍMPIA e D. ANTÔNIA

OLÍMPIA - Quem?

JULIETA (chamando) - Sr. Rodrigo!

RODRIGO - D. Julieta?

JULIETA (apresentando) - D. Olímpia, senhora do Sr. Borges. (Cumprimentam-se.) O senhor que foi aos últimos bailes, diga-nos se estiveram muito brilhantes.

OLÍMPIA - Quais foram as toaletes mais ricas?

RODRIGO - As mais ricas que eu vi, minha senhora, eram as que traziam as mulheres mais feias.

D. ANTÔNIA - É sempre assim.

RODRIGO - Em uma senhora elegante a graça e a beleza excitam tanto a nossa admiração que às vezes nem reparamos a cor e a fazenda que trajam: ninguém deixa de contemplar as maravilhas que Deus criou, para examinar os trabalhos de agulha e tesoura com que as modistas caricaturam a natureza.

JULIETA - Ah! Se elas ouvissem! São aquelas que não têm que mostrar ou que não estimam bastante a sua pessoa, as que arrastam pelo salão a cauda de seu vestido, desvanecidas e orgulhosas pelos olhares que as acompanham, não para vê-las, mas para avaliarem os seus brilhantes, e orçarem o preço da toalete, como se faz em uma tabuleta de ourives, ou no balcão de uma loja. Dessas, algumas são ricas, e estou convencida que não sabem quantos dias de misérias se poderiam aliviar com o custo de três horas de prazer. Outras, porém, não se lembram que nesse pano de veludo ou de seda rojam pelo tapete a humilhação de um pai ou de um marido, que sacrificou a sua honra, para satisfazer esse capricho, consumindo na vaidade de uma noite, o ordenado de um mês e o sustento de sua família. (D. OLÍMPIA esconde lágrimas a furto.)

D. ANTÔNIA - Tem muita razão. (RODRIGO afasta-se.)

JULIETA - Que é, D. Olímpia?

OLÍMPIA - Nada; uma dor de cabeça!

JULIETA - Talvez o vento lhe faça mal.

OLÍMPIA - Não; isto passa.

D. ANTÔNIA - Venha para dentro.

CRISTINA (correndo para JULIETA) - Tu sabes, Hipólito está zangado comigo!

JULIETA - Por quê?

CRISTINA - Porque demorei-me em S. Domingos, como se a culpa fosse minha!

JULIETA - Não sabe que tua mãe não queria voltar.

CRISTINA - Já lhe disse tudo, começou a zombar. (HIPÓLITO chega.)

JULIETA (dirigindo-se a HIPÓLITO) - Tu estás zangado com Cristina?

HIPÓLITO - Não.

JULIETA - Mas ela queixa-se.

CRISTINA - Nega? Não me disse...

HIPÔLITO - Disse-lhe que tendo ido passar dois meses em São Domingos, eu fiquei avulso e por conseguinte tratei de fazer a corte a outra moça; porque isto é sabido, um estudante de medicina não pode estar sem duas coisas: um cavalo e uma namorada.

CRISTINA - Um cavalo e uma namorada. Tu ouves, Julieta?

HIPÓLITO - Perdão, queria dizer uma namorada e um cavalo. São idéias correlativas.

JULIETA - Está brincando!

CRISTINA - E verdade o que ele diz: outra que merece mais... (HIPÓLITO afasta-se.)

JULIETA - Não creias. Espera! Hipólito, vem cá!

HIPÓLITO - Que queres?

JULIETA - Aperta a mão de Cristina.

HIPÓLITO - Tu fazes gosto nisto?

JULIETA - Muito.

HIPÓLITO - Bem; é por tua causa. (Estende a mão.)

CRISTINA (apertando) - Eu não devia aceitar; depois do que me disse.

HIPÓLITO - É como quiser. Eu aceito a paz, porém não a ofereço: a guerra é o meu elemento.

JULIETA - Está bom; não vão ficar mal outra vez.

CENA VIII

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Os mesmos e GUIMARÃES

PACHECO (no portão) - Hipólito!

HIPÓLITO - Meu pai? (Volta-se.)

PACHECO - Está aqui um senhor que te procura!

JULIETA - Vai recebê-lo!

GUIMARÃES (entrando) - Hipólito, meu amigo! (Cumprimenta as senhoras.)

HIPÓLITO - Boa tarde, Sr. Guimarães!

GUIMARÃES - Passando por aqui, não pude deixar de entrar para ter o prazer de ver-te, e mesmo porque desejava que me apresentasses à tua família.

HIPÓLITO - Agradeço-lhe muito.

GUIMARÃES - Que bela casa tem teu pai! Uma chácara excelente! Que dias agradáveis se devem passar debaixo destas árvores! Hei de vir um domingo jantar contigo.

HIPÓLITO - É uma honra que o senhor me faz!

GUIMARÃES - O senhor?... Já te disse, meu amigo, que a amizade não conhece os tratamentos inventados pela sociedade.

HIPÓLITO - É justamente por isso que reservo a familiaridade para meus amigos íntimos.

GUIMARÃES - Onde está tua mãe? Desejo muito conhecê-la. (Tomando-lhe o braço) Vem apresentar-me. (Caminham até D. ANTÔNIA.)

CRISTINA - Conheces?

JULIETA - Não; nunca o vi.

CRISTINA - É amigo de Hipólito.

JULIETA - Mas Hipólito parece não gostar dele.

CRISTINA - É verdade: tratou-o com tanta frieza! (HIPÓLITO volta. GUIMARÃES conversa com D. ANTÔNIA.)

JULIETA - Quem é?

HIPÓLITO - A minha sombra! É um sujeito que assentou ser meu amigo à força, encontro-o em toda a parte; se janto em um hotel, vem sentar-se à minha mesa; se passeio, agarra-se ao meu braço; se vou ao teatro, daí a pouco vejo-o a meu lado; só aqui estava livre dele. Entra-me agora pela porta a dentro, toma-me o braço, e apresenta-se ele mesmo à minha mãe sob o pretexto da amizade sincera que me tributa.

JULIETA - Ele simpatizou contigo.

HIPÓLITO - Não é uma razão para impor-me a sua amizade!

JULIETA - Devemos ter sempre alguma condescendência para aqueles que procuram a nossa amizade.

GUIMARÃES (a HIPÓLITO) - Tua mãe é uma bela senhora! Maneiras tão agradáveis!

CENA IX

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Os mesmos, PACHECO, BORGES, MACEDO e OLIVEIRA

(BORGES, PACHECO, OLIVEIRA e MACEDO adiantam-se como continuando uma conversa. CRISTINA, JULIETA e HIPÓLITO estão junto do sofá de pedra. D. ANTÔNIA e D. OLÍMPIA, do lado oposto, sentadas.)

MACEDO - Não se pode negar, com efeito, que esta cidade cresce todos os dias consideravelmente.

PACHECO - Nada mais natural; é da essência das coisas nascer, crescer e morrer.

HIPÓLITO - Felizmente ainda estamos na conjugação do segundo verbo.

MACEDO - O que porém não é natural, Pacheco, é esse desenvolvimento espantoso que se opera, e que é devido unicamente a uma coisa que se tem querido combater - a especulação.

OLIVEIRA - É verdade!

PACHECO - Não creio que seja essa a causa. A especulação, isto é, a ambição de ganhar dinheiro, sem atender aos meios, existiu em todos às tempos, a diferença é que outrora ia-se à casa de jogo, e agora vai-se à Praça.

BORGES - Esteve hoje na Câmara, Sr. Macedo?

MACEDO - Não tive tempo, os meus negócios...

BORGES - Disseram-me que talvez fosse apresentado um projeto de aumento do ordenado dos empregados públicos. o crédito não é outra coisa senão a goma-elástica do dinheiro, é o

MACEDO (para OLIVEIRA) - Ei-lo com a mania!

OLIVEIRA - Não se tratou de semelhante coisa, Sr. Borges!

BORGES - Ah! esteve lá? De que se tratou então?

OLIVEIRA - Questão de crédito... Toda a sessão... Falou o...

PACHECO (interrompendo) - Outra coisa que eu não entendo. Atualmente não se fala senão em crédito, senadores, deputados, negociantes... Até as senhoras mesmo já discutem! Entretanto, eu tenho cinqüenta e nove anos, feitos o mês passado; conheci o côvado e a vara ainda menino, na Rua da Alfândega, então Rua dos Ferradores, e confesso sinceramente que não sei o que quer dizer esta história de crédito.

CRISTINA - Como, Sr. Pacheco! Não é possível!

PACHECO - É o que eu digo; até as meninas já estão com a mania!

CRISTINA - Mas se é uma coisa tão fácil!

OLIVEIRA - Não é tanto assim, D. Cristina.

CRISTINA - Ora! O crédito é o meio da gente comprar dois vestidos pelo preço de um. Não é, papai?

BORGES - Acho melhor que não fales do que não entendes.

MACEDO (a OLIVEIRA) - O negócio complica-se.

PACHECO - Mas diga-me: como se faz esse milagre?

CRISTINA - Desta maneira. (Chegando-se) Suponha que o senhor compra hoje um vestido em casa do Wallerstein; ele manda-lhe a conta daqui a seis meses, o senhor paga; mas compra outro no dia seguinte.

PACHECO - Que só pago daí a seis meses.

CRISTINA - Decerto!

OLÍMPIA - Cristina!

PACHECO - E se por acaso liquida-se a loja?

MACEDO - É um pequeno contratempo!

OLIVEIRA - Recorre-se a outros meios.

PACHECO - Percebo!...

HIPÓLITO - Qual meu pai; isto é o crédito das senhoras em relação aos vestidos; crédito que, entre parênteses, está muito depreciado depois da invenção dos balões. O verdadeiro crédito...

PACHECO - Melhor! Agora temos um estudante de medicina metendo-se em negócios.

HIPÓLITO - E que pensa V.M.cê? A medicina tem a sua relação com a economia política. Não há nada mais semelhante do que uma receita e uma letra de câmbio. Uma receita é uma letra de câmbio que o médico saca contra o doente, uma letra de câmbio é uma receita que o negociante pede a um capitalista para curar certa moléstia que se chama quebra!

PACHECO - Não há dúvida, estás um grande economista!

HIPÓLITO - Quanto ao crédito é uma invenção que seguiu de perto a descoberta do caucho, e isto por uma razão muito simples: meio de fazer com que uma nota de cinco mil-réis valha dez!

CRISTINA - É o mesmo que eu disse.

BORGES - Minha filha!...

MACEDO - Teu filho está brincando, meu amigo, o crédito é uma das mais belas descobertas da indústria moderna.

PACHECO - Não compreendo semelhante coisa! Nunca pedi em prestado o dinheiro de alguém, sem ter a certeza de poder pagar- lhe! Porque a minha probidade não me permite arriscar a fortuna alheia!

RODRIGO - Tem razão, Sr. Pacheco. Esses meios de obter a fortuna de outrem para sacrificá-la em empresas loucas, não se chama crédito, tem outro nome: é um jogo, um abuso de confiança que a moral condena e que todo o homem honesto reprova!

PACHECO - Bem...

RODRIGO - A missão do crédito é outra: é nivelar os homens pelo trabalho e dar à atividade os meios de criar e produzir. Outrora, para adquirir-se uma fortuna, era preciso consumir toda a existência em privações, juntar-se real a real. A riqueza era o privilégio de poucos; uma herança que o filho recebia de seu pai. A inteligência estava então condenada à pobreza, ganhava apenas o mesquinho salário de seu serviço material, ou vendia-se aos ricos que a exploravam em seu proveito. Um dia, porém, um homem de dinheiro compreendeu que o trabalho e a probidade eram melhor garantia do que a fortuna que o acaso pode destruir em um momento. Esse homem chamou os amigos pobres, mas honestos e empreendedores, e confiou-lhes os seus capitais para que eles realizassem as

suas idéias. O crédito estava criado. Outros seguiram o exemplo; associaram-se e formaram um banco. Essa pequena instituição, escondida no fundo da loja de um judeu desenvolveu-se, dominou as grandes praças comerciais, e hoje circula o globo. Eis o que é o crédito, meus senhores; uma palavra o define: é a regeneração do dinheiro. O orgulho dos ricos tinha inventado a soberania da riqueza, soberania bastarda e ridícula, o crédito destronizou essa soberania: do ouro que era senhor, fez um escravo, e mandou-lhe que servisse à inteligência, a verdadeira rainha do mundo!

JULIETA (a HIPÓLITO) - Como ele fala bem! Que bonitas idéias!

PACHECO - Ainda não cedo. Havemos de discutir esta questão com mais vagar. (Tomando o braço de RODRIGO) Vamos para a sala. (Saem os dois. Todos os acompanham, â exceção de D. OLÍMPIA.)

CENA X

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OLÍMPIA, BORGES e D. ANTÔNIA, na janela

OLÍMPIA (chamando) - Borges!... Escuta.

BORGES (chegando-se) - Que queres?

OLÍMPIA - Não te esqueças de convidar este moço para o nosso jantar.

BORGES - Mas, Olímpia, já te disse...

OLÍMPIA - Não admito razões. Bem vês que não é possível deixarmos de dar um jantar aos nossos amigos para participar-lhes que chegamos, e que continuamos a receber um dia por semana.

BORGES - Bem sabes o nosso estado...

OLÍMPIA - O que sei é que por causa das suas economias, passei um mês em S. Domingos.

BORGES - Mas lembra-te que antes tínhamos gasto extraordinariamente. Não temos com que pagar as nossas dívidas. As contas...

(OLÍMPIA entra na casa; BORGES fica só, depois acompanha-a lentamente. Cai o pano.)