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O Crédito/III

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Saleta em casa de PACHECO; no fundo vê-se a sala de jantar e a mesa posta com um talher.

CENA PRIMEIRA

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JULIETA e HIPOLITO

(JULIETA faz croché, sentada num sofá.)

HIPÓLITO (entrando para o fundo) - Deita o almoço! (Desce.)

JULIETA - Com efeito, Hipólito! São mais de onze horas...

HIPÓLITO (vendo o relógio) - É verdade! Já levei ponto (senta-se numa cadeira de balanço.) Decididamente é uma fortuna para a humanidade que meu pai seja rico.

JULIETA - Por quê?

HIPÓLITO - Porque senão apenas me formasse metia-me a curar e era pior do que uma epidemia. Via-me na dura colisão de morrer de fome ou de matar os desgraçados que me caíssem nas mãos.

JULIETA - Não digas isto nem brincando.

HIPÓLITO - Não te assustes, Julieta! Meu pai teve bastante juízo para ganhar uma porção de contos de réis e portanto os pobres dos hospitais estão livres de mim.

JULIETA - Mas se não pretendes exercer a tua profissão, para que estudas?

HIPÓLITO - Então pensas que a profissão do médico é só curar?

JULIETA - Qual é a outra?

HIPÓLITO - As outras deves dizer. Um médico hoje é um doutor, e um doutor serve para tudo. Há médicos políticos, médicos financeiros, médicos administradores e médicos honorários; é a esta última classe que hei de ter a honra de pertencer.

JULIETA - E que faz ela?

HIPÓLITO - O seguinte: passear na Rua do Ouvidor, fumar o seu charuto no Desmarais, freqüentar os bailes e os teatros, namorar as viúvas, ajudar por ano uma operação, fazer visitas para dar consumo aos cartões com o competente d-r, e meter de vez em quando na conversa uma palavra técnica para chamar a atenção. Que dizes? Não é uma bela ocupação?

JULIETA - Mas tu não a deves escolher.

HIPÓLITO - Por que razão?

JULIETA - Um homem que só se ocupa consigo não é um ente inútil para os outros? Se o pobre deve trabalhar para ganhar com que sustentar-se, o rico deve usar da inteligência que Deus lhe deu, não para ele, mas para a sociedade.

HIPÓLITO - Aposto que foi Rodrigo quem te ensinou isto?

JULIETA (confusa) - Não sei.

HIPÓLITO - Foi, não negues. Ele pensa assim, porém eu entendo que o único trabalho de um homem rico é distribuir a fortuna que Deus lhe. deu. Uns fazem essa distribuição em esmolas, outros em jantares. No fim, o efeito é o mesmo.

JULIETA - Pois olha, eu sou mulher e tenho mais direito do que tu a essa vida ociosa e estéril. Entretanto, furto todos os dias algumas horas às minhas distrações para dedicá-las a uma ocupação qualquer; coso, bordo, não por divertimento, mas por uma obrigação que me imponho a mim mesma.

HIPÓLITO - E que lucras com isso? O trabalho faz-te melhor do que és?

JULIETA - O trabalho é uma boa lição que Deus nos dá; sinto-o por mim. Durante estas horas de uma aplicação séria, lembro-me de que somos todos criaturas destinadas a servir umas às outras; e perco esse pequeno orgulho da riqueza.

HIPÓLITO - Desde quando começou isto?

JULIETA - Desde que compreendi que os ricos deviam ser os primeiros a honrar o trabalho porque é a ele que devem a fortuna. Se meu pai não tivesse trabalhado, não serias pobre?

HIPÓLITO - Antes fosse, ao menos podia ser amado por mim e não pela minha herança.

JULIETA - Ah! Ainda estás com esta idéia? Pensas que Cristina...

HIPÓLITO - Estou convencido; o que ela quer é casar com o filho de meu pai.

JULIETA - Não acredito...

CENA II

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Os mesmos e D. ANTÔNIA

D. ANTÔNIA (entrando) - Hipólito, teu amigo está aí.

HIPÓLITO - Rodrigo?

D. ANTÔNIA - Não queres recebê-lo aqui?

HIPÓLITO - Sim, senhora. (Caminhando para a porta) Entra! (Desaparece um momento.)

D. ANTÔNIA (a JULIETA) - D. Olímpia deixou-te lembranças.

JULIETA - Esteve cá?

D. ANTÔNIA - Não; passou há pouco para a cidade e falou-me mesmo do carro.

JULIETA - Não quis entrar?

D. ANTÔNIA - Na volta.

JULIETA - E Cristina?

D. ANTÔNIA - Ia com ela.

JULIETA - Não perguntou por mim?

D. ANTÔNIA - Não; e tenho reparado que... (HIPÓLITO e RODRIGO entram, D. ANTÔNIA sai.)

CENA III

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JULIETA, RODRIGO e HIPÓLITO

RODRIGO - Adeus, D. Julieta. (Aperta a mão.)

JULIETA - Sr. Rodrigo!

HIPÓLITO - Sabes! Tens uma apologista das tuas idéias.

JULIETA - Cala-te, Hipólito!

RODRIGO - Das minhas idéias?

HIPÓLITO - Sobre o trabalho. Agora mesmo acabou de dar-me uma lição.

JULIETA (a RODRIGO) - Não acredite!

HIPÓLITO - Se tu a ouvisses falar!... Não sei como ela entende.

RODRIGO - Não sabes a razão? As senhoras compreendem por inspiração o que nós, os homens, só compreendemos pela reflexão e pelo estudo. Por isso, na minha opinião a mulher é hoje o verdadeiro apóstolo da civilização.

HIPÓLITO - Se entendes por civilização os bailes e as modas, concordo; é um apóstolo de leque e crinolina!

RODRIGO - Estás gracejando!... Pois digo-te seriamente que para elevar o Brasil à altura do progresso moral e material da Europa, bastava-me a mulher.

HIPÓLITO - E que farias tu desse anjo-demônio, como lhe chamam os poetas?

RODRIGO - Nada, deixava que cumprisse o seu destino; somente lhe faria compreender as idéias que ela devia inocular no coração do povo. A nossa população precisa de instrução, eu instruiria a mulher.

HIPÓLITO - É um problema difícil.

RODRIGO - Eu resolveria com quatro palavras.

JULIETA - Como?

RODRIGO - De uma maneira muito simples: faria uma lei.

JULIETA - Uma lei?...

RODRIGO - Sim. Decretaria o seguinte: "Nenhuma mulher poderá casar-se sem saber ler e escrever."

JULIETA (sorrindo) - Ah!

HIPÓLITO - E com isso julgas que conseguirias?

RODRIGO - Sem dúvida.

HIPÓLITO - Mas lembra-te que nem todas as mulheres se casam; a raça das tias aumenta consideravelmente.

RODRIGO - Nem todas as mulheres se casam, é verdade, mas todas desejam casar.

HIPÓLITO - Que tem isso?

RODRIGO - É quanto bastava para que no fim de um ano não houvesse no Brasil uma mulher que não soubesse conjugar o verbo casar em todos os tempos; aquelas mesmas que tivessem escapado a' lei, por prevenção e na possibilidade de ficarem viúvas, haviam de voltar ao a-bê-cê.

HIPÓLITO (rindo) - Neste caso eu fazia-me professor de primeiras letras.

RODRIGO - Desde que a mulher do pobre levasse para a comunhão do matrimônio, além do coração, um espírito cultivado, a civilização desceria às últimas classes; o seio da família seria uma escola moral e instrutiva, na qual o homem receberia desde o berço até o serão do trabalho, com o leite materno, e com as afeições domésticas, as lições de sua mãe ou de sua esposa. (A HIPÓLITO) Mas isto são idéias... Passaste ontem por minha casa?

HIPÓLITO - E não te encontrando deixei-te um bilhete.

RODRIGO - Recebi. Precisas de mim?

HIPÓLITO - Queria ter o prazer de ver-te. Por que não apareces? Há muitos dias.

JULIETA - Uma semana.

RODRIGO (sorrindo) - Pensas, então, que as minhas teorias são como as receitas de médico? Dou o exemplo; trabalho.

HIPÓLITO - Contudo; não é uma razão para abandonares os amigos. Temos muito que conversar.

JULIETA - Não vais almoçar?

HIPÓLITO - É verdade. Queres jantar enquanto eu almoço?

RODRIGO - Obrigado.

HIPÓLITO - Pois então conversa com Julieta que eu vou fazer a dissecação de um frango e a ingestão de uma xícara de café com leite. Bem vês que não estou tão atrasado na medicina como supões. (Senta-se na mesa para almoçar e é visível durante a cena seguinte.)

CENA IV

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[RODRIGO e JULIETA]

RODRIGO - Que gênio feliz! (Senta-se.)

JULIETA - Sim; mas aquela alegria agora é um pouco fingida. Anda triste.

RODRIGO - Por que motivo?

JULIETA - Ele lhe contará.

RODRIGO - É um segredo então?

JULIETA - É; mas o senhor já o sabe.

RODRIGO - Não me recordo.

JULIETA - Cristina...

RODRIGO - Que tem?

JULIETA - Mudou!

RODRIGO - Ah!

JULIETA - Não é a mesma; não fala mais a Hipólito; apenas o cumprimenta. Deixou até de vir à nossa casa! outrora, estávamos sempre juntas; queríamo-nos como duas irmãs, e eu esperava que havíamos de ser um dia. Mas... isto talvez não lhe interessa?

RODRIGO - Ao contrário, interessa-me muito.

JULIETA - Deveras?

RODRIGO - Não sou desses que para afetar gravidade, tratam as questões de sentimento com desdém. Não há nada mais sério para o homem do que sejam suas afeições, que têm sempre uma tão grande influência sobre a sua vida.

JULIETA - É verdade! Delas depende a felicidade e quantas vezes não lhes sacrificamos a nossa existência...

RODRIGO - Hipólito não está neste caso. Cristina é ainda uma menina um pouco travessa, mas tem bastante espírito para que o homem a quem amar possa fazer dela uma senhora distinta!

JULIETA - Porém se ela não o ama?... Não lhe disse que mudou completamente? E sabe desde quando?

RODRIGO - Não.

JULIETA (confusa) - Desde quinta-feira! O senhor não conversou com ela nessa noite?

RODRIGO - Trocamos algumas palavras; falamos do luar, de banalidades.

JULIETA -- Somente?

RODRIGO - Creio que só.

JULIETA - Pois eu julguei que essa mudança fosse proveniente do que o senhor lhe disse.

RODRIGO - Qual. Que influência podiam ter as minhas palavras sobre os seus sentimentos?

JULIETA - A mesma que tem a inteligência sobre o coração.

RODRIGO (sorrindo) - Não acredite. O amor de Cristina passou naturalmente como passam essas primeiras folhas das árvores antes da florescência.

JULIETA - E é possível isto? É possível deixar de amar uma pessoa que uma vez se amou?

RODRIGO - Não sei, D. Julieta.

JULIETA - Pergunto-lhe... porque deve ser bem triste sentir-se uma afeição com que vivemos algum tempo fugir a pouco e pouco, e deixar a alma deserta e só. Creio que há de ser como se víssemos destacar-se de nossa vida os mais belos dias da mocidade.

RODRIGO - Por isso devemos conservar as nossas afeições.

JULIETA - E quando a vontade nada pode contra esse impulso, quando sem que se queira se vão perdendo uma a uma as ilusões, quando parece... que outra afeição toma o lugar da primeira? Que fazer?

RODRIGO - Sofrer o seu destino.

JULIETA - E mudar... e...

RODRIGO - Quer que lhe diga uma coisa, D. Julieta? Se eu tivesse a infelicidade de amar a uma mulher, cuja afeição pertencesse a outro homem e ela me fizesse essa pergunta, sabe o que lhe responderia?

JULIETA - O quê?

RODRIGO - Responderia que uma mulher deve guardar sempre com o seu primeiro amor a virgindade de sua alma; porque um dia se amar a outro homem desejará dar-lhe toda a sua vida e não lhe poderá dar o seu passado.

JULIETA - Ah!

RODRIGO - Que tem?

JULIETA - Nada. (Perturbada) Quebrei um fio. Mas se o homem a quem ela tivesse amado fosse... indigno dela, não o poderia, não o deveria desprezar?

RODRIGO - Não; é essa sua mais bela missão, regenerar pelo amor aquele que escolheu para seu companheiro na vida.

JULIETA - Assim se essa mulher o amasse, o senhor não aceitaria esse segundo amor?

RODRIGO - Se ela viesse a amar-me, se depois de ter resistido ao impulso do coração, me estendesse a mão?

JULIETA - Sim!...

RODRIGO - Eu lhe diria: só há neste mundo um meio de esquecer o passado, é confiá-lo a um amigo.

JULIETA - Um amigo?

(Aparece PACHECO.)

CENA V

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Os mesmos, PACHECO e HIPÓLITO

PACHECO (entrando) - Oh!... Sr. Rodrigo. RODRIGO - Como passou? Não foi hoje à cidade?

PACHECO - Não; deixei-me ficar para acabar a minha correspondência do paquete que sai amanhã. Aqui trabalho com mais descanso do que no escritório; estou livre dos importunos.

HIPÓLITO - Bom dia, meu pai.

PACHECO - Acabaste de almoçar agora? Não te envergonhas?

HIPÓLITO - De quê? De almoçar?

PACHECO - De almoçar ao meio-dia.

HIPÓLITO - Isto é um objeto de convenção: os homens não sei por que concordaram em levantar-se ao romper do dia e almoçar às oito horas, do mesmo modo que podiam concordar em deitar-se às três horas e acordar para jantar. Ora, eu, que não dei procuração a ninguém para fazer semelhante convenção...

RODRIGO - Reivindicas o teu direito.

HIPÓLITO - E almoço à hora que me apraz.

PACHECO - Não atendes que é uma lei natural...

HIPÓLITO - Sei o que V.M.cê quer dizer. É o tal argumento dos passarinhos que acordam com o tiro de peça...

PACHECO - De todos os animais da criação.

HIPÓLITO - Por isso mesmo: é mais uma distinção que tem o homem do animal o acordar à hora que lhe faz conta.

RODRIGO - Já vê o Sr. Pacheco que há argumentos para tudo.

PACHECO - Qual argumento! É o argumento dos preguiçosos.

HIPÓLITO - Não há mais preguiça depois que se inventou o progresso. A humanidade caminha sempre, dizem os filósofos; portanto, eu que tenho a honra de pertencer à humanidade, ou acordado, ou dormindo, devo progredir.

PACHECO (a RODRIGO) - Se ele começa com as suas teorias, estamos perdidos. (Senta-se.) Como vai o seu projeto de estabelecimento?

RODRIGO - Perfeitamente.

(HIPÓLITO senta-se perto de JULIETA e, de vez em quando trocam palavras em voz baixa.)

PACHECO - Estimo muito! Seu pai, que eu conheci quando ainda éramos ambos caixeiros, podia ter-lhe deixado uma fortuna considerável; talvez maior do que a minha.

RODRIGO - Não lamento essa perda; com a educação que me deu, meu pai deixou-me a melhor herança, e a maior riqueza deste mundo.

PACHECO - Entretanto, podia estar hoje com uma fortuna independente.

RODRIGO - A independência da fortuna não é a que eu mais admiro; prefiro a do caráter.

PACHECO - E tem razão! Mas não seria preciso recorrer aos outros...

RODRIGO - Está enganado, Sr. Pacheco; não recorri a ninguém. Dirigi-me a alguns negociantes e capitalistas, apresentei-lhes a minha idéia para a construção de um caminho de ferro. Aceitaram; formamos uma sociedade; eles deram o seu capital em dinheiro, eu dei o meu em inteligência e trabalho. Parece-me que se neste contrato há superioridade, não é decerto da parte daqueles que forneceram a moeda metálica, fabricada pelos homens, mas sim da parte daquele que contribuiu com a moeda universal criada por Deus.

PACHECO - Ah! Voltamos à tal questão do crédito?

RODRIGO - Decerto, porque ela é atualmente a questão da vida e do progresso.

PACHECO - Pode ser; mas ainda não estou convencido.

RODRIGO - Acredito.

PACHECO - Se o senhor me provasse...

RODRIGO - A luz não se prova, Sr. Pacheco, vê-se.

HIPÓLITO - Apoiado! (Entra D. ANTÔNIA.)

CENA VI

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Os mesmos e D. ANTÔNIA

D. ANTÔNIA (a JULIETA) - Julieta, está aí aquela menina cega para quem coseste o vestido. Não queres dar-lho?

JULIETA - Sim, minha mãe!

HIPÓLITO - Ah! É nisto que trabalhas?

JULIETA (levando o dedo à boca) - Psiu! Ninguém lhe perguntou!

RODRIGO (a HIPÓLITO) - Foste indiscreto! A caridade é uma flor que vive na sombra e desmaia ao sol: não se vê, sente-se! Não é assim, D. Julieta?

JULIETA (confusa) - Eu já volto! (Sai.)

D. ANTÔNIA - Tens dinheiro na carteira, Pacheco?

PACHECO - Não; mas vou buscar. Quanto queres?

D. ANTÔNIA - Dei mil-réis para dar a uma menina cega, filha de uma pobre mulher...

PACHECO - Dá-lhe vinte se ela merece.

D. ANTÔNIA - Basta ter perdido a vista. Pode haver maior desgraça?...

PACHECO - Decerto. (D. ANTÔNIA vai sair. PACHECO sai.)

HIPÓLITO - Então eu não dou nada? (Mete a mão no bolso.)

D. ANTÔNIA - Não precisa, Hipólito.

HIPÓLITO - Mas eu quero, minha mãe; se fosse um hábil cirurgião far-lhe-ia a operação. Mas...

D. ANTÔNIA (sorrindo) - Ainda és estudante.

HIPÓLITO - E estudante vadio; portanto dou-lhe o preço da minha cadeira no Teatro Lírico. Hoje não ouvirei a Charton. (Dá uma moeda de prata de dois mil-réis. Entra JULIETA.)

D. ANTÔNIA - Mas para quê?...

HIPÓLITO - Dê, minha mãe. (D. ANTÔNIA sai.)

RODRIGO - Só eu é que não tomo parte nesta boa ação...

JULIETA - Mais do que todos!

HIPÓLITO - É verdade! (PACHECO atravessa ao fundo para ir ter com D. ANTÔNIA.)

RODRIGO - Corno assim?

JULIETA (sorrindo) - "A caridade é uma flor que vive na sombra"...

HIPÓLITO (ri-se) - Muito bem, Julieta. (Para RODRIGO) E eu não quero ser indiscreto.

RODRIGO (sorrindo) - É justo!... (Entra PACHECO.)

PACHECO - Ora tornemos à nossa conversa, Sr. Rodrigo.

RODRIGO - Sobre?...

PACHECO - Sobre a grande questão.

RODRIGO - É inútil... Falemos doutras coisas... Há pouco passou-se aqui um fato bem pequeno; deu-se uma esmola; deu-se tão delicada e tão generosa como se podia desejar. Não foi só dinheiro, foi o sentimento que ele exprimia, e o que é mais que tudo, foi o trabalho de mãos mimosas...

JULIETA (confusa) - Não fale nisto!

RODRIGO (sorrindo) - Deixe; não direi quem é... foi o trabalho de mãos que descalçam a luva para coser a roupa do pobre. Não é possível que a caridade tenha mais graça, mais delicadeza, mais escrúpulo mesmo. Pois bem, no fim de contas, tudo isto não passou de uma esmola.

PACHECO - Então?...

RODRIGO - A esmola é uma generosidade para quem a dá, às vezes é simples vaidade. Para quem a recebe é sempre uma humilhação.

D. ANTÔNIA - Por quê?

RODRIGO - Porque Deus deu as mãos ao homem para trabalhar e não para pedir; porque a vida de toda a criatura deve ser uma luta e não uma súplica.

JULIETA - Mas aqueles que nada têm?

RODRIGO - Os que nada têm, têm ainda a coragem, a força e os braços.

D ANTÔNIA - E se isto lhes falta? Se estão doentes?

RODRIGO - Não me refiro à criatura que a desgraça coloca nessa situação extrema de sentir a fome; então não é a alma que fala, é o corpo que solta o grito supremo da conservação; é a matéria que sucumbe. A estes devemos socorrer como se socorre um naufrágio ou um incêndio; mas não atirar-lhes a esmola como se fossem cães.

PACHECO - Oh!

RODRIGO - A verdadeira caridade, Sr. Pacheco, é a que evita a miséria e não a que a alivia.

JULIETA - Ah!

D. ANTÔNIA - Tu compreendes?

JULIETA (confusa) - Creio que sim.

RODRIGO - Então que dizes, Pacheco?

PACHECO - Na verdade!...

RODRIGO - Compare agora a sua esmola com o crédito. Há pouco o senhor gastou vinte mil-réis para sustentar essa menina durante uma semana; eu com o simples empréstimo de onze dei a uma criatura uma profissão honesta.

PACHECO - Bem! Neste ponto acho-lhe razão...

RODRIGO - Em todos, Sr. Pacheco. Se da última classe da sociedade subir à mais alta, verá a mesma coisa. Há uma espécie de miséria que não se enxerga porque esconde-se sob aparências enganadoras; mas que se adivinha, pelo traço que deixam as lágrimas, pela palidez das vigílias. É a miséria coberta de seda e de gala; que sorri nos lábios e chora no coração. Foi criada pelos prejuízos da sociedade que exige que o homem pareça o que não é. Sabe o que há de extingui-la um dia? É o crédito. (Ergue-se.)

PACHECO - De que maneira? Explique-se! (Entra MACEDO.)

RODRIGO - Ah! O senhor começa a interessar-se! Pois o melhor meio de estudar estas coisas, é pela experiência.

PACHECO - Não há dúvida.

RODRIGO - Se quer, eu lhe darei ocasião de obter a prova material.

PACHECO - Estimarei muito.

RODRIGO - Prometo-lhe; talvez esteja mais perto do que pensa.

(Sai. HIPÓLITO ergue-se e acompanha-o.)

CENA VII

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Os mesmos e MACEDO

(MACEDO tem entrado e cumprimentado a todos os que estão presentes.)

MACEDO (a D. ANTÔNIA) - Venho da Lagoa, fui encomendar duas camélias para amanhã.

D. ANTÔNIA - Há algum baile?

MACEDO - Não, o jantar de D. OLÍMPIA. Ela gosta da tal flor, talvez unicamente pela razão de custar caro.

PACHECO - Por aqui a esta hora é milagre!

MACEDO - Estava mesmo explicando a D. Antônia... Passando, não quis deixar de entrar.

(D. ANTÔNIA deixa os dois sós. JULIETA sai um momento; RODRIGO passeia no fundo com HIPÓLITO e saem.)

PACHECO - Pois hoje deixei-me ficar. Que há pela cidade? (RODRIGO e HIPÓLITO saem.)

MACEDO - Nada. O Oliveira tem aparecido?

PACHECO - Todas as tardes.

MACEDO - Não o vejo há dias; mas tive ontem boas notícias dele. Aquelas letras que lhe endossaste no valor de setenta contos, serviram para uma operação magnífica. O capital já está salvo; e os lucros excedem a cinqüenta por cento. Fizeste bem em ajudá-lo, seguiste o meu conselho.

PACHECO - Estás enganado. Ninguém me tira de que fiz uma asneira; mas Julieta e minha mulher quiseram.

MACEDO - Não te hás de arrepender. O rapaz vai numa carreira brilhante.

CENA VIII

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PACEIECO, MACEDO, OLIVEIRA e D. ANTÔNIA


OLIVEIRA - Como passaram?

D. ANTÔNIA - Sr. Oliveira!

PACHECO (voltando-se) - Oh! Hoje é o dia das surpresas!

MACEDO - É verdade! Agora mesmo queixava-me do senhor.

OLIVEIRA - Por quê?

MACEDO - Não aparece mais...

OLIVEIRA (sorrindo) - Tenho tido muito o que fazer!

MACEDO - Já soube! A fortuna o protege em tudo.

D. ANTÔNIA - Ela sabe o que faz!

MACEDO - Decerto.

D. ANTÔNIA - Julieta estava aqui... Vou chamá-la. (Sai.)

OLIVEIRA (a PACHECO) - Tenho que falar-lhe em particular, Sr. Pacheco.

PACHECO - Vamos então para o meu gabinete. (Baixo a MACEDO) Teremos mais letras a endossar.

PACHECO (saindo) - Venha!

MACEDO - E eu não posso demorar-me; adeus.

PACHECO - Até amanhã. (Sai.)

MACEDO (a OLIVEIRA) - Pode falar: já lhe dei o mel pelos beiços.

OLIVEIRA - Sempre tenho algum receio.

MACEDO - Qual! Peça-lhe que marque o dia o mais breve possível; este sábado ou o outro... Pelo resto eu respondo. Todos já sabem que o senhor casa. D. Olímpia tem-se incumbido de divulgar; mas é preciso que saibam oficialmente. Então o Pacheco que se torça...

OLIVEIRA - Enfim; vamos a ver o que se arranja... (Sai.)

CENA IX

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MACEDO, D. ANTÔNIA, JULIETA, OLÍMPIA e CRISTINA

(MACEDO toma o chapéu e vai sair.)

D. ANTÔNIA - O Oliveira?

MACEDO - Está no gabinete com o Pacheco.

D. ANTÔNIA - E o senhor já vai?

MACEDO - Se me dá licença.

D. ANTÔNIA - Jante conosco.

MACEDO - Não posso. (Vai saindo.)

JULIETA (a D. ANTÔNIA) - Aí está D. Olímpia.

D. ANTÔNIA (voltando-se) - Entre, entre!

OLÍMPIA - Estou morta de fadiga; corri aquela Rua do Ouvidor cinco ou seis vezes! (Senta-se.) Espere, Sr. Macedo. (MACEDO senta-se.)

JULIETA - Não falas comigo, Cristina?

CRISTINA - Já não te beijei?

OLÍMPIA - Comprei as coisas mais lindas que é possível, D. Antônia! Um vestido o que há de mais moderno e de melhor gosto! Flores de Constantino!...

D. ANTÔNIA - Então preparou-se para os bailes?

OLÍMPIA - Não; comprei por comprar. É sempre assim; quando vou à Rua do Ouvidor, gasto duzentos ou trezentos mil-réis sem necessidade; mas que se há de fazer do dinheiro? Borges zanga-se; eu rio-me.

MACEDO - Não lhe custa a ganhar! (Ri-se.)

JULIETA - Sabe, D. Olímpia; estou muito queixosa da senhora.

OLÍMPIA - Que lhe fiz eu?

JULIETA - Não deixa Cristina vir ver-me como costumava.

OLÍMPIA - Ao contrário... Ela é que tem sempre um motivo para não vir... Eu já desconfiei de algum arrufo..

CRISTINA - Tenho estado doente; não lhe disse, mamãe?

OLÍMPIA - Sim... Mas, D. Julieta, ia me esquecendo... Dê cá um abraço...

JULIETA - Por quê?

OLÍMPIA - Ande lá! Hoje na cidade não me falavam de outra coisa; e todos achavam que não podia haver melhor escolha.

JULIETA - Mas de quê?

OLÍMPIA - Não queira esconder; já todo mundo sabe.

JULIETA - Menos eu.

OLÍMPIA - Quando é o dia?

D. ANTÔNIA - Ainda não está marcado.

MACEDO - Por ora ainda é segredo!

JULIETA (perturbada) - Não gosto que me falem nisto, D. Olímpia; sempre cuidei que as amigas guardassem melhor o que se lhes diz em confidência.

CRISTINA - Não me acuses, Julieta. Mamãe que diga se ouviu de mim. Sou uma criança; mas sei guardar um segredo.

OLÍMPIA - Foi agora na cidade que me disseram.

JULIETA (a CRISTINA) - Perdoa!

CRISTINA - Foste injusta.

JULIETA - Confesso.

(Entram RODRIGO e HIPÓLITO. RODRIGO vendo D. OLÍMPIA, quer sair.)

CENA X

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Os mesmos. RODRIGO e HIPÓLITO

OLÍMPIA - Ah! Sr. Rodrigo, venha cá; quero ralhar com o senhor.

RODRIGO - Por que razão, D. Olímpia?

OLÍMPIA - Não apareceu ontem à noite; eu esperei.

RODRIGO - Não me foi possível...

OLÍMPIA - Diga que se aborreceu! Passar todas as noites na mesma casa.

RODRIGO - Para mim é muito agradável. (D. OLÍMPIA fala-lhe ao ouvido.)

JULIETA (perturbada, a CRISTINA) - Ele tem ido todas estas noites à tua casa?

CRISTINA - Vai conversar com papai. De que te admiras?

RODRIGO (chegando-se a CRISTINA) - Está mal comigo? Não me quer falar?

CRISTINA (estendendo-lhe a mão) - Eu é que devia fazer-lhe essa pergunta! Já lhe falei hoje.

RODRIGO - Quando?

CRISTINA - Quando ia para a cidade, encontrei-o, disse-lhe adeus; mas o senhor não viu; estava distraído.

JULIETA - O Sr. Rodrigo anda sempre distraído. Há pouco disse-nos que tinha estado tão ocupado esta semana que não pode fazer uma só visita.

RODRIGO - É exato, D. Julieta, foi uma distração. (Voltando-se) Hipólito!...

CRISTINA (perturba-se) - Adeus!... Mamãe, vamos!...

OLÍMPIA (erguendo-se) - Sim; quem me acompanha até a casa?

HIPÓLITO (a RODRIGO) - Que me queres?

RODRIGO (afastando-se com ele) - Nada; desejava ver o efeito que produzia o teu nome!

OLÍMPIA (a RODRIGO) - Até logo! Hoje não tem desculpa. E você, Hipólito, apareça!

CRISTINA (beijando JULIETA) - Quer-me bem; e não sejas tão desconfiada.

JULIETA - Não; de quê?

CRISTINA - O que parece nem sempre é.

OLÍMPIA - Até amanhã, D. Antônia! Venha, Sr. Macedo.

MACEDO (secamente) - Volto para a cidade. Desculpe...

OLÍMPIA - Ora, dê-me o braço!. . . D. Julieta, não fique sentida comigo por causa do que... (Vão saindo à exceção de RODRIGO e HIPÓLITO.)

CENA XI

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RODRIGO e HIPÓLITO

HIPÓLITO - Está dito. Ela faz tanto caso de mim, como eu da medicina.

RODRIGO - E tem muita razão.

HIPÓLITO Obrigado! É o que faltava.

RODRIGO - Ora, Hipólito, falemos francamente. Que qualidade tens tu para merecer o amor de uma mulher? Daqui a dois meses estarás formado, terás um título de doutor; isto é, mais cinco letras no nome!

HIPÓLITO - Bravo! cada vez a melhor! Na tua opinião não presto para nada.

RODRIGO - Tens sempre algum préstimo; mas é para teu alfaiate; e para aqueles que te fumam os charutos, passeiam no teu cavalo, e jantam à tua custa.

HIPÓLITO - E também para uma menina que deseja casar.

RODRIGO - Queres dizer que és rico? Mas a riqueza é o último dos títulos, e só se invoca em falta de outros. Quando se diz de um homem que - "É rico" - sabes o que isto exprime? Que tem dinheiro, mas só dinheiro. Supõe que eu me enganasse a respeito de Cristina; que ela seja uma menina de sentimento; há de escolher um moço distinto e digno dela.

HIPÓLITO - Qual! Não passa de uma namoradeira.

RODRIGO - És incompreensível. Uma menina te ama, tu dizes que é pelo teu dinheiro; ela deixa de amar-te, dizes que é namoradeira.

HIPÓLITO - Não foste tu mesmo que me fizeste ver?

RODRIGO - Mas lembra-te que ela também pode ver hoje que o moço com quem brincava quando menina, não passa de um estudante vadio, que um dia será um homem rico, e nada mais. (Entra JULIETA.)

CENA XII

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JULIETA, PACHECO, OLIVEIRA, HIPÓLITO e RODRIGO

HIPÓLITO (a JULIETA) - Viste?

JULIETA - Vi tudo!

PACHECO (entrando com OLIVEIRA) - Aqui está ela, pode falar-lhe.

OLIVEIRA - D. Julieta!

(OLIVEIRA e JULIETA descem. PACHECO fala com RODRIGO. HIPÓLITO senta-se no fundo.)

JULIETA (perturbada) - Minha mãe me disse que o senhor me procurava!

OLIVEIRA - É verdade.

JULIETA - Para quê?

OLIVEIRA - Para pedir-lhe a felicidade.

JULIETA (ainda mais perturbada) - Que quer dizer, senhor?

OLIVEIRA - Cuidei que tivesse força para esperar, mas vejo que é impossível, o amor é mais forte do que a ambição, Julieta; e hoje só espero que marque o dia.

JULIETA - Que dia?

OLIVEIRA - Do nosso casamento.

JULIETA (assustada olhando RODRIGO) Falemos mais baixo!

OLIVEIRA - Por quê? Isto já não é um segredo.

JULIETA - Muitos não sabem... e eu não quero que saibam.

OLIVEIRA - Por alguns dias apenas, sábado...

JULIETA - Este?

OLIVEIRA (sorrindo) - Não, da outra semana.

JULIETA - Mas eu...

OLIVEIRA - Seu pai concordou e só falta o seu consentimento (pausa.) Quer consultar com ele? (Volta-se.)

JULIETA - Não! Não!

OLIVEIRA - Sr. Pacheco!

JULIETA - Não é preciso!

OLIVEIRA - Então consente?

JULIETA (com esforço) - Sim!

(PACHECO aproxima-se de OLIVEIRA; JULIETA afasta-se; RODRIGO chega-se a HIPÓLITO.)

PACHECO - Que temos?

OLIVEIRA - Está tudo combinado.

PACHECO - Bem!

OLIVEIRA - Onde está D. Antônia? (dirige-se para a sala de jantar. PACHECO o acompanha; aí encontram D. ANTÔNIA; ao mesmo tempo RODRIGO dirige-se a JULIETA.)

RODRIGO - Adeus, seja feliz.

JULIETA (admirada e confusa) - O senhor sabe?

RODRIGO (sorrindo) - Há tanto tempo! (Aperta-lhe a mão e vai sair.)

JULIETA - Por isso... (senta-se abatida.)

RODRIGO - Adeus, Hipólito!

HIPÓLITO - Adeus. (Dirige-se a JULIETA, olha-a um momento) Somos bem irmãos, não é verdade?

JULIETA - Oh! Sim... (Cai o pano.)