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O Domínio Público no Direito Autoral Brasileiro/Capítulo 3/3.3.

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3.3. Função do Domínio Público

 
 

3.3.1. A Funcionalização dos institutos

 

A concepção de função social não é recente[1]. Ainda assim, “[s]e aplicarmos à teoria do direito a distinção entre abordagem estruturalista e abordagem funcionalista,



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234 O fenômeno já vem se verificando e por isso não pode ser ignorado. A internet facilita a difusão de canais para obras em domínio público voluntário serem publicadas. Algumas obras audiovisuais licenciadas em Creative Commons se iniciam com o texto: “no limite permitido em lei, [nome] renunciou a todos os direitos autorais, direitos morais, direitos a bases de dados e quaisquer outros direitos que possam ser alegados sobre o filme que se segue”. Parecenos que é o quanto basta para que o autor demonstre de modo irrefutável seu desejo de dedicar a obra ao domínio público. Ver, entre outros, websites como Wikipedia (http://en.wikipedia.org/wiki/Category:All_user-created_public_domain_images) e Vimeo (http://vimeo.com/publicdomain), que contam com seções específicas onde obras em domínio público voluntário podem ser encontradas.

235 REBOLLO, César Iglesias. Software Libre y Otras Formas de Domínio Público Anticipado. Cit.; p. 201.

236 John Locke, em seu “Segundo Tratado sobre o Governo”, já havia atentado para os benefícios da boa utilização da terra. Ainda que seu objetivo fosse, em última análise, justificar a propriedade a partir do trabalho, vale citá-lo quando sua construção parece aplicar-se tão bem às discussões hoje em dia travadas acerca da produtividade rural e sua respectiva função: “[a]ntes de refletirmos com atenção, poderá parecer estranho que a propriedade do trabalho seja capaz de contrabalançar o valor da terra comunitária; na realidade, é o trabalho que provoca a diferença de valor nas coisas que nos rodeiam. Consideremos a diferença que existe entre um acre de terra plantado com fumo ou cana-de-açúcar, semeado de trigo ou cevada e um acre da mesma terra comunitária sem qualquer cultura, e verificaremos que a melhoria devida ao trabalho constitui a maior parte do valor respectivo. Acho que será cálculo bem cauteloso afirmar que, dos produtos da terra úteis à vida do homem, nove décimos são devidos ao trabalho; ainda mais, se avaliarmos corretamente aquilo que nos chega às mãos para nosso uso e calcularmos os diversos custos correspondentes, tanto o que se deve apenas à natureza quanto o que é gerado pelo trabalho, verificaremos que em muitos deles noventa e nove centésimos têm de ser atribuídos ao trabalho”. LOCKE, John. Segundo Tratado sobre o Governo. São Paulo: Martin Claret, 2006, p. 45. A partir de uma evidente influência religiosa, que perpassa toda a obra de Locke, o autor irá ainda alertar para o fato de que, mesmo que o trabalho possa justificar a propriedade — já que aquele que se dedica a determinada colheita tem o direito de dela se tornar proprietário em razão de seu trabalho —, o trabalhador teria que ter o cuidado de usufruir a colheita antes que esta se estragasse, “para não tomar para si parte maior do que lhe cabia, com prejuízo de terceiros”. LOCKE, John. Segundo Tratado sobre o Governo. Cit.; p. 48. O mesmo fundamento busca Rousseau, ao indagar: “[i]gnorais que uma multidão de vossos irmãos perece ou sofre da necessidade daquilo que tendes demais, e que precisaríeis de um consentimento expresso e unânime do gênero humano para vos da qual os cientistas sociais fazem grande uso para diferençar e classificar as suas teorias, não resta dúvida de que, no estudo do direito em geral (de que se ocupa a teoria geral do direito), nesses últimos cinquenta anos, a primeira abordagem prevaleceu sobre a segunda”[1]. Um claro exemplo dessa prevalência é a teoria pura do direito, de Kelsen, que se inicia propondo responder à questão “o que é e como é o Direito”[2]?

A constatação acima, de Norberto Bobbio, nos leva à inevitável conclusão de que “aqueles que se dedicaram à teoria geral do direito se preocuparam muito mais em saber ‘como o direito é feito' do que ‘para que o direito serve'”[3].

Ocorre que a “função do direito na sociedade não é mais servir a um determinado fim (onde a abordagem funcionalista do direito resume-se, em geral, a individualizar qual é o fim específico do direito), mas a de ser um instrumento útil para atingir os mais variados fins”[4]. Bobbio prossegue afirmando que definir quais são “afinal, esses fins, é algo que varia de uma sociedade para outra: trata-se de um problema histórico que, como tal, não interessa à teoria [kelseniana] do direito”. E prossegue[5]:

 

A função de um ordenamento jurídico não é somente controlar os comportamentos dos indivíduos, o que pode ser obtido por meio da técnica das sanções negativas, mas também direcionar os comportamentos para certos objetivos preestabelecidos. Isso pode ser obtido, preferivelmente, por meio da técnica das sanções positivas e dos incentivos. (...) Creio, portanto, que hoje seja mais correto definir o direito, do ponto de vista funcional, como forma de controle e de direção social.

 

O momento atual é de “revalorização do interesse nos institutos e nas situações subjetivas, [o que] constitui a perspectiva mais natural para rever criticamente a excessiva consideração reservada ao perfil estrutural — que, frequentemente, é o critério



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apropriardes de tudo que na subsistência comum vai além da vossa?” ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discurso sobre a Origem e os Fundamentos da Desigualdade entre os Homens. São Paulo: Martin Claret, 2009, p. 72.

237 BOBBIO, Norberto. Da Estrutura à Função. Barueri: Manole, 2007; p. 53.

238 “Como teoria, quer única e exclusivamente conhecer o seu próprio objeto. Procura responder a esta questão: o que é e como é o Direito? Mas já não lhe importa a questão de saber como deve ser o Direito, ou como deve ser feito. É ciência jurídica e não política do Direito”. KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 2006; p. 1.

239 BOBBIO, Norberto. Da Estrutura à Função. Cit.; p. 53. Bobbio apresenta uma síntese das distinções ideológicas entre Herbert Hart e Hans Kelsen. O primeiro desenvolve uma teoria em que estrutura e função aparecem estreitamente ligadas. Já “[n]a obra de Kelsen, não só a análise funcional e estrutural estão declaradamente separadas, como esta separação é a base teórica sobre a qual ele funda a exclusão da primeira em favor da segunda. Como todos sabem, para o fundador da teoria pura do direito, uma teoria científica do direito não deve se ocupar da função do direito, mas tão-somente dos seus elementos estruturais. A análise funcional é confiada aos sociólogos e, talvez, aos filósofos. O movimento em direção ao estudo da estrutura do ordenamento jurídico foi favorecido por uma rígida divisão do trabalho entre juristas (que observam o direito a partir de seu interior) e sociólogos (que o observam a partir do seu exterior). A distinção hartiana entre ponto de vista externo e interno, que dá tanto pano para a manga aos seus intérpretes, pode ser considerada como uma justificação daquela divisão do trabalho entre sociólogos e juristas, que em Kelsen, ao contrário, fundava-se sobre o dualismo entre esfera do ser e do dever ser, entre leis naturais e normas jurídicas, entre relação de causalidade e de imputação. Que a teoria pura do direito se ocupe da estrutura, e não da função do direito, é algo que Kelsen declara explicitamente em inúmeras ocasiões”. BOBBIO, Norberto. Da Estrutura à Função. Cit.; pp. 54-55.

240 BOBBIO, Norberto. Da Estrutura à Função. Cit.; p. 55.

241 Grife no original. BOBBIO, Norberto. Da Estrutura à Função. Cit.; p. 79. classificatório preferido nas análises — e para recuperar a tipologia histórico-social na ‘construção jurídica'”[1]. Assim, “[e]struturas idênticas se distinguem pela diversidade de sua função, funções idênticas se realizam mediante estruturas diversas”.

A esse respeito, Perlingieri comenta, com adequação[2]:

 

Da jurisprudência dos interesses e das funções sócio-jurídicas, da mais aprofundada jurisprudência valorativa recebe impulso a orientação que propõe como objetivo funcionalizar as situações subjetivas e em geral os conjuntos de normas. São utilizadas etiquetas tradicionais para novas e mais modernas funções jurídicas: das formas de propriedade aos diversos contratos. Aspectos considerados extensos aos institutos, ou excepcionais em relação a eles, são reabilitados sob o perfil funcional.

 

Em um ordenamento onde a Constituição Federal exerce papel central, não apenas por sua importância ontológica, mas especialmente por servir de vetor interpretativo, tendo sempre a dignidade da pessoa humana como norte hermenêutico, incumbirá à própria Carta Magna apontar, direta ou indiretamente, as funções (ao menos com o significado de “direções sociais” proposto por Bobbio) que o direito deve perseguir.

Nesse cenário, podemos citar, a título de exemplo, que a CF/88 determina que a propriedade deverá atender sua função social[3] e que às empresas públicas e às sociedades de economia mista deverá ser atribuída uma função, nos termos de lei específica[4]. O CCB, por seu turno, prevê a função social do contrato[5] e ratifica a função so-

cial da propriedade prevista constitucionalmente[6]. Lembramos que a funcionalização dos institutos era estranha ao Código Civil de 1916. Entretanto, a partir do mandamento constitucional, o art. 1.228 do CCB, fez constar que:

 

Art. 1.228. O proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha.

§ 1<ref>o ref direito de propriedade deve ser exercido em consonância com as suas finalidades econômicas e sociais e de modo que sejam preservados, de conformidade com o estabelecido em lei especial, a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico



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242 PERLINGIERI, Pietro. O Direito Civil na Legalidade Constitucional. Cit.; pp. 117-118.

243 PERLINGIERI, Pietro. O Direito Civil na Legalidade Constitucional. Cit.; pp. 118-119.

244 CF/88, Art. 5º, XXIII: a propriedade atenderá sua função social.

245 CF/88, Art. 173. Ressalvados os casos previstos nesta Constituição, a exploração direta de atividade econômica pelo Estado só será permitida quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo, conforme definidos em lei. § 1º A lei estabelecerá o estatuto jurídico da empresa pública, da sociedade de economia mista e de suas subsidiárias que explorem atividade econômica de produção ou comercialização de bens ou de prestação de serviços, dispondo sobre: I — sua função social e formas de fiscalização pelo Estado e pela sociedade; (...)

246 CCB, Art. 421. A liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato.

247 CCB, Art. 2.035. A validade dos negócios e demais atos jurídicos, constituídos antes da entrada em vigor deste Código, obedece ao disposto nas leis anteriores, referidas no art. 2.045, mas os seus efeitos, produzidos após a vigência deste Código, aos preceitos dele se subordinam, salvo se houver sido prevista pelas partes determinada forma de execução. Parágrafo único. Nenhuma convenção prevalecerá se contrariar preceitos de ordem pública, tais como os estabelecidos por este Código para assegurar a função social da propriedade e dos contratos. e o patrimônio histórico e artístico, bem como evitada a poluição do ar e das águas.

§ 2º São defesos os atos que não trazem ao proprietário qualquer comodidade, ou uti- lidade, e sejam animados pela intenção de prejudicar outrem.

[...]


Bem se nota, a partir da leitura do artigo transcrito, que seu § 1º, “ao vincular o exercício do direito de propriedade às suas finalidades econômicas e sociais, visa a perseguir a tutela constitucional da função social, reclamando uma interpretação que, para além da mera admissão de eventuais e contingentes restrições legais ao domínio, possa efetivamente dar um conteúdo jurídico ao aspecto funcional das situações proprietárias”[1]. Com o mesmo espírito, mas com previsão de caráter proibitivo, o disposto no § 2º acima.

No entanto, não é apenas por meio de previsão expressa no texto legal que se impõe a função social de determinado instituto[2]. Assim é que também o direito autoral, ainda que a CF/88 e a LDA sejam silentes acerca do assunto, deve cumprir com sua função social. Nesse sentido, alerta Guilherme Carboni que “[o] direito de autor tem como função social a promoção do desenvolvimento econômico, cultural e tecnológico, mediante a concessão de um direito exclusivo para a utilização e exploração de determinadas obras intelectuais por um certo prazo, findo o qual a obra cai em domínio público e pode ser utilizada livremente por qualquer pessoa”[3].

De modo a detalhar o tema, apontando de que forma se torna efetiva a função social do direito autoral, esclarece Carboni[4]:

 

Assim, podemos dizer que a regulamentação da função social do direito de autor tem como base uma forma de interpretação que permite aplicar ao direito de autor restrições relativas à extensão da proteção autoral (“restrições intrínsecas”) — notadamente no que diz respeito ao objeto e à duração da proteção autoral, bem como às limitações estabelecidas em lei — além de restrições quanto ao seu exercício (“restrições extrínsecas”) — como a função social da propriedade e dos contratos, a teoria do abuso de direito e das regras sobre desapropriação para divulgação ou reedição de obras intelectuais protegidas — visando a correção de distorções, excesso e abusos praticados por particulares no gozo desse direito, para que o mesmo possa cumprir a sua função social de promover o desenvolvimento econômico, cultural e tecnológico.


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248 TEPEDINO, Gustavo. Contornos Constitucionais da Propriedade Privada. Cit.; p. 324. Em obra organizada pelo mesmo Gustavo Tepedino, pode-se ler como um dos paradigmas da perspectiva contemporânea do direito civil a “funcionalização dos institutos jurídicos à tábua axiológica da Constituição, com a submissão de todas as situações jurídicas subjetivas a controle de merecimento de tutela, com base no projeto constitucional”. MONTEIRO FILHO, Carlos Edison do Rêgo. Rumos Cruzados do Direito Civil Pós-1988 e do Constitucionalismo de Hoje. Direito Civil Contemporâneo — Novos Problemas à Luz da Legalidade Constitucional. São Paulo: ed. Atlas, 2008; p. 265.

249 “Dever do jurista, e especialmente do civilista, é ‘reler' todo o sistema do código e das leis especiais à luz dos princípios constitucionais e comunitários, de forma a individuar uma nova ordem científica que não freie a aplicação do direito e seja mais aderente às escolhas de fundo da sociedade contemporânea”. PERLINGIERI, Pietro. O Direito Civil na Legalidade Constitucional. Cit.; p. 137.

250 CARBONI, Guilherme. Função Social do Direito de Autor. Cit.; p. 97.

251 CARBONI, Guilherme. Função Social do Direito de Autor. Cit.; p. 98. De modo a permitir que o direito autoral cumpra com sua função, algumas práticas são mencionadas. Entre outras, podemos citar a “desapropriação” de obra intelectual[1], a licença compulsória[2] e a definição e o uso de obras órfãs[3], todas relacionadas, portanto, à função social dos direitos autorais.


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252 O instituto da desapropriação é típico do direito administrativo. De acordo com José dos Santos Carvalho Filho, “[d]esapropriação é o procedimento de direito público pelo qual o Poder Público transfere para si a propriedade de terceiro, por razões de utilidade pública ou de interesse social, normalmente mediante o pagamento de indenização” (grifo do autor). CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. Cit., p. 626. José dos Santos Carvalho Filho prossegue com o tema, ao informar: “[c]omo regra, a desapropriação pode ter por objeto qualquer bem móvel ou imóvel dotado de valoração patrimonial. É com esse teor que se pauta o art. 2º do Decreto-Lei n. 3.365/41, no qual se encontra consignado que ‘todos os bens podem ser desapropriados' pelas entidades da federação. Deve-se, por conseguinte, incluir nessa expressão os bens móveis ou imóveis, corpóreos ou incorpóreos. Em razão dessa amplitude, são também desapropriáveis ações, cotas ou direitos relativos ao capital de pessoas jurídicas”. CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. Cit., p. 630 (grifos' do autor). Como limites à possibilidade de desapropriação de bens, o autor conclui: “[h]á, entretanto, algumas situações que tornam impossível a desapropriação. Pode-se agrupar tais situações em duas categorias: as impossibi-' lidades jurídicas e as impossibilidades materiais. Impossibilidades jurídicas são aquelas que se referem a bens que a própria lei considere insuscetíveis de determinado tipo de desapropriação. Como exemplo, temos a propriedade produtiva, que não pode ser objeto de desapropriação para fins de reforma agrária, como emana do art. 185, II, da CF (embora possa sê-lo para desapropriação de outra natureza). Entendemos que aí também se situa a hipótese de desapropriação, por um Estado, de bens particulares situados em outro Estado; a desapropriação é poder jurídico que está associado ao fator território, de modo que permitir esse tipo de desapropriação implicaria vulneração da autonomia estadual sobre a extensão de seu território. De outro lado, impossibilidades materiais são aquelas pelas quais alguns bens, por sua própria natureza, se tornam inviáveis de ser desapropriados. São exemplos dessas impossibilidades a moeda corrente, porque é ela o próprio meio em que se materializa a indenização; os direitos personalíssimos, como a honra, a liberdade, a cidadania; e as pessoas físicas ou jurídicas, porque são sujeitos, e não objetos, de direito”. (grifos do autor). CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. Cit., pp. 630-631. Tal teoria somente poderá ser encampada por aqueles que defendem ser o direito autoral objeto de propriedade. Conforme já esclarecemos no primeiro capítulo, não partilhamos de tal entendimento. Por isso, acreditamos que a desapropriação de direitos autorais se enquadre entre as impossibilidades jurídicas (pois que não se poderia desapropriar algo que não constitui propriedade). Por outro lado, Eliane Abrão (ABRÃO, Eliane Y.. Direitos de Autor e Direitos Conexos. Cit.; p. 143) entende ser possível a desapropriação de obras protegidas por direitos autorais. De toda sorte, ainda que se advogue tal possibilidade, a desapropriação, se consumada, não acarretaria o ingresso da obra em domínio público, mas tão-somente a perda da propriedade por parte de seu titular.

253 A licença compulsória é instituto típico das patentes e encontra previsão legislativa entre os arts. 68 e 74 da Lei de Propriedade Industrial. Prevê o art. 78 que “o titular ficará sujeito a ter a patente licenciada compulsoriamente se exercer os direitos dela decorrentes de forma abusiva, ou por meio dela praticar abuso de poder econômico, comprovado nos termos da lei, por decisão administrativa ou judicial”. Além disso, o §1º do referido artigo estipula dois outros casos de licenciamento compulsório de patentes. O primeiro é “a não exploração do objeto da patente no território brasileiro por falta de fabricação ou fabricação incompleta do produto, ou, ainda, a falta de uso integral do processo patenteado, ressalvados os casos de inviabilidade econômica, quando será admitida a importação” e o segundo, “a comercialização que não satisfizer às necessidades do mercado”. A LDA não prevê o mecanismo de licença compulsória para obras protegidas por direitos autorais. Ainda assim, a possibilidade existe por conta do Anexo à Convenção de Berna (a partir especialmente de seus arts. 2º e 3º), que autoriza países em desenvolvimento a, por meio de licenças compulsórias, traduzir ou reproduzir obras protegidas por direitos autorais desde que observadas determinadas condições. Em que pese a dificuldade (muito por conta de minudência de referidos dispositivos) de implementação das licenças compulsórias no âmbito do direito autoral, a faculdade é juridicamente possível. Ainda assim, mesmo que seja efetivamente aplicada, não podemos considerar que tal licença tenha por consequência o ingresso da obra em domínio público nem que antecipe seus efeitos. Continua a obra a ser protegida nos termos da lei, seu titular goza de direitos patrimoniais e a licença pública, nesse particular, não passa de uma forma de limitação temporária aos direitos do autor.

254 Eduardo Lycurgo Leite analisou o problema das obras órfãs a partir da proposta norte-americana de sua regulamentação. Afirma o autor, a respeito da definição de obra órfã: “[e]m que pese o Copyright Office ter afirmado que o termo obras órfãs referia-se à categoria de obras cujo ‘criador' não é conhecido ou possa ser encontrado, a Por meio de outra abordagem, Allan Rocha de Souza encara a efetivação da função social dos direitos autorais por meio de quatro perspectivas: (i) os particulares e o uso de licenças públicas (como Creative Commons); (ii) a desapropriação pelo poder executivo; (iii) a conformação das leis pelo poder legislativo e (iv) a interpretação das leis pelo poder judiciário[1].

Naturalmente, a análise da função social não encontra seu ponto final nos direitos autorais. O domínio público, como os demais institutos, deve ser funcionalizado.

 

3.3.2. Função Social do Domínio Público

 

Para que serve o domínio público? Esta é a indagação que se busca responder quando do exame de sua função social. Naturalmente, como se passa com quase qualquer questão jurídica, a pergunta não conta com respostas evidentes e fechadas.

Ao longo deste trabalho, tivemos diversas oportunidades de explicar os fundamentos de existência do domínio público. Há razões sociais, econômicas e jurídicas para tanto. Quanto mais amplo o domínio público maior a garantia de acesso a obras intelectuais por parte da sociedade. Além disso, maior será também a possibilidade de criação de novas obras a partir de obras alheias, independentemente de autorização prévia e expressa para esse fim.

É a partir da funcionalização do domínio público que poderemos encontrar novas fronteiras[2] — como o domínio público voluntário — imprescindíveis para fazer do



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proposta formulada no relatório apresentado pelo referido órgão (Copyright Office), vem a caracterizar obra órfã como sendo aquela em que há a impossibilidade de localização do autor ou titular dos direitos de autor da obra, após ter essa (localização) sido razoavelmente investigada pela parte que pretendia obter autorização de uso da obra”. LEITE, Eduardo Lycurgo. A Proposta Norte-Americana para as Obras Órfãs e as Regras Autorais Internacionais. Direitos Autorais — Estudos em Homenagem a Otávio Afonso dos Santos. São Paulo: ed. Revista dos Tribunais, 2007, p. 48. Como se percebe, com a profusão de obras intelectuais encontradas na internet — boa parte sem que se possa saber quem é seu titular, a análise de obras órfãs ganha acentuada importância nos tempos atuais. Um dos maiores problemas das obras órfãs é certamente que, se for aplicada a referidas obras a mesma regulamentação dos direitos autorais, sua utilização será vedada nos termos do art. 29 da LDA, pois que a utilização de qualquer obra depende de prévia e expressa autorização do autor — mesmo que o autor não possa ser localizado. Para uma proposta de regulamentação das obras órfãs, ver BARBOSA, Denis Borges. Domínio Público e Obras Órfãs. Disponível em http://denisbarbosa.addr.com/orfandade1.pdf.

255 ROCHA, Allan. A Função Social dos Direitos Autorais. Cit.; pp. 294-309.

256 “Não gostaria, a essa altura, que alguém acreditasse ser possível sair do impasse unindo as características estruturais e as funcionais por meio de uma pretensiosa análise estrutural-funcional. Entre estrutura (do direito) e função (do direito) não há correspondência biunívoca, porque a mesma estrutura, por exemplo, o direito considerado como combinação de normas primárias e secundárias, pode ter as mais diversas funções, assim como a mesma função, por exemplo, aquela, comumente atribuída ao direito, de tornar possível a coesão e a integração do grupo, pode realizar-se mediante diversas estruturas normativas. (O que não quer dizer que a estrutura e a função sejam independentes: modificações da função podem incidir sobre modificações estruturais, e vice-versa). Enfim, se quisermos deduzir uma consideração final, tal seria que a análise estrutural, atenta às modificações da estrutura, e a análise funcional, atenta às modificações da função, devem ser continuamente alimentadas e avançar lado a lado, sem que a primeira, como ocorreu no passado, eclipse a segunda, e sem que a segunda eclipse a primeira como poderia ocorrer em uma inversão das perspectivas a que os hábitos, as modas, o prazer do novo pelo novo, são particularmente favoráveis”. BOBBIO, Norberto. Da Estrutura à Função. Cit.; p. 113. domínio público um instituto que atenda aos ditames previstos em nossa Constituição Federal. Se o domínio público serve para alguma coisa, é certamente para garantir acesso irrestrito a determinada categoria de obras intelectuais, de modo a ampliar as possibilidades de educação, de acesso à cultura, ao conhecimento, estimular a criação e a liberdade de expressão e movimentar a economia da cultura e do entretenimento.

Em reflexão acerca do domínio público canadense, Carys J. Craig, afirma que “precisamos de um domínio público que reflita e proteja o processo dialógico da cultura em face das estruturas cada vez mais restritivas da propriedade intelectual”[1]. Lamentavelmente, o tom do autor é de desencanto, reflexo de um mundo cada vez mais dominado pela busca da proteção[2].

Esse “processo dialógico da cultura” pode ser expresso em diversas formas. Tomando-se por ponto de partida os ensinamentos de Norberto Bobbio e de Pietro Perlingieri, a compreensão da função social do domínio público deve ser buscada dentro de um sistema de direito Civil-Constitucional, não se esquecendo da importância da dignidade da pessoa humana e das situações subjetivas integrantes do ordenamento jurídico brasileiro.

A esse respeito, cabe mencionar que a importância das situações subjetivas (e sua preeminência sobre as situações patrimoniais[3]) se afirma bastante clara quando tratamos do domínio público no direito autoral. Afinal, não existe mais, quanto às obras em domínio público, um aspecto patrimonial a ser protegido em si mesmo — uma vez que os direitos patrimoniais do autor já se esgotaram. Por isso, a função social do domínio público se realiza, sobretudo, a partir da proteção aos aspectos existenciais daqueles que



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257 Tradução livre do autor. No original, lê-se que: “[w]e need a public domain that reflects and protects the dialog- ic processes of culture in the face of increasingly restrictive intellectual property structures”. CRAIG, Carys J.. The Canadian Public Domain: What, Where and to What End?. Disponível em http://papers.ssrn.com/sol3/papers. cfm?abstract_id=1567711. Acesso em 17 de julho de 2010.

258 E prossegue: “[n]o Canadá, o lamento ficou fraco e distante — até agora. Tipicamente, referências ao domínio público na jurisprudência canadense têm sido raras e pouco inspiradas, e a percepção dominante é de que o domínio público não é mais do que o resto da propriedade intelectual — os farelos remanescentes uma vez que o apetite foi satisfeito. Teresa Scassa está correta ao observar que, constituído e construído apenas na negativa, o domínio público canadense é uma ‘coisa frágil' cujo escopo pode ser expandido ou diminuído tanto por ato legislativo quanto por interpretação judicial. Talvez nossa complacência nesse sentido reflita a ausência de qualquer mudança radical na forma ou na substância de nossa lei de direitos autorais desde 1924. Sendo assim, o tempo para a complacência acabou e a mobilização deve começar: com reforma dos direitos autorais nos ameaçando e a agenda expansionista dominando o discurso político, o Canadá precisa desesperadamente de um resultado positivo com o domínio público”. Tradução livre do autor. No original, lê-se que: “[i]n Canada, the cry has remained faint and distant — until now. Typically, references to the public domain in Canadian jurisprudence have been rare and uninspired, and the prevailing assumption is that the public domain is no more than intellectual property's leftovers — the crumbs that remain once its appetite is satisfied. Teresa Scassa is right to observe that, thus constituted and constructed only in the negative, Canada's public domain is ‘a fragile thing' whose scope can be expanded or shrunk by either legislative enactment or judicial interpretation. Perhaps our complacency in this regard reflects the absence of any radical change in the form or substance of our copyright law since 1924. If so, the time for complacency is over and the rallying must begin: with copyright reform looming and the expansionist agenda dominating political discourse, Canada sorely needs a positive account of the public domain”. CRAIG, Carys J.. The Canadian Public Domain: What, Where and to What End? Cit..

259 PERLINGIERI, Pietro. O Direito Civil na Legalidade Constitucional. Cit.; p. 119. desejam ter acesso às obras que nele hajam ingressado, preservada, igualmente, a parcela existencial que remanesce atrelada à obra intelectual — os direitos morais de autor.

Tais aspectos têm como conteúdo um grande espectro de direitos, derivados da cláusula geral da dignidade da pessoa humana. É bem verdade que aspectos econômicos (ou patrimoniais, para mantermos a dicotomia terminológica) podem vir a compor o uso das obras em domínio público, sem que, entretanto, necessariamente o integrem. Por outro lado, o direito de acesso às obras em domínio público mais dificilmente não abrangerá uma situação existencial.

Se são, portanto, as situações existenciais que vão ganhar dimensão de destaque na compreensão da função social do domínio público, seu conteúdo deverá servir como garantia dos direitos integrantes da dignidade da pessoa humana abordados no capítulo 1 desta tese. Entre eles, podemos citar, exemplificativamente:

 

(i) direito à livre expressão do pensamento;

(ii) direito à educação;

(iii) direito de acesso ao conhecimento e à cultura;

(iv) direito ao lazer;

(v) direito à livre iniciativa e à exploração econômica das obras em domínio público.

 

É perceptível que este último direito leva à proteção também de direitos decorrentes de uma situação jurídica patrimonial, sem que, contudo, se afaste de sua dimensão existencial. Para que a sua função seja cumprida — ou, em outras palavras, para que os direitos componentes de sua função social sejam efetivados —, o primeiro e indispensável passo é se garantir o direito de acesso à obra, permitindo-se sua reprodução, já que dele decorre o exercício de todos os demais direitos. Nesse sentido, vamos analisar as quatro situações

que se nos afiguram mais comuns:

 

(i) a obra se encontra disponível na internet, ou em espaço público, com acesso livre para qualquer pessoa e sem controle por parte de terceiros;

(ii) a obra se encontra em exposição controlada por pessoa física ou jurídica, como é o caso de museus, galerias ou exposições particulares, com acesso livre ao público;

(iii) a obra se encontra sob o controle físico de pessoa física ou de pessoa jurídica, como particulares ou galerias, sem que seja garantido acesso a terceiros;

(iv) a obra se encontra sob o controle físico de pessoa jurídica de direito público, como arquivos públicos e bibliotecas públicas, com acesso dado mediante solicitação.

 

(i)

Obras em domínio público, disponíveis na internet ou em espaços públicos, devem poder ser livremente reproduzidas e exploradas comercialmente, sem que possa haver qualquer limitação por parte de terceiros. É incalculável o número de obras que se encontram nessa situação, e fazer um inventário de seu uso estaria fora dos limites deste trabalho. Ainda assim, julgamos valer a pena analisar, a título de exemplo, como o acesso a obras em domínio público vem sendo efetivado por parte de websites de alguns dos grandes museus do mundo e de determinadas experiências voltadas à divulgar obras em domínio público que se valem da internet[1].

Sem qualquer sombra de dúvida, websites de grandes museus, como Louvre (Paris), Metropolitan (Nova Iorque) e a National Gallery (Londres) cumprem papel fundamental no acesso a obras de artes de todas as eras e de todas as procedências. Por tudo que já tivemos a oportunidade de ver, caberia a tais instituições promover o acesso a obras em domínio público integrantes de seu acervo.

O website do Museu do Louvre (www.louvre.fr) permite a cópia de reproduções fotográficas de sua coleção (até onde pudemos verificar, integralmente em domínio público), independentemente de cadastro do usuário e sem marca d'água nas reproduções. Aparentemente, há indicação de autoria das reproduções fotográficas das obras em exposição. No entanto, na seção de informações legais a respeito do website[2], não há qualquer menção à vedação de cópia das referidas reproduções ou à sua autorização. Nesse aspecto, o website é silente.

Já o website do Metropolitan Museum (http://www.metmuseum.org), como era de se esperar, contém uma razoavelmente detalhada seção de termos e condições de uso[3]. Apesar de tecnicamente ser possível fazer cópia de reproduções fotográficas das obras disponíveis no website (inclusive das que ainda se encontram protegidas) sem cadastro do usuário ou marca d'água, os termos de uso são bastante restritivos.

Em primeiro lugar, o museu parece invocar o direito autoral sobre as reproduções fotográficas, uma vez que clama ser o titular dos direitos autorais sobre dados, imagens, softwares, textos e outras informações disponíveis. Adicionalmente, o uso por terceiros apenas é permitido sem fins comerciais. Assim, os termos de uso são expressos em autorizar o uso das obras em websites pessoais, por exemplo, desde que não haja qualquer finalidade comercial (incluindo patrocínio, publicidade, cobrança pelo acesso nem produtos à venda). Por outro lado, a inserção as fotos em CD-ROM e sua publicação (exceto trabalho acadêmico) são proibidas.

Como é fácil perceber, as instruções de uso do website do Metropolitan Museum certamente violam a função social do domínio público (a partir de nossa perspectiva) e vão de encontro à decisão judicial do caso Bridgeman Art Library Ltd. v. Corel Corp., que tivemos a oportunidade de analisar no capítulo 2.



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260 São incontáveis os websites de museus, galerias, arquivos, centros de pesquisa etc. que permitem acesso a obras em domínio público. Nosso intuito é apenas demonstrar, por alguns exemplos que julgamos significativos, de que forma o domínio público vem sendo tratado por determinadas instituições de relevo. Em regra, buscaremos nos ater à experiência brasileira, mas sem negligenciar a importância de alguns exemplos internacionais.

261 Disponível em http://www.louvre.fr/llv/apropos/fiche_apropos.jsp?CONTENT<>cnt_id=10134198673232604& CURRENT_LLV_FICHE<>cnt_id=10134198673232604&FOLDER<>folder_id=9852723696500916&bmLo cale=en. Acesso em 22 de janeiro de 2011.

262 Disponível em http://www.metmuseum.org/information/terms.asp. Acesso em 22 de janeiro de 2011. O website da National Gallery (http://www.nationalgallery.org.uk/) igualmente comete abusos contra o uso de obras em domínio público. Apesar de as reproduções fotográficas das obras serem passíveis de cópia, sem cadastro do usuário e sem marca d'água, qualquer que seja seu uso é cobrado, exceto se o objetivo for estudo privado e uso na internet por instituições de ensino, podendo os valores variar de cerca de £ 35 até mais de £ 1,000.

Aparentemente, a justificativa aqui é a mesma do Metropolitan Museum, uma vez que os termos de uso do website[1] afirmam que o conteúdo é de titularidade da National Gallery, que seria detentora de supostos direitos autorais sobre o material disponível no website. Além disso, há informação de que filmar e fotografar as obras em exposição na galeria não são permitidos a menos que haja prévia autorização.

Finalmente, vejamos o Museu Nacional de Belas Artes, no Rio de Janeiro. Seu website (http://www.mnba.gov.br/abertura/abertura.htm) é bastante modesto comparado com os equivalentes estrangeiros. Pouquíssimas são as obras reproduzidas no website e todas podem ser tecnicamente copiadas, mesmo as que se encontram ainda protegidas. Não há termos de uso. Trata-se de exemplo eloquente da falta de políticas governamentais para dar acesso às obras intelectuais em geral e, no particular, às obras em domínio público. Exatamente com o objetivo de divulgar o acesso a obras em domínio público e garantir maior efetividade à sua função social, alguns projetos de relevo, que se valem da

internet, vêm ganhando projeção nacional e internacional.

Apesar de ser recente o debate acerca dos livros eletrônicos, sua criação data do início dos anos 1970 e em razão de seu desenvolvimento, tornaram-se possíveis iniciativas como o Projeto Gutenberg[2], de origem norte-americana e hoje atuante em outros países, como Canadá e Austrália, e que tem por objetivo tornar disponíveis obras em domínio público para livre acesso. De acordo com informações do website em Português, seu acervo é composto atualmente por mais de 30.000 obras[3].

No Brasil, foi desenvolvido pelo governo federal o portal Domínio Público[4], vinculado ao Ministério da Educação, cujo conteúdo abrange obras em texto, imagens, sons e vídeo[5]. Ocorre que, infelizmente, e a despeito da proposta louvável, são inúmeros os equívocos do projeto, o que acaba por comprometer seus próprios objetivos.

Em primeiro lugar, apesar de se denominar “Portal Domínio Público”, nem todo o seu conteúdo encontra-se de fato em domínio público. É bem verdade que a “missão” do website, conforme citada pelo Ministro da Educação, Fernando Haddad, tem



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263 Disponível em http://www.nationalgallery.org.uk/terms-of-use/. Acesso em 22 de janeiro de 2011.

264 Disponível em http://www.gutenberg.org/wiki/PT. Acesso em 28 de setembro de 2010.

265 Disponível em http://www.gutenberg.org/wiki/PT_Principal. Acesso em 28 de setembro de 2010.

266 www.dominiopublico.gov.br

267 De acordo com o website, a quantidade de obras atualmente cadastradas é a seguinte: 158.894 textos; 11.241 imagens; 2.493 sons; 1.206 vídeos, que tiveram, desde 2004, o total de downloads de 22.258.132 para textos; 3.636.688 para imagens; 2.951.024 para sons e 2.861.315 para vídeos. Acesso em 28 de setembro de 2010. tom confessional ao afirmar que “[e]ste portal constitui-se em um ambiente virtual que permite a coleta, a integração, a preservação e o compartilhamento de conhecimentos, sendo seu principal objetivo o de promover o amplo acesso às obras literárias, artísticas e científicas (na forma de textos, sons, imagens e vídeos), já em domínio público ou que tenham a sua divulgação devidamente autorizada, que constituem o patrimônio cultural brasileiro e universal”[1] (grifamos).

De fato, o website contém quantidade significativa de dissertações e teses de diversas áreas[2], todas devidamente protegidas. Afinal, obras que tão-somente tenham sua divulgação autorizada não estão, por isso, em domínio público, por tudo que já tivemos a oportunidade de mencionar. Incluir em uma mesma base de dados obras protegidas e obras em domínio público, sem indicação clara dos critérios distintivos, certamente confunde o usuário, que em regra desconhece as minudências da lei.

Adicionalmente, o website não trata as obras em domínio público com o cuidado devido. Ao se selecionar “imagem” como tipo de mídia, aparecem as seguintes opções em “categoria”: (i) “fotografia”, (ii) “gravura”, (iii) “ilustração”, (iv) “litografia”, (v) “mapa”,

(vi) “pintura (uso educacional e não comercial)”, (vii) “recortes” e (viii) “satélite”. Por que distinguir a finalidade a ser conferida às “pinturas”? O que se espera é impedir que pinturas em domínio público sejam usadas com finalidades não educacionais e/ou com fins comerciais? Porque se tal distinção houver, certamente se incorrerá em violação à função do domínio público.

Ao se optar pela categoria “pintura (uso educacional e não comercial)”, encontram-se 154 resultados[3], em sua esmagadora maioria relacionando obras de Leonardo da Vinci e de Van Gogh. As obras de ambos estão incontestavelmente em domínio público no mundo inteiro, por conta do decurso do prazo de proteção. Dessa forma, a ressalva mencionada no website só pode significar restrições impostas por aqueles que tornaram as reproduções disponíveis. É bastante provável, nesse caso, que haja um alegado direito autoral às reproduções fotográficas das obras produzidas, o que em nossa opinião não pode ser merecedor de proteção.

Se assim for, não há qualquer motivo para se admitir a ressalva do Ministério da Educação de que as pinturas cujas reproduções encontram-se disponíveis no website dominiopublico.gov.br somente poderiam ter por destino uso educacional e sem fins comerciais. Tais obras estão em domínio público, as fotografias que as reproduzem não podem ser protegidas por carecerem de originalidade e qualquer pessoa poderá, portanto, dar às obras o destino que lhe convier, independentemente de autorização.

De novo, podemos afirmar: as inadequações do portal Domínio Público são apenas um exemplo da absoluta falta de políticas públicas por parte do governo brasileiro para



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268 Disponível em http://www.dominiopublico.gov.br/Missao/Missao.jsp. Acesso em 28 de setembro de 2010.

269 A pesquisa pela área de direito aponta cerca de 2.500 dissertações e 228 teses. Acesso em 28 de setembro de 2010.

270 Disponível em http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/PesquisaObraForm.do. Acesso em 28 de setembro de 2010. dar acesso a obras em domínio público de modo a que cumpram com sua função. Muito pior, certamente, é o tratamento conferido por parte dos arquivos públicos, conforme veremos adiante.

Finalmente, obras em domínio público situadas em locais de acesso público, como ruas, praças, praias, prédios públicos etc., podem ser livremente representadas, com ou sem fins comerciais, independentemente de autorização de terceiros[1].

 

(ii)

É possível que pessoas físicas ou jurídicas sejam proprietárias do suporte onde se encontram fixadas obras em domínio público. É fundamental, quanto ao tema, notar que a propriedade do suporte físico (a tela do quadro, a matéria onde se encontra esculpida a obra, a película da obra audiovisual ou o papel do texto, por exemplo) não induz propriedade sobre a obra intelectual.

Ocorre que uma vez que é a obra intelectual que ingressa em domínio público, e não o suporte onde ela se encontra, expositores que sejam proprietários deste último não podem impedir a reprodução, por qualquer meio, da primeira. Por isso, estando a obra em exposição, quer se cobre ou não ingresso, sua livre reprodução deve ser permitida.

A proibição pode se dar se tiver como objetivo proteger a obra intelectual[2]. No entanto, não encontrará respaldo a proibição se não houver qualquer justificativa, como parece ser o caso da National Gallery[3]. Uma vez em domínio público, e desde que a reprodução ou o registro fotográfico ou audiovisual da obra não venha a causar qualquer dano, a proibição deverá ser considerada abusiva.

Não importa se o acervo é público ou particular; não importa quem seja o expositor; não importa se há ou não prévia autorização. Estando a obra em domínio público, não existe qualquer outra solução jurídica: pode ser reproduzida, registrada, fotografada, filmada, por qualquer meio ou processo, observados os limites de não haver risco à sua integridade.

 

(iii)

É muito comum que colecionadores de artes plásticas venham a arrematar obras em domínio público em leilões[4]. Se os suportes físicos onde as obras se encontram vie-



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271 Não há que se confundir esta hipótese com o previsto no art. 48, da LDA, que determina que as obras situadas permanentemente em logradouros públicos podem ser representadas livremente, por meio de pintura, desenhos, fotografias e procedimentos audiovisuais. O artigo citado trata de uma limitação ao direito de autor — ou seja, destina-se ao uso de obras protegidas. A hipótese que suscitamos, por outro lado, versa sobre a possibilidade de reprodução, por qualquer meio ou com qualquer finalidade, de obras artísticas situadas em lugares públicos e que tenham ingressado no domínio público.

272 Há quem afirme que o uso de luz, como o flash das máquinas fotográficas, prejudique a conservação das obras de arte. Trata-se de questão técnica cujo debate não é adequado a este estudo.

273 Conforme seus termos de uso disponíveis em http://www.nationalgallery.org.uk/terms-of-use/.

274 Colecionador anônimo adquire quadro de Van Gogh por mais de 40 milhões de dólares: disponível em http://www1. folha.uol.com.br/folha/ilustrada/ult90u60103.shtml, acesso em 22 de janeiro de 2011. Por preço semelhante, foi rem a ingressar em sua propriedade privada, como fazer para que as obras intelectuais cumpram com sua função social?

Neste caso, é necessário nos valermos da funcionalização de outro instituto: da propriedade, tradicionalmente considerada. Voltamos, portanto, à Constituição Federal, que estabelece que a propriedade deverá atender à sua função social[1], e ao art. 1.228 do CCB[2].

Trata-se, nesta hipótese, da função social de verdadeira propriedade. O monopólio decorrente do direito autoral sobre a obra já se esgotou, mas como o suporte onde a obra se encontra não ingressa jamais em domínio público, exatamente por se tratar de propriedade de fato, cria-se uma dificuldade: como dar acesso à obra (que não pertence mais a ninguém) se seu suporte é objeto de propriedade?

Não será possível haver uma resposta única e precisa. O ideal seria que o proprietário do suporte (da tela de um quadro, de uma escultura ou do manuscrito de um livro, por exemplo) permitisse a qualquer pessoa ter acesso à obra, quer por meio de exposição pública, quer por meio de acesso ao lugar onde a obra se encontra. No entanto, tal solução apresenta incontáveis inconvenientes práticos. A depender da popularidade da obra, dezenas, centenas ou mesmo milhares de pessoas poderiam se dispor a vê-la, o que poderia vir a comprometer a segurança e a integridade da obra ou mesmo outros direitos do proprietário de seu suporte, como sua privacidade.

Em contraposição, o mínimo que se poderia esperar seria que o proprietário do suporte físico mantivesse, disponível na internet, reprodução fotográfica da obra intelectual (ou versão fac-símile de texto, ou equivalente, a depender da natureza da obra) para acesso e reprodução por qualquer interessado, independentemente de prévia autorização ou de pagamento[3]. Não o fazendo, poderá ser obrigado judicialmente a tanto.

No mais das vezes, essa simples possibilidade de acesso e reprodução pela internet se faz suficiente. Todavia, em algumas circunstâncias, pode ser que seja necessário o exame



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vendida tela de Gauguin: disponível em http://www.estadao.com.br/noticias/arteelazer,a-manha-de-gauguin-atin- ge-us-3924-milhoes-em-leilao,77382,0.htm, acesso em 22 de janeiro de  2011.

275 CF/88, art. 5º, XXIII.

276 Art. 1.228: O proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha. § 1º O direito de propriedade deve ser exercido em consonância com as suas finalidades econômicas e sociais e de modo que sejam preservados, de conformidade com o estabelecido em lei especial, a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e artístico, bem como evitada a poluição do ar e das águas. § 2o São defesos os atos que não trazem ao proprietário qualquer comodidade, ou utilidade, e sejam animados pela intenção de prejudicar outrem. (...)

277 É certo que produzir uma boa reprodução fotográfica da obra, ou seu equivalente em outra mídia — se sonora ou audiovisual etc. — poderá consumir valores elevados por parte do proprietário do suporte, e ele certamente não estaria obrigado a tanto, já que não há lei que a isso o obrigue. Entretanto, atualmente é possível se obter resultados razoáveis com técnicas amadoras ou semiprofissionais e a custo reduzido. Qualquer outra hipótese, como a de cobrar dos usuários para terem acesso à obra, deve ser analisada casuisticamente. Em princípio, a cobrança pode ser feita para ajudar nos custos de conservação da obra, mas certamente não poderia ser de valores tão altos a ponto de caracterizar uma contraprestação pelo seu uso ou o enriquecimento do proprietário às custas da exploração econômica de um direito que ele não possui. Voltaremos à questão quando tratarmos dos acervos de arquivos públicos. mais próximo da obra, por conta de estudo, da exigência de requisitos específicos na qualidade da reprodução ou do que quer que seja. Em tais circunstâncias, entendemos que aquele a pleitear o acesso, caso tenha seu pedido negado, poderá fazer a demanda em juízo, devendo o juiz ponderar os interesses dos envolvidos para decidir conforme o caso.

 

(iv)

Entre a segunda hipótese acima apontada (quando o acesso às obras é livre a todos, caso típico dos museus) e a terceira (quando o acesso é fechado porque o suporte pertence a um particular, que não o expõe publicamente), afigura-se a possibilidade de o suporte físico encontrar-se sob a titularidade de determinadas instituições cuja finalidade precípua é exatamente guardar, conservar e dar acesso a obras intelectuais, desde que mediante solicitação do usuário. Tipicamente, nesta categoria encontram-se arquivos públicos, que não têm suas obras expostas, mas que também não são particulares que impedem acesso aos seus suportes. Ou não deveriam impedir.

Como não cabe a este trabalho fazer um escrutínio de todas as práticas e serviços ofertados pelos referidos órgãos públicos, nossa intenção é apenas tratar de um único objeto: como um usuário interessado em obter reprodução de uma obra fotográfica, por exemplo, em domínio público deverá proceder? Quais as regras dos arquivos públicos para que uma pessoa possa obter cópia de fotografia pertencente ao acervo de determinado arquivo?[1]

No Brasil, muitos são os exemplos de arquivos públicos que contam com coleções de fotografias. Vamos nos limitar geograficamente à cidade do Rio de Janeiro, onde alguns dos exemplos mais relevantes são certamente a Biblioteca Nacional, o Arquivo Nacional, o Museu da Imagem e do Som e o Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro. Também aqui, a análise completa dos websites e dos serviços de referidas instituições ultrapassaria os limites deste trabalho. Por isso, vamos nos ater às políticas de acesso às obras em domínio público mediante solicitação dos interessados[2].

A Biblioteca Nacional, cuja origem está ligada à vinda da família real portuguesa para o Brasil, em 1808, é hoje uma das dez maiores do mundo, sendo a maior da América Latina, com cerca de 9 milhões de itens[3]. Em sua configuração atual, com as atribui-


278 A atividade do bibliotecário, do arquivista e, mais recentemente, do gestor de conteúdos de um website, depende enormemente da compreensão dos limites e da função do domínio público. A respeito da importância do tema, ver BAINTON, Toby. The Public Domain and the Librarian. Cit..

279 Não fazemos aqui qualquer referência quanto à possibilidade técnica de se fazer cópia reprográfica, em microfilme, eletrostática etc., ainda que venham a influenciar na possibilidade de acesso, já que dizem muito mais respeito às condições físicas e de conservação da obra do que a um problema jurídico. Também não tratamos, aqui, de a que título os documentos (corpus mechanicum) integram os arquivos públicos: se são de sua propriedade ou não. Para nossa análise, vamos nos limitar a considerar que os arquivos públicos citados têm ingerência sobre obras em domínio público (qualquer que seja o proprietário do meio físico em que elas se encontram) e que certamente muitas dessas obras podem ser reproduzidas sem risco à sua integridade e conservação.

280 Disponível em http://www.bn.br/portal/?nu_pagina=11. Acesso em 22 de janeiro de 2011. ções decorrentes da Lei 8.029/90 e regulamentada pelo Decreto 5.038/04, a Biblioteca Nacional é uma fundação pública vinculada ao Ministério da Cultura[4], desempenhando relevantíssimo papel como guardiã da memória e da história de nosso país. Exemplificativamente, é a única beneficiária da Lei 10.994/04, que prevê o depósito legal de publicações.

Entre suas atribuições legais, podemos citar o fato de a Biblioteca Nacional ser órgão responsável pela execução da política governamental de recolhimento, guarda e preservação da produção intelectual do País, tendo por finalidade, entre outras que poderíamos mencionar, adquirir, preservar e difundir os registros da memória bibliográfica e documental nacional[5].

É evidente que a difusão de registro da memória bibliográfica e documental nacional deve necessariamente abranger os itens em domínio público. Aliás, considerando-se o imenso acervo da Biblioteca Nacional, as obras em domínio público não são em número pequeno. Ao revés: é bem provável que representem a maioria das obras disponíveis. Por isso, parece-nos injustificado que o domínio público na Biblioteca Nacional seja tratado com tão pouca deferência.

Em primeiro lugar, idealmente, as obras em domínio público deveriam estar integralmente disponíveis no website da instituição, para uso público, ainda que em arquivos de baixa resolução. Seu uso deveria ser livre de limitações legais ou tecnológicas, permitida a exploração das obras com ou sem fins comerciais. Dessa forma, a função social do domínio público restaria alcançada e os preceitos constitucionais a que nos referimos no início deste item seriam cumpridos.

No entanto, sabemos que a conservação de obras em número tão elevado, sendo muitas delas antigas e raras, requer um razoável investimento financeiro. Por isso, deixamos claro desde logo que é possível e lícito cobrar pelo acesso das obras em domínio público. O fato de a obra estar em domínio público não tem como consequência necessária seu acesso gratuito. No entanto, há limites a serem observados. São estes os limites que buscamos detalhar a partir daqui.

A Biblioteca Nacional — como, aliás, todas as instituições pesquisadas — não faz qualquer distinção quanto à possibilidade de se reproduzir obra protegida ou obra em domínio público; ambas as categorias são tratadas da mesma maneira. Ocorre que esta distinção é fundamental, pelo menos por duas razões. Tratando-se de obra protegida, é possível a cobrança pela licença de uso da obra, o que é ilícito quando se tratar de obra em domínio público. Dessa forma, as obras protegidas tendem a ter o valor de reprodução mais elevado. Ademais, estando a obra protegida, é possível se estabelecer distinção



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281 Por força do art. 1º do Anexo I ao Decreto 5.038/04, que estabelece que a Fundação Biblioteca Nacional — BN, fundação pública, constituída com base na Lei nº 8.029, de 12 de abril de 1990, vinculada ao Ministério da Cultura, tem sede e foro na cidade do Rio de Janeiro, e prazo de duração indeterminado.

282 Grifamos. Por força do art. 2º do Anexo I ao Decreto 5.038/04. quanto ao uso que dela se pretende fazer. Assim, o titular pode autorizar o uso de determinada obra com fins acadêmicos, por exemplo, mas não para se ilustrar capas de caderno ou camisetas. Quando a obra se encontra em domínio público, entretanto, o uso que se fará dela é indiferente, justamente por ser absolutamente livre.

A Norma nº 1, de 02/05/2006, para reprodução de acervo na Biblioteca Nacional, é a única a fazer menção expressa ao domínio público, ao determinar que é permitida a reprodução de obras que estejam em domínio público ou daquelas que, embora protegidas pela Lei de Direitos Autorais (Lei 9.610/98), tenham autorização expressa de reprodução por seus autores/titulares (III.1).

No entanto, o item 6.2 da mesma norma prevê que é expressamente proibido comercializar imagens geradas a partir da solicitação de cópias digitais. Essa vedação é abusiva quando se tratar de obra em domínio público, mesmo que o original pertença à Biblioteca Nacional. Como o uso de obra em domínio público é livre, sua comercialização não pode ser proibida.

Também abusivo é o “Termo de Responsabilidade para Utilização de Imagens do Acervo da Fundação Biblioteca Nacional”. O documento é Anexo à norma anteriormente referida e condição necessária para obtenção da reprodução desejada. O item (b) do termo de responsabilidade determina que o demandante deverá utilizar as reproduções do acervo apenas com o fim por ele mencionado. Em adição, conforme previsto no item (d), o usuário assume o compromisso de não utilizar as imagens em outros trabalhos, edições, tiragens e publicações que não os especificados na solicitação e não repassar a terceiros as reproduções a ele entregues.

Ora, por tudo que se viu, tal cláusula é ilícita por atribuir ao usuário do acervo obrigações contrárias à LDA e, especialmente, aos valores constitucionais.

Mais um abuso é cometido no item (e), que prevê que o descumprimento do disposto no “Termo de Responsabilidade” acarretará na suspensão temporária do acesso do usuário ao serviço de reprodução da Biblioteca Nacional pelo prazo de 6 meses. Na verdade, ao descumprir o item (d), por se tratar de obra em domínio público, o usuário está agindo em conformidade com a lei e contrário a exigências abusivas de um órgão público que deveria “difundir os registros da memória bibliográfica e documental nacional”, não limitá-los.

Ainda indevida a conduta da Biblioteca Nacional ao estabelecer, no Anexo 3 à Norma nº 1, de 02/05/2006, que constitui a tabela de emolumentos para preservação do Acervo, valores idênticos para obras em domínio público ou protegidas. Se os valores sob análise, em si mesmos, não constituem um problema jurídico, certamente este existe quanto à previsão de que “para uso comercial a tabela sofrerá acréscimo de 40%”.

Pelo menos em dois momentos (na Norma nº 1, de 02/05/2006, item III.1 e Anexo 2, termo de compromisso, item c[1]), a Biblioteca Nacional deixa explícito que



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283 A Fundação Biblioteca Nacional não autoriza o uso da reprodução de obras protegidas pela Lei do Direito Autoral (Lei 9.610, de 10 de fevereiro de 1998) salvo com autorização expressa dos detentores dos direitos. apenas serão autorizadas cópias de documentos (i) em domínio público ou (ii) cujo titular autorizou a cópia. Se quanto ao segundo caso seria possível haver distinção de valores relacionada ao uso (o titular poderia determinar que para o uso de sua obra com fins comerciais o valor pela reprodução seria mais elevado), tal conduta é ilícita ao se tratar do domínio público.

Com o término do monopólio, nada mais há que fundamente a cobrança de importâncias distintas com base no tipo de uso que se pretende fazer. Uma vez em domínio público, a única justificativa para cobrança pelo acesso é o custo de manutenção da obra em si mesma ou dos meios para prover seu acesso (como o custo de manutenção de um website). Qualquer outra razão alegada constitui violação aos preceitos constitucionais, aos tratados internacionais, à LDA e configura enriquecimento sem causa por parte de seu agente.

Não muito diferente é a prática adotada pelo Arquivo Nacional. Criado em 1838 e qualificado como Arquivo Federal pela Lei 8.159/91, é órgão central do Sistema de Gestão de Documentos de Arquivos — SIGA, da administração pública federal, e integra a estrutura básica da Casa Civil da Presidência da República[1].

Apesar de a Ordem de Serviço nº 2/2007, de 04 de maio de 2007, não fazer qualquer referência à LDA ou a obras em domínio público, seu anexo prevê pagamento de valores diferenciados a depender do uso que se pretende fazer da obra. Assim, uma fotografia, por exemplo, usada para fins acadêmicos, poderá ser reproduzida ao custo de R$ 10,00. No entanto, se a mesma fotografia servir a um filme longa-metragem ou de televisão, o custo para sua reprodução sobe para R$ 40,00. Se houver fim publicitário, R$ 50,00.

Mais uma vez, repita-se: não se critica aqui o valor cobrado, se alto ou baixo, se justo ou injusto. Critica-se a ilicitude de se exigir valores distintos quando se tratar de obra em domínio público, dependendo do destino que se dará à obra reproduzida.

Também o Arquivo Nacional age abusivamente ao exigir assinatura de “Termo de Responsabilidade pelo Uso de Reproduções de Documentos” que contém, em seu item (c), grafado em negrito: “[o usuário declara estar ciente] de que as reproduções objeto deste termo não podem ser repassadas a terceiros”. Estando a obra em domínio público, sua circulação deve ser livre, inclusive com fins lucrativos. São, portanto, as mesmas as conclusões a que antes chegamos quando da análise da política de acesso praticada pela Biblioteca Nacional.

O Museu da Imagem e do Som (“MIS”) foi inaugurado em setembro de 1965, como parte das comemorações do IV centenário da cidade do Rio de Janeiro[2]. Pela lei estadual 1.714/90, adquiriu a natureza jurídica da Fundação. Apesar de não contar com acervo tão vasto quanto o da Biblioteca Nacional ou do Arquivo Nacional, o MIS possui coleções de importantes fotógrafos, como Augusto Malta e Guilherme Santos, cujas obras se encontram, em sua maioria, em domínio público.


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284 Disponível em http://www.arquivonacional.gov.br/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm. Acesso em 28de setembro de 2010.

285 Disponível em http://www.mis.rj.gov.br/museu_hist.asp. Acesso em 28 de setembro de 2010. Assim como seus pares na esfera federal, o MIS cobra preços diferenciados em razão do uso da obra. A reprodução de fotografia, ainda que em domínio público, copiada a partir do original, para pessoa física ou uso acadêmico, custa R$ 30,00. Se para pessoas jurídicas, para fins culturais (publicações, CD-ROM, CD, DVD e filmes), o valor sobe para R$ 60,00. Se para pessoa jurídica, com fins publicitários, R$ 200,00[1].

Sem surpresas, também o MIS exige a assinatura do chamado “Termo de Recebimento de Material e de Responsabilidade pela Utilização de Reprodução de Acervo da FMIS/RJ”. Como último item do documento, lê-se que o usuário assume, “também, o compromisso de não utilizar o material que [lhe] foi cedido em outro trabalho que não o especificado no presente termo, e de não repassá-los a terceiros”.

Como de resto, as conclusões são as mesmas.

No entanto, nenhum arquivo público, dentre os pesquisados, viola tão frontalmente a função social do domínio público quanto o Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro (“AGCRJ”). Instituído em 1567, na época da fundação da cidade, acumulou durante os séculos seguintes os documentos oficiais produzidos pela Câmara Municipal e, no período republicano, pela Prefeitura. Atualmente, também conserva coleções de documentos particulares de prefeitos, administradores, professores, engenheiros e demais personalidades[2]. Seu acervo é composto por documentos manuscritos e impressos, fotografias, gravuras, fitas, vídeos, livros e periódicos.

Assim como o MIS, o AGCRJ é detentor de relevante acervo do fotógrafo Augusto Malta. Nascido em 1864, trabalhou como fotógrafo oficial do governo entre os anos 1900 e 1930, quando o Rio de Janeiro era capital federal. Dessa forma, construiu um dos mais profícuos testemunhos da cidade no início do século XX. Por isso, conta inclusive com portal próprio gerido pelo AGCRJ  (http://portalaugustomalta.rio.rj.gov.br/).

Ao contrário dos websites dos grandes museus do mundo (Louvre, Metropolitan, National Gallery), que permitem acesso virtual às obras de suas coleções, e ao contrário dos websites da Biblioteca Nacional, do Arquivo Nacional e do MIS, que pecam pela falta de acesso ou pelo acesso francamente precário, o portal Augusto Malta permite o usuário que visualize as fotos digitalizadas, mas com inúmeras restrições.

Inicialmente, para se ter acesso às obras, é necessário que se preencha cadastro, com informações que incluem nome, CPF, ocupação, grau de instrução, endereço e telefone. Se o cadastro compulsório não representa, em si mesmo, uma exigência abusiva, certamente serve como primeiro obstáculo ao acesso das obras em domínio público.

A seguir, observa-se pelos termos de uso do website que:

 

(...)

(4.) As fotografias, imagens, textos, logomarcas e som presentes no site encontram-se pro- tegidos por direitos autorais ou outros direitos de propriedade intelectual e patrimonial;


286 Disponível em http://www.mis.rj.gov.br/prodserv_repr.asp. Acesso em 22 de janeiro de 2011.

287 Disponível em http://www0.rio.rj.gov.br/arquivo/o-arquivo-historico.html. Acesso em 22 de janeiro de 2011. (...)

(6.) A reprodução dos conteúdos descritos anteriormente está proibida, salvo prévia auto- rização por escrito das instituições responsáveis pela salvaguarda dos documentos disponi- bilizados, e em hipótese alguma o usuário adquirirá quaisquer direitos sobre os mesmos; (...)


Uma vez que boa parte das obras constantes da base de dados do portal Augusto Malta estão em domínio público, bem se vê que as informações acima não são totalmente verdadeiras e representam desserviço à comunidade acadêmica. O Portal Augusto Malta conta com obras fotográficas elaboradas entre 1893 e 1958. Considerando-se que, neste momento, todas as obras fotográficas publicadas até 1940 encontram-se em domínio público, não há dúvidas de que a maior parte do acervo do referido portal já não conta mais com a proteção patrimonial dos direitos autorais, podendo ser livremente reproduzida.

É louvável que, ao contrário dos demais websites analisados, o AGCRJ possibilite a visualização das fotografias. No entanto, as obras encontram-se todas com marca d'água com representação do fotógrafo e onde se lê “AGCRJ”. A marca d'água, pode-se perceber, serve para gravar na imagem sua procedência. Dessa forma, qualquer uso “não autorizado” da obra por parte do AGCRJ poderá ser aferido. Nesse sentido, algumas observações são necessárias.

Verificamos que em todos os demais arquivos pesquisados é solicitada a menção da origem da obra em suas instruções de uso das reproduções[3]. Entendemos, inclusive, que a menção à origem da obra pode ser encarada como obrigação decorrente da boa-fé objetiva, de modo a apontar a fonte e a permitir a pesquisadores e usuários de obras em domínio público que possam saber onde encontrar o original de dada obra.

Por outro lado, não há qualquer direito do eventual proprietário do corpus mechanicum de apor suas próprias marcas aos trabalhos intelectuais alheios com o intuito de identificar a origem da obra ou de controlar seu uso, especialmente da forma como inseridas pelo AGCRJ. A inclusão da marca d'água nas obras do fotógrafo Augusto Malta, nos moldes vistos acima, impedem seu pleno uso por terceiros que, para as finalidades desejadas, se contentem com reproduções de baixa resolução disponíveis no website.

A seguir, o AGCRJ cobra valores bem distintos para se ter acesso a reprodução de obras fotográficas, ainda que em domínio público. Para uso particular ou acadêmico, é disponibilizada cópia em baixa resolução da foto, ao custo de R$ 10,00. Para outros usos (como exposição, obra audiovisual, publicitária, publicação em livros ou outras obras), o custo é de R$ 200,00 por imagem de alta resoluação.



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288 Biblioteca Nacional (“Termo de Responsabilidade”, item c): “Estar de acordo em mencionar o crédito à Fundação Biblioteca Nacional por ocasião da sua utilização na forma: ‘Acervo da Fundação Biblioteca Nacional — Brasil'”; Arquivo Nacional (“Termo de Responsabilidade”, item b): “Da obrigatoriedade de, por ocasião da divulgação das referidas reproduções, mencionar sempre que os respectivos originais pertencem ao acervo do Arquivo Nacional”; MIS (“Termo de Responsabilidade”): “Obrigo-me, por ocasião da utilização do material objeto do presente termo, a mencionar os créditos da obra e à FMIS/RJ (...)”. Conforme fomos informados diretamente pelo AGCRJ (a propósito, mais um obstáculo: o website não conta com valores e maiores informações sobre os critérios de reprodução), é indiferente se o usuário pretende usar reprodução em baixa resolução para publicação em livro ou para uso em obra audiovisual — o valor é cobrado em função do uso. Portanto, mesmo que a cópia em baixa resolução seja suficiente, se seu destino for outro que o acadêmico, o preço é de R$ 200,00.

Outra questão, gravíssima, a ser apontada é que para se solicitar reprodução de qualquer imagem faz-se necessário apresentar declaração de universidade, editora, produtora etc., em papel timbrado, com justificativa do uso da imagem. Ao final, deve-se assinar um termo de uso da imagem, onde são detalhados os compromissos assumidos pelo demandante.

E se o usuário quiser apenas fazer uma ampliação da foto em alta resolução para decorar sua própria residência? E se o interessado desejar produzir quadros para decorar um lobby de hotel, cartões postais para vender em uma papelaria, capas de caderno, camisetas ou o que mais desejar com referidas obras? Por estarem todas em domínio público, tais usos são lícitos e permiti-los não é um ato de tolerância ou generosidade do AGCRJ, mas uma obrigação legal.

Finalmente, mencionamos que, conforme informação recebida do próprio arquivo, a marca d'água não consta da reprodução em alta resolução, mas apenas na de baixa. E pelo que fomos informados, aposta de maneira diversa da que consta das obras disponíveis no website.

Em suma: um cadastro compulsório, uma declaração com justificativa de uso, a assinatura de um termo de responsabilidade e o pagamento de R$ 200,00 são o preço a se pagar para se obter o que deveria ser não apenas natural, mas dever do Estado: o livre uso de uma obra em domínio público. Parece evidente que o AGCRJ viola frontalmente a função social do domínio público das obras sob sua guarda e conservação.

É importante mencionar que o AGCRJ não recebe valores em espécie, e todo pagamento é realizado em forma de doações[1]. Ainda assim, inconcebível é que venha um órgão público se remunerar indiretamente às custas da violação de princípios constitucionais, de tratados internacionais, da LDA e de toda teoria do domínio público construída ao longo dos dois últimos séculos.

Encerramos este item frisando que em nenhum momento se questiona a seriedade e a importância do trabalho desenvolvido pelos arquivos públicos da cidade do Rio de Janeiro. O que se critica é a absoluta falta de políticas públicas para tornar efetiva a verdadeira função do domínio público, constituída por todos os direitos a que nos referimos no início deste tópico.


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289 A revista Veja Rio apontou, em abril de 2011, a contestável conduta do AGCRJ em solicitar, como contrapartida aos serviços prestados, bens e utensílios como produtos de limpeza e até mesmo um forno de micro-ondas. Disponível em http://vejabrasil.abril.com.br/rio-de-janeiro/editorial/m2378/cha-de-panela-na-reparticao. Acesso em 28 de abril de 2011. A função do domínio público se cumpre na medida em que as obras que nele ingressaram podem circular livremente, ao menor custo possível, estimulando reedição de trabalhos antigos e criação de novos, impulsionando a economia cultural e do entretenimento, cumprindo seu papel social e educativo e, finalmente, respeitando-se os princípios constitucionais e demais normas de nosso ordenamento jurídico.