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O Domínio Público no Direito Autoral Brasileiro/Conclusões

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Conclusões



 

I.

Todos os anos, em 1º de janeiro é comemorado o dia do domínio público. Afinal, por conta dos tratados internacionais, o primeiro dia do ano é o dies a quo para a contagem de prazos de proteção da obra, quer em virtude da morte do autor[1] ou da publicação da obra no ano anterior, a depender do caso.

Em 2011[2], ingressaram em domínio público na União Europeia e no Brasil, bem como em outros países, as obras de Issac Babel, Walter Benjamin, F. Scott Fitzgerald, Paul Klee, Leon Trotsky e Nathanael West, entre outros. As comemorações incluíram o “Public Domain Day” na Universidade de Haifa (Israel); um seminário sobre o uso de obras em domínio público, em Berlim; a “Giornata del Pubblico Dominio” em Turim, entre outras. Nos Estados Unidos, não há “Public Domain Day”. Pelo menos, não antes de 2019[3]. Até lá, nenhuma obra ingressará em domínio público na seara do direito autoral, em virtude da prorrogação de prazo promovida pelo Congresso norte-americano no Copyright Term Extension Act.

É bem verdade que ao longo do século XX, várias foram as prorrogações no prazo de proteção dos direitos autorais — e não apenas nos EUA. Nos anos 1990, tanto determinados países da União Europeia quanto o Brasil dilataram a proteção de 50 e de 60 anos, respectivamente, contados da morte do autor, para 70 anos, em ambos os casos. As justificativas são muitas, desde aumento na expectativa de vida dos criadores até o lobby ostensivo dos titulares de direitos autorais. Ocorre que a internet veio redefinir tanto o papel do direito autoral quanto o do domínio público.

Até o final do século XX, os direitos autorais interessavam apenas àqueles que produziam conteúdo cultural. Produtores fonográficos, produtores de cinema e editores de livro detinham as formas de produção, normalmente caras e complicadas. Os artistas dependiam dos intermediários para publicarem suas obras e somente as obras que interessavam tais intermediários chegavam ao mercado.

Para aqueles que não trabalhavam com atividade cultural, a lei de direitos autorais então em vigor não oferecia maiores complicações nem questionamentos. Seu texto permitia, em regra, uma cópia integral de qualquer obra intelectual disponível, desde que para fins privados e sem intuito de lucro. Ocorre que a reprodução de obras intelectuais era quase sempre uma tarefa custosa, muitas vezes dispendiosa e que, não raro, resultava em cópias de baixa qualidade.

A revolução tecnológica por que passamos na virada do século XX para o XXI teve como uma de suas consequências mais visíveis a ressignificação dos direitos autorais. Se antes seu estudo era incidental, justamente por causa do baixo impacto social, agora se tornou questão de centro não apenas no ordenamento jurídico mas também na vida cotidiana. A apropriação dos meios de produção cultural por todas as classes sociais acarretou verdadeira explosão de conteúdo na chamada Web 2.0. Atualmente, qualquer pessoa munida de um aparelho celular e de um computador poderá produzir e publicar livros, música, vídeo, muitas vezes (ainda que esta não seja a regra) com considerável valor artístico e potencial econômico. Dessa forma, o direito autoral — outrora periférico — se desloca para o centro das discussões sociais.

A internet possibilita não apenas a criação e a difusão de produtos culturais como o (re)aproveitamento cultural de obras alheias, por meio de adaptações, transformações, remixagens e redefinição do conteúdo da obra. Nesse cenário, o domínio público surge como peça chave.

Se o grande desafio do século XX era o acesso à obra em domínio público, no século XXI o desafio que se põe é a sistematização dos dados. Algumas iniciativas vêm sendo desenvolvidas ao redor do mundo. Websites como Project Gutenberg[4], Europeana[5], The Public-Domain Movie Database[6], Internet Archive[7]e o brasileiro Domínio Público[8]são algumas iniciativas dedicadas a organizar as fontes na internet onde obras em domínio público podem ser encontradas.

Ocorre que todas as iniciativas ainda contam com inúmeros problemas, o que é compreensível. A discussão acerca do tema é incipiente e nem sempre são claras as regras relacionadas ao uso das obras já não mais protegidas por direito autoral. Uma vez que a proteção vigora por prazos distintos a depender do país, a mesma obra pode estar protegida nos EUA mas em domínio público na Coreia, por exemplo. E a falta de fronteiras da internet dificulta a implementação de um projeto global que sirva de repositório de obras em domínio público.

Uma dificuldade adicional reside na falta de registro de obras protegidas por direito autoral, uma vez que o registro é facultativo. Em alguns países, como o Brasil, é relativamente mais fácil aferir se uma obra está em domínio público, especialmente quando o prazo de proteção se conta da morte do autor. Já nos EUA, a tarefa pode se revelar impossível, dada a complexidade das normas hoje vigentes. Dessa forma, a criação de bases de dados confiáveis seria de extrema valia para dar maior segurança jurídica a quem deseje usar obra que julga estar em domínio público.

Em 2007, a OMPI adotou 45 recomendações em sua agenda do desenvolvimento. Em duas delas o domínio público é expressamente mencionado: (16) considerar a preservação do domínio público dentro dos processos normativos da OMPI e aprofundar a análise das implicações e benefícios de um domínio público rico e acessível e (20) promover atividades para a fixação de normas relacionadas a propriedade intelectual que promovam um domínio público robusto entre os países da OMPI, incluindo a possibilidade de preparação de diretrizes que possam ajudar Estados-Membros interessados a identificar material que tenha caído em domínio público em suas respectivas jurisdições[9].

Se muito pouco ainda tem sido feito no sentido de promover um domínio público internacional, há que se admitir (talvez de modo um tanto otimista) que é louvável o fato de o assunto estar sendo mais discutido do que jamais fora. Mas não basta deixar exclusivamente a cargo de governos e organismos internacionais a tarefa de determinar a estrutura e a função do domínio público. Esta era uma conduta certamente mais aceitável em meados do século passado. A sociedade civil precisa contribuir também com a discussão. Nesse sentido, algumas mudanças têm sido percebidas. A licença de domínio público do projeto Creative Commons e iniciativas como a rede de discussão Communia demonstram que o tema do domínio público vem ganhando pauta no tratamento internacional da propriedade intelectual. No momento presente, é indispensável pensarmos em alternativas para suplantar os limites legais forjados ao longo dos séculos XIX e XX.

Muito mais voltados para a compreensão da estrutura dos institutos, os diplomas legais precisam ser reinterpretados para a busca da sua função.

Apesar de não nos parecer certo sanear a partir de nossos valores contemporâneos a linguagem usada por Mark Twain em suas obras do século XIX, a nossa linguagem e a nossa conduta precisam ser constantemente revistas, de modo a não continuarmos a incorrer nos mesmos erros. Por isso, seguem duas recomendações: uma terminológica e outra comportamental.

 

II.

Ainda que tratando de assuntos mais relacionados aos conhecimentos tradicionais, Chander e Sunder afirmam que “o domínio público é agora a cause célèbre entre progressistas da propriedade intelectual e estudiosos da cyberlaw[10]. Se por um lado a sentença é verdadeira para a biotecnologia, também o é, por outro, para dos direitos autorais. Infelizmente, não é assim que o domínio público é normalmente compreendido. James Boyle, por exemplo, menciona que[11]:

 
Os nossos mercados, nossa democracia, nossa ciência, nossas tradições de liberdade de expressão e nossa arte dependem mais consistemente em um domínio público de material disponível livremente do que de material informativo protegido por direitos de propriedade. O domínio público não é algum resíduo grudento abandonado quando todas as coisas boas estão protegidas por direito de propriedade. O domínio público é o lugar onde extraímos os blocos de construção da nossa cultura. É, de fato, a maior parte da nossa cultura. Ou pelo menos tem sido.
 

Uma evidência sutil do pouco prestígio de que goza o conceito de domínio público é que a LDA faz referência a obras que tenham “caído” em domínio público (art. 112), expressão idêntica à adotada pela OMPI em sua recomendação n. 20 (conforme visto acima). O termo é o mesmo em seus equivalentes em inglês, francês, espanhol, italiano. Parece-nos, contudo, que “cair” em domínio público nos conduz claramente à concepção de perda de status. “Cair em domínio público” faz parecer que a obra gozava anteriormente de superioridade apenas pelo fato de ser protegida. A impressão é equivocada, mas reveladora.

Uma obra protegida ou em domínio público é a mesma obra. E se antes ela era objeto de monopólio, o término deste a liberta das amarras legais para que possa adentrar a trilha sem volta: sua vocação para o domínio público. Assim, quer nos parecer que o status não diminui, mas se amplia.

Por isso que em nenhum momento desta tese, usou-se a expressão “cair em domínio público”, a menos que se tratasse de transcrição literal de outro autor ou de texto legal. De nossa parte, evitou-se a expressão o quanto foi possível, e o ato foi intencional.

O primeiro passo, portanto, para conferirmos ao domínio público sua real importância é por meio da correta nomenclatura. Ingressar ou entrar em domínio público devem ser as expressões adequadas para uma causa [tão] célebre. Daí nossa preferência por elas.
 

III.

 

As obras em domínio público são, em regra, antigas. A bem da verdade, com a dilação sistemática dos prazos de proteção, a tendência é que as obras em domínio público sejam cada vez mais antigas. Será que existe um interesse autêntico por essas obras? Ou o mundo está muito mais interessado na novidade, no inédito? Em outras palavras, a quem pode interessar o domínio público?

Ao longo desta tese, pudemos identificar inúmeros exemplos (dentre muitos outros que poderiam ser citados) de obras em domínio público que conservam valor artístico e estimulam a criação de novas obras ou de reedições dos originais.

Em 2010, a versão de Tim Burton para “Alice no País das Maravilhas” foi a segunda maior bilheteria nos Estados Unidos[12]. Mas não apenas superproduções hollywoodianas têm interesse nas adaptações de obras em domínio público. O conto de Machado de Assis intitulado “A Igreja do Diabo” será adaptado para o cinema em 2011 pelas mãos do diretor português Manoel de Oliveira (que espantosamente nasceu no ano da morte do escritor carioca e continua ativo aos 101 anos).

Além disso, autores como Jane Austen e o próprio Machado de Assis, entre muitos outros, vêm sendo adaptados não apenas para o cinema, mas também têm seus livros recriados, frequentemente com o uso de elementos fantásticos. Ainda no campo da literatura, a Editora Abril lançou no início de 2010 uma grande coleção de clássicos em que figuravam obras como “Crime e Castigo”, “Madame Bovary”, “O Retrato de Dorian Gray”, “A Divina Comédia” e “O Primo Basílio”, entre outros, enquanto que a Folha de São Paulo publicou, também em 2010 e igualmente em bancas de jornal (como fez a Abril), títulos como “A Origem das Espécies”, “O Príncipe”, “A Riqueza das Nações”, “Discurso sobre o Método” e “A Bíblia”, este último um exemplo de sucesso de autoria coletiva.

Um último exemplo: Copacabana viu 2011 começar com seus famosos fogos de artifício sincronizados com a música de Mozart e Beethoven remixadas por batucadas de samba, em mash up do músico João Brasil[13].

A importância do domínio público, pode-se perceber, conta com aspectos sociais, econômicos e jurídicos. Todos aqueles que criam obras artísticas são inevitavelmente influenciados por toda a produção cultural que lhes serve de fonte. Desde sempre o homem criou a partir de trabalhos alheios. O domínio público permite que essa tendência natural seja exteriorizada sem se tornar dependente de autorização por parte de quem quer que seja, ou de pagamento pelo uso da obra.

As obras em domínio público podem ser exploradas economicamente, tanto em suas versões originais quanto pela criação de novos trabalhos. Isso permite maior acesso às obras, por conta da possibilidade de múltiplas edições de qualidade e preços variados. Adicionalmente, a exploração econômica das obras em domínio público pode se consumar a partir de adaptações, arranjos, regravações, mixagens e todo tipo de modificação.

Do ponto de vista jurídico, a garantia do uso de obra em domínio público acaba por compor a efetivação de diversos princípios garantidos constitucionalmente. Os direitos à educação, à liberdade de expressão, ao acesso ao conhecimento, à cultura, que conduzem todos à dignidade da pessoa humana, são mais facilmente realizados na medida em que a sociedade se alimenta de um domínio público robusto e facilmente acessível. A importância do domínio público cresce, inclusive, na medida em que a LDA é bastante restritiva em seu capítulo de limitações e exceções. Uma vez que a própria lei é tão econômica nas hipóteses de uso de obras alheias sem autorização do autor, o domínio público se torna ainda mais uma pedra fundamental para a construção das bases da cultura.

Nesse sentido, o domínio público clama por ser lembrado, usado e aproveitado social e economicamente. É um dever coletivo estimular o uso de obras em domínio público e a criação de obras dele derivadas. Também essa é uma conduta que resgata a memória nacional e estimula a criatividade e a reflexão. Quando Vinícius de Moraes afirmava que “a esperança é uma mulher tão à mão que é até ingratidão a gente não dar-lhe em cima”, podia muito bem estar a se referir ao domínio público.

 

IV.

Os direitos autorais são protegidos em quase todos os países do mundo por meio

de tratados internacionais que impõem prazos mínimos de proteção. No Brasil, o prazo padrão é o da vida do autor mais setenta anos.

Uma constante que vem sendo observada internacionalmente é o aumento progressivo dos prazos de proteção. Nos últimos 20 anos, Estados Unidos, União Europeia e Brasil dilataram a proteção patrimonial dos direitos autorais, o que ensejou, inclusive, ação judicial levada à apreciação da Suprema Corte norte-americana por violação de princípios  constitucionais.

Um dos grandes desafios que hoje vivemos é dar efetividade à proteção de obras intelectuais em um mundo globalizado e conectado à internet. Considerando que os prazos de proteção variam de um país para outro, não raro obras em domínio público em determinado país poderão ser acessadas por usuários da internet em outro lugar, onde permanecem protegidas.

Ainda que os direitos autorais sejam protegidos em âmbito nacional, com base em leis nacionais, a compreensão da matéria em outros países é bastante relevante para o estudo do tema no Brasil. Afinal, o domínio público é instituto cuja fundamentação é razoavelmente uniforme em todo o mundo. Por isso, discussões travadas em outros países (como o futuro ingresso em domínio público de “Mein Kampf”, na Alemanha, ou as decisões dos EUA e do Canadá de não conferirem proteção a obras sem originalidade) podem nos auxiliar a compreender mais adequadamente o domínio público no direito autoral brasileiro.

 

V.

Ocorre que, até o presente momento, o tema não tem sido discutido de maneira suficiente (nem no Brasil nem no estrangeiro), o que acaba por implicar diversas dúvidas, das mais variadas naturezas. Por conta disso, não são muitos os casos que tratam de domínio público julgados nas cortes internacionais, à exceção dos Estados Unidos. Até onde pudemos identificar, o tema é inédito nos tribunais superiores brasileiros.

Entretanto, acreditamos que as controvérsias acerca do domínio público se tornarão cada vez mais frequentes. Em primeiro lugar, por tudo que já afirmamos: a internet redefine o lugar do direito autoral, estimula a criação e permite a circulação de bens intelectuais em proporções jamais vistas. Sendo assim, quanto mais obras produzidas, maior a necessidade de se aferir com precisão os limites jurídicos de um instituto. A sociedade precisa conhecer de que forma pode usar obras em domínio público.

Em segundo lugar, pela crescente judicialização das demandas. A propositura de ações se mostra cada vez mais corriqueira, o que em regra tem tido efeito pernicioso no judiciário, tornando-o lento e ineficiente. Por isso, o judiciário precisa conhecer com clareza as bases teóricas que justificam um instituto, de modo a tornar seu julgamento adequado às demandas do tempo presente.

Tanto pelo efeito prático quanto pelo dogmático, uma teoria do domínio público se faz necessária e útil. Este o intuito primeiro desta tese. Com o trabalho, buscamos definir a estrutura e a função do domínio público.

Por estrutura, entendemos a construção legislativa do domínio público, sua inserção no ordenamento jurídico, suas fronteiras legais. Dessa forma, foi indispensável analisarmos minuciosamente cada artigo da LDA onde o domínio público é citado ou onde houvesse impacto — por menor que fosse — em seus alicerces. Buscamos solucionar as questões mais controvertidas a partir da doutrina brasileira e da experiência estrangeira, dada a semelhança do fundamento e da aplicação do domínio público nos diversos ordenamentos, independentemente de se tratar de um país de tradição romano-germânica ou da common law.

Já quanto à função, entendemos que os institutos jurídicos devem ser sempre funcionalizados. Independentemente de se tratar o aspecto patrimonial do direito autoral como monopólio ou como emanação da propriedade (o que autorizaria a aplicação direta do princípio constitucional da função social da propriedade), certo e incontestável é que o direito autoral deve ser funcionalizado. E isso se aplica igualmente ao domínio público.

Ocorre que o domínio público não vem cumprindo sua função plena. Um pouco em razão do desconhecimento, muito em razão das incertezas decorrentes da interpretação da lei e ainda um tanto por conta de abusos de direito, o que pudemos verificar foi que nem mesmo em arquivos públicos o domínio público vem sendo respeitado como deveria. Os arquivos públicos cumprem papel relevantíssimo para a sociedade, na  medida em que documentos públicos devem ser tratados como “instrumento de apoio à administração, à cultura, ao desenvolvimento científico e como elementos de prova e informação”[14]. Entretanto, muitas são as práticas abusivas que pudemos verificar e que violam frontalmente a função social a ser exercida pelos arquivos públicos. Entre outras, podemos apontar: discriminação quanto ao uso que se pretende fazer da obra em domínio público; cobrança de valor diferenciado para dar a acesso a determinada obra em domínio público quando esta será usada para fins econômicos; exigência de autorização de suposto titular ainda que a proteção patrimonial à obra já tenha expirado e até mesmo recusa em dar acesso à obra em razão do uso que dela se pretende fazer.

É bem verdade que abusos como estes relatados não ocorrem apenas no Brasil. No entanto, a situação nos parece significativamente mais grave em nosso país, especialmente por conta da insegurança jurídica decorrente de uma lei omissa como a LDA e de um Poder Judiciário que em regra desconhece os direitos autorais.

 

VI.

De acordo com a mitologia grega, Procusto vivia em uma casa onde havia uma

cama a que seu corpo se ajustava com perfeição. Sempre que convidava alguém a se deitar sobre sua cama, sendo o hóspede demasiadamente alto, amputava-lhe o excesso; sendo demasiadamente baixo, era esticado até que se adequasse a todo o comprimento do leito. À técnica de Procusto ninguém sobrevivia.

Se a história não é nova, nem a metáfora inédita[15], ainda assim o mito de Procusto nos é de bastante valia.

O domínio público vive na tensão entre variados conflitos: se promove a liberdade de expressão, o acesso ao conhecimento, a educação, a livre iniciativa etc., é também verdade que precisa se conformar a outros direitos previstos em nosso ordenamento jurídico (como os direitos de personalidade), aos desafios de legislação internacional de múltiplas tradições em um mundo globalizado e a questões tecnológicas na era digital. O domínio público tem implicações ainda em relevantes questões de direito do consumidor, de direito da concorrência, de direito contratual, de direito de família e de outros mais que se possa invocar.

Neste cenário de hipercomplexidade jurídica, o que se verifica é que os princípios sobre os quais foi forjado o direito autoral, no século XIX, já não se prestam com perfeição aos tempos contemporâneos. Por isso, tentar delimitar a estrutura e a função do domínio público a partir desses conceitos e soluções se mostrará quase sempre inadequado[16].

Algumas questões apresentadas nesta tese precisam ser amplamente debatidas. O tratamento dado ao direito de imagem em obras em domínio público, o direito de acesso a obra de artes plásticas cujo original é objeto de propriedade, o direito de se dedicar obra voluntariamente ao domínio público e a melhor regulamentação dos arquivos públicos para dar acesso a obras não mais protegidas pelo direito autoral patrimonial são apenas alguns exemplos de temas pouco discutidos pela doutrina que esta tese buscou analisar. Com as amplas veredas de possibilidades abertas pela digitalização do mundo, precisamos tentar definir os contornos mais claros da estrutura e os objetivos a serem cumpridos pela função do domínio público, tendo sempre por norte nosso ordenamento jurídico, neste momento histórico.

Naturalmente, não se pretendeu com esta tese esgotar um tema. Todos os temas são inesgotáveis na sociedade da informação, da especialização, da incerteza[17]. O que se tentou foi analisar o domínio público a partir de um prisma dinâmico, internacional e interdisciplinar, da maneira mais ampla possível, enfrentando todas as questões que nos pareceram relevantes e tentando, sempre que possível, encontrar ao menos alguma solução que se nos mostrasse adequada.

Finalmente, esperamos de fato que esta tese seja um incentivo ao debate, mais do que uma fonte de respostas e soluções. Desejamos, honestamente, que este trabalho possa contribuir para uma compreensão cada vez mais precisa e justa da estrutura e da função do domínio público no direito autoral brasileiro.


  1. A rigor, neste caso, a contagem se dá desde a criação da obra. Mas como este direito se estende por toda a vida do autor — que tem naturalmente prazo incerto — a contagem do prazo de proteção efetivamente apenas pode se iniciar com a morte do autor. Antes disso, vigora um direito vitalício.
  2. Em 2012, será a vez de James Joyce, Virginia Woolf e Rabindranath Tagore. Em 2013, Robert Musil e Stefan Zweig.
  3. Disponível em http://www.law.duke.edu/cspd/publicdomainday. Acesso em 22 de janeiro de 2011.
  4. Disponível em http://www.gutenberg.org/wiki/Main_Page
  5. Disponível em http://www.europeana.eu/portal/index.html
  6. Disponível em http://pdmdb.org/
  7. Disponível em http://www.archive.org/
  8. Disponível em http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/PesquisaObraForm.jsp.
  9. (16). Consider the preservation of the public domain within WIPO's normative processes and deepen the analysis of the implications and benefits of a rich and accessible public domain; (20). To promote norm-setting activities related to IP that support a robust public domain in WIPO's Member States, including the possibility of preparing guidelines which could assist interested Member States in identifying subject matters that have fallen into the public domain within their respective jurisdictions. Disponível em http://www.wipo.int/ip-development/en/agenda/recommendations.html. Acesso em 22 de janeiro de 2011.
  10. CHANDER, Anupam e SUNDER, Madhavi. The Romance of Public Domain. California Law Review — vol. 92, 2004; p. 1334.
  11. Tradução livre do autor. No original, lê-se que: “[o]ur markets, our democracy, our science, our traditions of free speech, and our art all depend more heavily on a public domain of freely available material than they do on the informational material that is covered by property rights. The public domain is not some gummy residue left behind when all the good stuff has been covered by property law. The public domain is the place we quarry the building blocks of our culture. It is, in fact, the majority of our culture. Or at least it has been” (grifo no original). BOYLE, James. The Public Domain. Cit.; pp. 40-41.
  12. Disponível em http://boxofficemojo.com/yearly/chart/?yr=2010&p=.htm. Acesso em 22 de janeiro de 2011.
  13. Disponível em http://www.jb.com.br/rio/noticias/2011/01/01/foi-o-melhor-reveillon-de-copacabana-diz-secreta- rio/. Acesso em 22 de janeiro de 2011.
  14. Lei 8.159/91, art. 1º.
  15. Ver, entre outros, James Boyle em “The Public Domain”. Cit..
  16. “Vivemos no que já foi denominado de uma era de incertezas, o que inevitavelmente transparece no âmbito do Direito”. MORAES, Maria Celina Bodin de. Perspectivas a Partir do Direito Civil-Constitucional. Direito Civil Contemporâneo — Novos Problemas à Luz da Legalidade Constitucional. São Paulo: ed. Atlas, 2008; p. 40.
  17. “Vivemos no que já foi denominado de uma era de incertezas, o que inevitavelmente transparece no âmbito do Direito”. MORAES, Maria Celina Bodin de. Perspectivas a Partir do Direito Civil-Constitucional. Direito Civil Contemporâneo — Novos Problemas à Luz da Legalidade Constitucional. São Paulo: ed. Atlas, 2008; p. 40.