O Ermitão da Glória/XV

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Em um mês, que tanto fazia desde a volta de Aires, não lhe dissera Maria da Glória uma palavra sequer acerca da longa ausência.

— Tão alheio lhe sou, que nem se apercebeu do ano que passei longe dela.

De seu lado também não tocava o cavalheiro nesse incidente de sua vida, que desejava esquecer. Quando Duarte de Morais insistia com ele para saber a razão por que se partira tão inesperadamente, e por tanto tempo sem dar aviso aos amigos, o corsário esquivava-se à explicação e apenas respondia:

— Tive notícia do inimigo e fui-me sem detença. Deus Nosso Senhor ainda permitiu que tornasse ao cabo de um ano, e eu lhe rendo graças.

Convenceram-se quantos o ouviam falar assim, que havia um mistério na ausência do cavalheiro; e o povo miúdo cada vez mais persistia na crença de que a escuna estivera encantada todo aquele tempo.

O primeiro cuidado de Aires, logo depois de sua chegada, foi ir com toda a sua maruja levar ao mosteiro de São Bento o preço de tudo quanto haviam capturado, para ser aplicado à festa e ornato da capela de Nossa Senhora da Glória.

Acabado assim de cumprir o seu voto e a penitência a que se tinha sujeitado, não pensou Aires senão em viver como dantes para Maria da Glória, bebendo a graça de seu formoso semblante.

Mas não tornaram nunca mais os dias abençoados do íntimo contentamento em que tinham vivido outrora. Maria da Glória mostrava a mesma indiferença pelo que passava em torno dela; parecia uma criatura já despedida deste vale de lágrimas, e absorta na visão do outro mundo.

Dizia Úrsula que essa abstração de Maria da Glória lhe ficara da doença, e só havia de passar em casando; pois não há para curar as meninas solteiras como os banhos da igreja.

Notara porém Aires que especialmente com ele tornava-se a menina mais arredia e concentrada; e vendo a diferença de seu modo para com Antônio de Caminha, de todo convenceu-se que a menina gostava do primo, e estava-se finando pelo receio de que ele, Aires, pusesse obstáculo a seu mútuo afeto.

Dias depois que essa ideia lhe entrou no espírito, achando-se em casa de Duarte de Morais, sucedeu que Maria da Glória de repente debulhou-se em pranto, e eram tantas as lágrimas que lhe corriam pelas faces como fios de aljôfares.

Úrsula que a viu nesse estado, exclamou:

— Que tens tu, menina, para chorar assim?

— Um peso do coração!... Chorando passa.

E a menina saiu a soluçar.

— Tudo isso é espasmo! observou Úrsula. Se não a casarem quanto antes, vai a mais, a mais, e talvez quando lhe quiserem acudir, não tenha cura.

— Já que se oferece a ocasião, carecemos tratar deste particular, Aires, em que desde muitos dias atrás ando para tocar-vos.

Perturbou-se Aires a ponto que faltou-lhe a voz para retorquir; foi a custo e com esforço que, vencida a primeira comoção, pôde responder.

— Estou ao vosso dispor, Duarte.

— É tempo de saberdes que Antônio de Caminha quer bem a Maria da Glória e já nos confessou o desejo que tem de a receber por esposa. Também a pediu o Fajardo, sabeis, aquele vosso camarada; mas esse é muito velho para ela; podia ser seu pai.

— Tem a minha idade, com diferença de meses, observou Aires com uma expressão resignada.

— Assentei não decidir sobre isso em vossa ausência, pois embora vos considerássemos perdido, não tínhamos essa certeza; e agora que nos fostes felizmente restituído, a vós compete decidir da sorte daquela que tudo vos deve.

— E Maria da Glória?... perguntou Aires já senhor de si. Retribui ela o afeto de Antônio de Caminha, e o quer por marido?

— Sou capaz de jurar, acudiu Úrsula.

— Não consenti que se lhe falasse nisto, sem primeiro sabermos se era de vosso agrado essa união. Mas ela aí está; podemos interrogá-la se o quereis, e será o melhor.

— Avisais bem, Duarte.

— Ide, Úrsula, e trazei-nos Maria da Glória; mas não careceis de preveni-la.

Com pouco voltou a mulher de Duarte acompanhada pela menina.

— Maria da Glória, disse Duarte, vosso primo Antônio de Caminha pediu vossa mão, e nós desejamos saber se é de vosso agrado casar-vos com ele.

— Já não sou deste mundo, para casar-me nele, respondeu a menina.

— Deixai-vos de ideias tristes. Haveis de recobrar a saúde; e com o casamento voltará a alegria que perdestes!

— Essa mais nunca!

— Enfim decidi de uma vez se quereis Antônio de Caminha por marido, pois melhor não creio que possais achar.

— É do agrado de todos, este casamento? perguntou Maria da Glória fitando os olhos em Aires de Lucena.

— De todos, começando por aquele que tem sido vosso protetor, e que tanto, se não mais do que vossos pais, tinha o direito de escolher-vos um esposo.

— Pois que foi escolhido por vós, Senhor Aires, aceito.

— O que eu ardentemente desejo, Maria da Glória, é que ele vos faça feliz.

Um triste sorriso desfolhou-se pelos lábios da menina.

Aires retirou-se arrebatado, porque sentiu romper-lhe do seio o soluço, por tanto tempo recalcado.