O Ermitão de Muquém/II/III

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Era alta noite ; o silêncio e o sono reinavam na taba do velho cacique, o qual, depois de ter narrado aos amigos reunidos em torno do fogo algumas das proezas de sua mocidade, adormecera suavemente entre a fumaça de seu cachimbo e os vapores de um vaso de cauim sobre a sua enorme pele de onça. Os fogos da taba se extinguiram; no meio daquele profundo silêncio ouvia-se apenas só o resfolgar das pessoas adormecidas nos diversos aposentos da vasta cabana.

Somente no quarto em que fora recolhido o infeliz Gonçalo alguém velava. Era Guaraciaba, que à luz de um fogo que continuamente alimentava, observava com ansiosa curiosidade e interesse o rosto do mancebo moribundo. De vez em quando brandindo um tição se aproximava subtilmente do leito do ferido a ver se em seu rosto se manifestavam já alguns sinais de vida, avizinhava cautelosamente o ouvido como que procurando escutar-lhe a respiração e o palpitar do coração. Curiosa e inquieta não podia arredar sua atenção daquele leito, em que jazia o mísero prisioneiro, e o sono se recusava a cerrar-lhe as pálpebras mimosas. A pouca distância de Gonçalo, Andiara, o pajé encarregado de sua cura, deitado em uma esteira de juncos, ressonava profundamente.

Enfim lá pela madrugada Gonçalo fez um ligeiro movimento, e um fraco gemido quase imperceptível escapou-lhe do peito. Guaraciaba estremeceu e o coração pulsou-lhe com violência.

— Está vivo! murmurou com alegre sobressalto a filha da floresta, e escutou ainda; mas não ouviu mais som, nem notou movimento algum. Aproximou-se de novo ao leito, e cuidou notar um leve arquejar do peito do prisioneiro; mas este, pálido e imóvel, não apresenta ainda no semblante sinal algum de vida. Guaraciaba enfim afoita-se a pôr-lhe de manso a mão sobre o coração. Gonçalo com o frescor da madrugada e graças aos bálsamos eficazes que o experiente pajé lhe vertera nas feridas, ia pouco e pouco recuperando os sentidos, e acordava lentamente de seu longo desfalecimento. As idéias se despertavam em sua alma como em um sonho nebuloso e vago, e duvidava se era ainda em corpo e alma um habitante deste mundo, ou se já era um espírito errante pelos limbos da eternidade. No meio porém daquele penível delírio de suas confusas idéias ele sentiu a mão mimosa de Guaraciaba pousar-lhe docemente sobre o coração; mas em vão tentou abrir os olhos; suas pálpebras amortecidas e inertes não obedeceram à sua vontade; quis falar, mas não lhe saiu do peito mais que um ralido imperceptível. Este aflitivo pesadelo já há alguns minutos o atormentava, quando Gonçalo ouviu confusamente uma voz doce e infantil murmurando em língua indígena estas palavras a espaços interrompidas:

— Pobre mancebo! meus irmãos foram bem cruéis em maltratá-lo assim! É bem triste ver um guerreiro assim na flor da vida, tão belo e tão valente, prostrado e morto a golpes de tacape, como se fora um jaguar! E por que havia ele de ser tão louco e temerário! Se não resistisse, acharia talvez entre nós agasalho amigo e franco. Como é gentil, e diferente dos meus companheiros da floresta! seus cabelos negros e luzentes como as penas do anu enroscam-se como serpentes em redor do pescoço, seu porte é como o dos heróis; em sua larga frente ressumbra como que alguma coisa de superior e de celeste. Entretanto, ai de mim! esse belo estrangeiro é a vítima destinada a ser sacrificada a Tupá no dia em que eu for entregue como esposa entre as mãos de Inimá para tornar os manitós propícios à nossa união! Se assim é, ó meu pai, ó Inimá, possa nunca mais raiar esse dia de tão nefasto e abominável sacrifício!

Ao som deste suave monólogo o espírito de Gonçalo começava a desnevoar-se pouco a pouco como aos acordes de uma música celestial. Recorda-se então confusamente do medonho combate da véspera, e pasma de se achar ainda no número dos vivos. Entretanto essa voz suave, que com tanta ternura o lastima, anuncia-lhe também que ele é prisioneiro, e que sua vida não é poupada senão para que seja solenemente sacrificada em um dia de festins nupciais. Mas as palavras desse ser desconhecido repassadas de piedosa doçura lhe ressoavam aos ouvidos como um hino de esperança, e posto que nada pudesse ver, seu coração como que adivinhava a presença de um anjo salvador, que velava junto ao seu leito. Gonçalo faz um esforço e consegue fazer um movimento e exala um fraco gemido. Guaraciaba cala-se e suspende a respiração, como a rola assustada, que interrompe o arrulho ao ouvir passos na floresta; retira-se um pouco, espera um momento e de novo chega-se ao leito e interroga com os olhos o rosto do ferido. Este sente-lhe os passos, enfim pode abrir os olhos e com voz débil e sumida pronuncia em língua indígena estas palavras:

— Virgem da floresta, ou anjo do céu, como me pareces, que tanta compaixão mostras pelo infeliz prisioneiro, dize-me, quem és tu, onde me acho eu, e o que se pretende fazer de mim?

— A filha de Oriçanga, maravilhada de ouvir nos lábios do estrangeiro a língua de seus pais, lhe responde comovida:

— Tu te achas na taba de Oriçanga, meu pai e cacique dos Chavantes, em cujo poder caíste prisioneiro. Aqui ficarás até que sarem tuas feridas e recobres a saúde e as forças.

— Para depois ser conduzido ao sacrifício, não é assim, filha de Oriçanga?

— Oh! quem to disse! atalhou ela vivamente, e pensou consigo aterrada: acaso me teria ele ouvido?

— Oh! sim! bem o sei; continua Gonçalo animando-se; sei que me conservam a vida para depois festejarem com a minha morte e consagrarem com meu sangue cobardemente derramado tuas bodas com... mas não o conseguirão... com estes dentes ainda posso arrancar as ataduras destas feridas e fazer correr por elas todo o meu sangue, para que o não derrameis em vossas festas abomináveis.

— Ah! não! não faças tal; exclama aflita. Acalma-te; nenhum perigo te ameaça... mas é lástima que sejas, como pareces, um filho dos imboabas, desses cruéis inimigos e perseguidores da raça dos adoradores de Tupá.

— Não o creias, filha de Oriçanga: eu sou como vós outros filho das selvas livres; sei encurvar o arco e despedir a flecha de meus antepassados, falo, como vês, a tua língua, e só conheço o imboaba para odiar-lhe e beber-lhe o sangue.

Gonçalo por uma prudente astúcia entendeu que devia nesta conjuntura ocultar a verdade, e nem ele mentia totalmente, pois que voluntariamente se havia seqüestrado da sociedade para viver entre os selvagens. Ao ouvir estas palavras Guaraciaba não pôde conter um grito de surpresa e satisfação.

— É verdade o que acabas de dizer, estrangeiro? quê! tu não és imboaba!... tu és dos nossos! nesse caso tranqüiliza-te; nada tens a temer aqui, é a filha de Oriçanga quem responde pela tua vida.

— Anjo, exclama Gonçalo com voz sumida e angustiada, para que queres poupar-me a vida?... Ah! tu não sabes quanto ela me é odiosa e pesada... Mas tu não és por certo uma mulher... tu és um manitó celeste enviado por Tupá para proteger-me e consolar-me... ah! deixa-me beijar essa mão generosa...

— Cala-te, interrompeu ela levando-lhe os dedos à boca; o pajé não quer que fales, pois isso te fará muito mal. Ah! imprudente que eu fui em te fazer assim falar por tanto tempo.

A primeira claridade do dia já vinha frouxamente penetrando pelas frestas da cabana. As selvas começavam a despertar aos mil rumores que faziam uma multidão de aves esvoaçando, piando, grasnando ou gorjeando entre os ramos orvalhados. Nuvens de papagaios, araras e periquitos atravessavam o espaço enchendo os ares de sua incessante algazarra; e enquanto o tucano, vaidoso de sua vistosa plumagem, fazia ouvir seu rouco e ingrato grasnar, o sabiá do alto da peroba secular desprendia seus cadenciados gorjeios. Guaraciaba desperta o pajé adormecido, e anuncia-lhe, sem disfarçar sua alegria, que o estrangeiro recobrara os sentidos, e com a maior instância lhe pede e recomenda que se desvele em tratá-lo com todo o zelo que exige o seu estado melindroso.

Andiara votava paternal afeição à filha do cacique, sobre cuja infância velara desde o berço com a mais terna solicitude. Tendo ela ainda em tenra idade perdido sua mãe, a linda e donosa Naumá, Andiara, parente e amigo fiel e extremoso de Oriçanga, a cuja família julgava estar ligada a glória da nação dos Chavantes, tomou a si o cuidado de educar e desenvolver os dotes do corpo e do espírito da gentil menina, última progênie de uma raça de heróicos caciques, e em quem repousava toda a esperança da tribo. Ele a tinha sempre junto a si, e a conduzia pela mão em seus giros pelas florestas; ele entretecia com suas próprias mãos vistosos canitares de plumas ondulantes para sombrear-lhe a fronte, e lhe engastava o cinto da araçóia de palhetas de ouro nativo e de brilhantes pedrarias. Também a exercitava na arte de encurvar o arco, de brandir o tacape, de fender com os ombros as águas das torrentes, ou impelir rapidamente com o remo uma piroga a resvalar pelas ondas azuladas de seu rio natal; ensinava-lhe as danças e cantigas sagradas, e os hinos de guerra, dando-lhe uma educação toda varonil na esperança de torná-la um dia uma heroína capaz de elevar a nação ao mais subido auge de glória e de grandeza. Guaraciaba por seu lado respeitava e queria ao velho pajé como a um outro pai; com docilidade e submissão filial obedecia às suas ordens, escutava os seus conselhos, e retribuía-lhe com afetuosa gratidão os afagos e cuidados que dele recebia.

Andiara pelo muito afeto que tinha à gentil menina, ou por uma natural simpatia, deixou-se também penetrar do interesse que a ela inspirara o malferido estrangeiro, e esforçou-se com desvelo e ardor em restituir-lhe a vida e a saúde.

Tendo pois bem recomendado o enfermo aos cuidados do pajé, Guaraciaba deixa a taba, corre à beira do rio, banha as faces e os olhos ardentes de insônia na sua onda límpida e fresca, e com um pente de madeira preciosa e aromática encrustado de lâminas de ouro desembaraça e alisa os negros e luzidos cabelos, que se espalham como um véu sobre os ombros e o seio. Vai depois pressurosa despertar seu pai, e com prazenteiro e ingênuo sorriso diz-lhe:

— Meu pai, ele vive!

— Quem, filha?... o imboaba?

— Sim, o estrangeiro, meu pai; esta madrugada abriu os olhos e

falou...

— Bem, minha filha! dá graças a Tupá, que nos envia um herói dos imboabas para ser imolado no dia em que eu te entregar nos braços de Inimá como companheira de sua taba. Excelente agouro, que promete a perpetuação dos heróicos caciques do sangue de meus avós! O sacrifício desse sanhudo e valente imboaba será mais grato a Tupá do que se imolássemos um cento de vítimas ordinárias, e os céus serão propícios à tua união.

— Mas, meu pai, tu te enganas, esse prisioneiro não é um imboaba; ele é, como nós, filho e Tupá, fala a língua das florestas, e odeia como nós a raça de nossos perseguidores.

— E que manitó celeste, ou que pajé inspirado revelou-te esse mistério?...

— Ele; ele mesmo mo disse.

— E acreditaste!... não sabes que a mentira, o embuste, a traição andam sempre nos lábios dessa gente pérfida e cruel?

— Oh! não... sua voz, suas falas, sua figura não são do imboaba; nelas respira o espírito de verdade, e em seu rosto transluz a altivez do filho das florestas.

— De feito, murmurou o velho chefe abanando a cabeça, quem com tanta destreza encurva o arco e vibra tão mortíferas flechadas, quem combate com tamanho denodo e valentia, não pode ser do sangue vil do imboaba traiçoeiro. Mas seja como for, é sempre um inimigo e um herói; e tu, minha encantadora e querida Guaraciaba, tu és bem digna de que tua união seja consagrada com o sangue de um herói soterrado pelas mãos de teu esposo.

— Ah! meu pai! se para que minha união seja feliz e agradável aos céus, é mister que corra o sangue de um desgraçado prisioneiro, perdoa-me, meu pai, eu não serei nunca a esposa de Inimá!

— Que dizes, filha! como queres menosprezar a velha e sagrada usança de nossos antepassados? É sempre grato a Tupá o sangue do inimigo vertido em honra sua, e cometeríamos um crime se poupássemos a vítima que ele mesmo nos envia.

— Mas a vítima não é um inimigo, é um infeliz foragido, que porventura procurava entre nós gasalhado e asilo, e a quem recebemos com as armas na mão, como se fora um jaguar.

— Seja pois como dizes, prezada filha; quero ainda condescender com teus caprichos de criança. Sare esse estrangeiro de suas feridas, e quando o seu estado o permitir, seja conduzido à minha presença para nos dizer quem é, e contar-nos a sua história; depois veremos o que dele se fará. E ai dele se procurar enganar-me com seus embustes e mentiras!