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O Ermitão de Muquém/III/I

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Oriçanga, cujo espírito inquieto E atribulado não pudera durante aquela penosa noite gozar um instante do lenitivo do sono, aguardava com impaciência o alvorecer do dia para acabar com a cruel perplexidade que o atormentava a respeito do destino da sua filha. Apenas pois ouviu os primeiros pios das aves pelas florestas, ergue-se e apressa-se em mandar convocar os anciãos da tribo e os venerandos pajés, para que com seus sábios alvitres lhe iluminem o espírito e o guiem em tão difícil e delicada conjuntura.

Estes pajés, que eram sempre homens respeitáveis por sua avançada idade e longa experiência, e venerados entre os selvagens como sacerdotes ou profetas, passavam vida austera e retirada no seio das brenhas em espeluncas solitárias, onde se reputava que tinham comunicação com os espíritos celestes, e eram intérpretes da vontade de Tupá. Eles interpretavam os sonhos, pressagiavam o futuro, decidiam dos bons ou maus agouros, e eram uma espécie de oráculos constantemente consultados, não só em negócios particulares, como também sobre questões de interesse geral dessas hordas, sobre cujo governo exerciam considerável influência. Conhecedores das virtudes das plantas e de outros símplices da natureza, eram eles também que administravam remédios e socorros aos feridos e enfermos, e eram assim também, além de sacerdotes, os únicos médicos dessas tribos.

Os pajés acudiram prontamente ao chamado do cacique, e reunidos na sala a mais profunda e retraída da cabana deliberavam secretamente. Oriçanga informa-os por miúdo de todo o ocorrido, e expõe-lhes sem rebuço a causa de todas as suas hesitações e ansiedades.

A maior parte dos pajés se pronunciavam abertamente contra Itajiba e contra o amor de Guaraciaba, que qualificavam de louco e pueril. Diziam que a quebra das promessas solenes feitas a Inimá, descendente de uma antiga e ilustre raça de caciques e oriundo da mesma nação, em favor de um estrangeiro, vindo sabe o céu de onde, lançaria uma nódoa eterna sobre o nome de Oriçanga; que a efetuar-se a união de Guaraciaba com esse estrangeiro, viria este a ser o sucessor de Oriçanga e chefe natural da nação, o que seria mais que ignominioso e aviltante para a nação dos Chavantes; dir-se-ia que entre tantos jovens guerreiros um só não se achava na tribo digno de desposar a filha do cacique e suceder a este no comando a tribo; enfim que seria uma imprudência só própria de loucos confiar o governo e direção de uma nação inteira a um estranho, que poderia bem não ser mais que um astuto e pérfido aventureiro, um inimigo da nação, só para satisfazer a paixão caprichosa e pueril de uma criança.

Outros, menos exaltados contra Itajiba, opinavam que sem inconveniente algum poderia este tomar Guaraciaba por mulher, uma vez que Inimá desistisse de sua união com ela e desobrigasse Oriçanga de suas promessas; que nesse caso, sendo adotado entre os Chavantes, se lhe daria um lugar distinto entre os chefes; que por esse modo não teria Oriçanga de contrariar os naturais afetos de sua filha, nem teria que sofrer em seu coração de pai; mas quanto à sucessão do comando, devia esta ser devolvida a Inimá, considerando-se extinta por morte de Oriçanga a sua descendência.

Falou por último Andiara, o mais venerável e o mais autorizado dos pajés. Defendeu com calor a causa de Guaraciaba, a quem votava paternal afeição, e de Itajiba, cujo valor e nobres qualidades admirava, a quem o prendia uma natural simpatia, e a quem reputava enviado por Tupá para elevar a nação dos Chavantes ao mais alto grau de esplendor e poderio.

— Não vejo motivo, dizia ele, para se votar tanto ódio a esse estrangeiro, e fazer-se-lhe um crime pelo fato tão natural de ser ele amado pela gentil e nobre filha de nosso chefe. Esse estrangeiro, que sem fundamento algum supondes um inimigo astuto e pérfido, pode ser bem ao contrário um herói, que Tupá nos envia para regenerar a nação dos Chavantes, a qual, com bastante mágoa o digo, vejo bem decaída de seus antigos brios, depois que a idade começou a vergar os ombros e a enfraquecer o ânimo de nosso bravo e glorioso chefe.

Que atos tem ele praticado que denunciem essas intenções pérfidas e hostis contra nós? resistiu desesperadamente aos nossos, quando aqui aportou, porque foi súbita e violentamente atacado. Amou Guaraciaba, porque esta apresentou-se como um manitó celeste à cabeceira do leito onde ele jazia moribundo e crivado de golpes, para abrir-lhe as portas da vida e da esperança; transviou-se com ele nas florestas, porque uma tempestade os surpreendeu. Eis seus crimes; entretanto em todas essas ocasiões ele tem dado sobejas provas de valentia e de ânimo leal e generoso. Podereis dizer outro tanto desse que aclamais o único esposo digno de Guaraciaba e legítimo sucessor de Oriçanga? Não será uma ação infame e desleal a que praticou indo cobrir de insultos e baldões a nobre filha de seu chefe e seu inofensivo companheiro, na caverna em que se tinham abrigado contra a fúria da tempestade, e atentando contra a vida dos mesmos no momento em que Itajiba acabava de salvá-lo das garras de uma fera?... Bem vejo que o nosso velho e ilustre cacique está ligado por promessas sagradas, que não podem ser violadas sem desonra sua; o cumprimento da palavra de um chefe está acima de tudo. Um alvitre porém me ocorre, e dou graças a Tupá que mo inspira, que sanará todas as dificuldades, e decidirá de uma vez para sempre esse pleito entre os dois rivais; e a ocasião é a mais oportuna que se podia deparar. Não longe de nós, para além do rio, existe a nação dos Caiapós, que nos quer mal, nos ameaça constantemente; há bastantes anos, vós bem o sabeis, eles invadiram traiçoeiramente nossas tabas, roubaram nossas virgens e mataram nossos irmãos; entretanto, Oriçanga, este insulto está por vingar-se, porque teus velhos anos não permitem mais guiar-nos aos combates. Por outro lado, para as bandas onde tem suas nascentes este rio sagrado, os imboabas com suas bandeiras devastadoras cada vez mais vão-se avizinhando, nos ameaçam com o extermínio, a escravidão e a morte. Cumpre opor-lhes um dique e fazer-lhes perder para sempre o desejo de penetrar em nossas florestas. Cumpre que nos arranquemos deste ignóbil torpor em que há tanto tempo jazemos, se não quisermos ser esmagados por nossos inimigos, quando menos o esperarmos. Pois bem, ilustre Oriçanga e veneráveis pajés que me escutais, mandemos duas fortes expedições compostas de guerreiros escolhidos contra esses inimigos, que de diversos lados nos ameaçam; uma delas, seja qual for, seja comandada por Inimá; à testa da outra marche Itajiba. Aquele que melhores serviços prestar, que mais bem desempenhar sua árdua e gloriosa missão, seja o preferido.

— Bem falado, Andiara! Bem falado! clamaram os anciãos arrebatados pelo enérgico discurso do pajé, que entre eles passava como um profeta que lia no futuro e conversava com os espíritos celestes. Alguns, que porventura ainda não aderiam às razões por ele apresentadas, não ousaram erguer a voz, e o alvitre de Andiara, adotado por quase todos, prevaleceu.

Ainda o conselho dos pajés não tinha terminado suas deliberações, e já uma turba alvorotada se apinhava e crescia em torno da cabana de Oriçanga. O amotinamento insuflado por Inimá se tinha propagado com caráter assustador. Os inimigos de Itajiba exigiam em altos e ameaçadores gritos que lhe entregassem o traidor estrangeiro, pois queriam dar-lhe o castigo que mereciam seus embustes e pérfidias. Já mesmo algumas flechas sibilavam por cima do teto, e alguns guerreiros furiosos ameaçavam transpor as soleiras da habitação do chefe. Também não mui longe se achavam reunidos em bandos os amigos de Itajiba, prontos a defendê-lo a todo o risco e a libertá-lo, caso caísse nas mãos de seus adversários. Um grande alvoroço popular, um renhido e sanguinolento conflito estava prestes a fazer explosão. O sangue dos Chavantes ia correr em torno da taba de seu antigo e ilustre chefe, sem que nenhum inimigo estranho viesse acometê-los, mas derramado por suas próprias mãos. Itajiba, que de dentro da taba ouvia os furiosos clamores de seus inimigos, dirigiu-se resolutamente à presença de Oriçanga.

— Velho e ilustre cacique, lhe diz ele, por minha causa vejo que vossos lares são desacatados por vossos guerreiros revoltados; compreendo que não posso existir entre vós sem perturbar o sossego e a união de vossos vassalos; eles pedem minha morte; deixai-me pois ir a eles; deixai-me morrer a seus golpes, já que não sirvo entre vós senão para elemento de discórdia e de insubordinação. Seja-me lícito ao menos, para testemunhar minha lealdade, verter o meu sangue em favor de vossa tranqüilidade e da de vosso povo.

Assim falou, e dirigindo-se para a porta precipitadamente, já ia expor-se aos golpes dos revoltos. Mas Oriçanga, Guaraciaba e Andiara colocando-se diante dele embargam-lhe os passos.

— Não irás, diz-lhe vivamente Oriçanga, de modo nenhum o consentirei. Queres que a minha autoridade de chefe vergue e fraqueie diante da insolente audácia de meia dúzia de sediciosos? ignoras, acaso, que estão divididos em duas facções contrárias, e que a tua presença, longe de pôr termo ao tumulto, serás antes o sinal para se travar uma luta encarniçada? fica-te aqui, Itajiba, e deixa a meu cargo reprimir e castigar essa turba insubordinada.

Ditas estas palavras, Oriçanga dirige-se à porta da cabana, e aí apresenta-se em pé e desarmado aos olhos dos sediciosos. À vista do vulto grave e venerável daquele antigo e ilustre chefe, que outrora tantas vezes no campo da peleja os tinha conduzido à vitória, e que tanto lustre e poderio tinha dado à nação com seus feitos valerosos, os revoltosos sentiram-se possuídos de respeito, e suspenderam suas vozerias tumultuosas. Então o cacique erguendo a voz, em breves, mais enérgicas palavras, exprobrou-lhes a ação indigna e feia que praticavam, de que nunca houvera exemplo naquela valente e generosa nação; ponderou-lhes que no seu tempo os Chavantes folgavam de alardear seu valor em defesa dos seus no campo das pelejas combatendo as hordas inimigas; que os de hoje porém só sabem perturbar a concórdia e paz doméstica voltando suas armas uns contra os outros, e mostram-se ferozes e arrogantes diante da taba indefesa de seu chefe, onde só se acham alguns velhos inermes, uma fraca virgem, e um estrangeiro foragido, violando, sem pejo, o que há no mundo de mais sagrado e digno de respeito, a autoridade, a velhice, a inocência e a hospitalidade. Mas que para defender todas aquelas coisas veneráveis e santas, ele ali estava, ele só, velho, enfermo e desarmado; que para penetrar em sua habitação, teriam de calcar aos pés o seu cadáver.

Os selvagens, como as crianças, passam com extrema facilidade de um sentimento a outro, da coragem ao desânimo, da mais violenta e arrogante insubordinação à mais humilde submissão. As severas e enérgicas palavras do cacique retumbaram naquelas almas exaltadas como os trovões da cólera celeste. Confusos e envergonhados de seus excessos, os revoltosos deixaram cair aos pés as suas armas, e curvados com as mãos cruzadas nos peitos pareciam implorar perdão ao exasperado cacique.

Então Oriçanga, aproveitando o ensejo e a boa disposição dos ânimos, anuncia-lhes que, por deliberação do conselho dos pajés, acabara de resolver-se a levar a guerra a dois inimigos audazes que de longo tempo os ameaçam, e põem em perigo a tranqüilidade, a liberdade e a vida dos Chavantes; que é tempo de vingar pelas armas antigas injúrias, e conjurar futuras e iminentes calamidades; que em vez de procurarem matar-se uns aos outros no seio de suas habitações será mais nobre que arrisquem a vida e vertam o sangue pela causa da nação a que pertencem. Ele enfermo e acabrunhado sob o peso da idade e dos trabalhos sente profundo pesar por não lhe ser mais possível ir em pessoa guiá-los ao campo dos combates, afrontar os mesmos riscos e fadigas e partilhar as mesmas glórias; mas terão à sua testa dois valentes e ilustres chefes, ainda em todo o viço e rigor da idade, que os conduzirão com segurança ao mais completo e glorioso triunfo.

Adverte-lhes, enfim, que se armem e preparem a fim de que em poucos dias estejam prontos a partir para a guerra.

Esta fala acabou de produzir a mais salutar diversão nos belicosos ânimos dos Chavantes. Vivas e estrondosas aclamações ecoaram por longo tempo pelas ribanceiras do Tocantins; os diversos grupos se dispersaram, e todos se retiraram para suas tabas contentes e pressurosos a tratar cada um de se prover de aviamentos para a campanha que ia começar.