O Ermitão de Muquém/III/II

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Dentro em quinze dias estavam concluídos os preparativos para essas duas expedições, que tinham de partir para lados diversos a fim de combaterem dois inimigos de origem e costumes inteiramente diferentes. As margens do grande rio estavam coalhadas de canoas bem providas de armamentos, apetrechos e provisões para uma longa campanha. No dia seguinte as duas expedições, composta cada uma de algumas centenas de guerreiros escolhidos dentre a flor da nação, deviam partir daquelas praias para levar a guerra a países longínquos; a atividade e o movimento reinavam ao longo das margens; a alegria e o entusiasmo reluziam no semblante de todos os guerreiros. Itajiba, à testa de quatrocentos a quinhentos combatentes por ele próprio escolhidos, tinha de partir em canoas e singrar águas acima até onde a natureza do rio o permitisse, e depois abandonando as canoas em lugar seguro penetrar pelas terras do inimigo, procurar os brancos e hostilizá-los sempre em qualquer parte que os encontrasse, devastar e saquear suas fazendas, ir ao encontro das bandeiras que porventura saíssem de Goiás, batê-las e rechaçá-las, se possível fosse, até as portas de Vila Boa. Esta ousada e árdua empresa, cujo plano o próprio Itajiba concebera e propusera, devia durar por tempo indeterminado, enquanto achasse inimigos para a combater.

Inimá, tendo às suas ordens outros tantos guerreiros igualmente de sua escolha, devia transpor o rio, penetrar pelas florestas que lhe ficam ao nascente, e levar guerra crua e desapiedada às hordas errantes dos Caiapós, e rechaçá-los para o mais longe que pudesse das vizinhanças do grande rio.

Na aurora seguinte o sol, surgindo por cima das florestas que sombreiam as margens do Tocantins, iluminava uma das mais curiosas e animadas cenas da vida selvática. Uma chusma de ligeiras pirogas entulhadas de guerreiros seminus, de tez bronzeada e aspecto sinistro, ao som estrugidor de rudes cantos de guerra e ao ruído das inúbias e maracás, vogavam lentamente contra a corrente do rio. As águas ao bater compassado de uma multidão de remos marulhavam cintilando como escamas de ouro aos esplêndidos raios do sol matinal, e ao sopro das brisas os vistosos cocares tremulavam sobre a fronte dos guerreiros como filas de coqueiros balançando seus leques sobre o veio trêmulo da torrente. Por outro lado e em direção oposta a falange formidável de Inimá, depois de ter transposto o rio em canoas, desfilava ao longo da margem oposta entoando belicosas pocemas de sangue e vingança, e ia mais abaixo engolfar-se e sumir-se na espessura da floresta como jibóia monstruosa que em sinuosos giros se esgueira a esconder-se pelas moitas do matagal.

Sobre um tope mais elevado da ribanceira Guaraciaba sozinha, encostada a um tronco, tinha os olhos tristemente fitos sobre as pirogas, que lá iam resvalando pela superfície dourada das águas, principalmente sobre aquela em que Itajiba, em pé junto à proa, lançava também olhares repassados de tristeza e de saudade sobre aquelas margens e sobre a virgem da floresta, que ia abandonar por tão longo tempo, oh! e quem sabe se para sempre! Ela as contemplou até de todo se sumirem nas derradeiras voltas do rio, e quando não viu mais do que as águas a correrem monótonas e as selvas a sussurrarem tristemente ao longo das ribanceiras solitárias, seus olhos se arrasaram de pranto; com as mãos e com as negras madeixas abafou soluços e lágrimas que lhe inundavam o seio, caiu desalentada sobre a relva, e chorou, chorou muito e por muito tempo.

Guaraciaba sentia pela primeira vez essa profunda opressão da alma, essa cruel e pungente desolação, que se chama saudade. Pensava nos tristes e silenciosos dias que iam suceder àqueles tão cheios de vida, de alegria e de amor que passara junto de Itajiba; pensava nos azares que este ia afrontar em uma guerra longínqua e perigosa, e cuidava morrer de angústia e desalento.

Andiara, que solícito a observava, correu a ela e procurou levantá-la de seu doloroso abatimento com palavras de consolação e de esperança:

— Não chores, filha de minha alma; dizia-lhe Andiara levantando-a nos braços e arredando-lhe do moreno rosto a nuvem de cabelos negros, que ela ensopava em lágrimas. O tempo corre veloz, e bem cedo verás essas pirogas, que ainda há pouco além se sumiram, de novo ali surgirem vitoriosas e carregadas de troféus trazendo-te aos braços o teu Itajiba coberto de glória, a solicitar de teu pai o único e formoso galardão a que aspira por seus brilhantes e heróicos feitos. Crê-me, ó formosa e digna filha de Oriçanga, Tupá por vezes permite que a meus olhos se dissipem as trevas carregadas que envolvem os caminhos do futuro, e deixa-me decifrar os destinos dos homens e das coisas nos dias que têm de vir. A vitória marchará sempre ao lado de Itajiba, e os mais brilhantes sucessos coroarão seus valorosos esforços no campo das pelejas. Ele voltará ufano e glorioso, e cheio de heroísmo, de lealdade e de amor, virá depor a teus pés os ricos troféus a cuja conquista correra só para tornar-se digno de teu amor, ó a mais bela e a mais ditosa das virgens da floresta. Ele voltará, e unido para sempre a ti pelos laços do mais leal e puro amor será aclamado chefe pela nação inteira, que o aplaudirá cheia de respeito e de admiração, e em vós e em vossos filhos se perpetuará uma invencível e gloriosa raça de heróis, que por largo tempo presidirá aos destinos da valente e poderosa nação dos Chavantes.

Estas palavras, que Andiara proferia com convicção profética, sempre conseguiram acalmar um pouco as angústias que oprimiam o espírito de Guaraciaba. Andiara a conduziu para a cabana de seu pai, onde este por seu turno procurou consolá-la com carícias e com palavras de amor e de esperança.

Quanto a Inimá, por que razão Guaraciaba não desejaria o próspero sucesso de sua empresa e a sua feliz volta às tabas de seus antepassados? Por que não lançaria ela um olhar de despedida sobre um guerreiro que lá ia afrontar a morte entranhando-se no meio de inimigos ferozes só para se tornar digno dela e do seu amor? Oh! Por certo Guaraciaba tinha alma muito boa e generosa para querer a sua ruína e não desejar o seu próspero regresso; mas profundamente ocupada com Itajiba, sua alma tinha poucos pensamentos para Inimá e sua expedição.

Seria difícil decidir qual das duas empresas, confiadas aos dois jovens chefes, era mais árdua e arriscada. É verdade que Itajiba tinha de combater um inimigo que por sua civilização, recursos e estratégia era muito superior aos selvagens que comandava; mas em compensação tinha ele a dupla vantagem de conhecer os países e o inimigo a que ia levar a guerra; seus costumes, manhas e tática. Inimá, pelo contrário, posto que a certos respeitos sua tarefa fosse menos espinhosa, pois ia debelar um povo da mesma índole e costumes, ou talvez mais rude e inculto que os próprios Chavantes, tinha de embrenhar-se por sertões desconhecidos em busca de um inimigo errante sem saber ao certo onde encontrá-lo.

Itajiba tangeu suas canoas pelo Tocantins acima, enquanto o curso do rio se mostrou favorável a essa navegação; mas quando as cachoeiras e corredeiras, pedras e baixios que obstruem o curso superior do rio, começaram a tornar penível e morosa a sua marcha, pôs pé em terra com toda a sua gente na margem esquerda, amarrou fortemente as canoas no recôncavo de uma lagoa formada pelo transbordamento das águas do rio e escondida entre espessas florestas, e por trilhos desviados, que lhe eram conhecidos , marchou ao sul em direção a Vila Boa. Em seu caminho teve diversos encontros com algumas hordas de Coroados e de outros povos selvagens, bateu algumas que tentaram hostilizá-lo, e entre outras porém, que o receberam como amigo, angariou aliados, que reforçaram a sua falange com mais de cem combatentes. Assaltando e saqueando as fazendas e estabelecimentos dos brancos que encontrava em seu caminho, prosseguiu em sua marcha vitoriosa levando por toda a parte onde passava o terror e a devastação.

Bem depressa chegou a Vila Boa a notícia das correrias e devastações dos índios Chavantes pelas terras do Alto Tocantins, e imediatamente tratou-se ali de organizar uma formidável bandeira, que sem mais demora partiu a opor um dique aos progressos daquela temerosa horda, que se precipitava como uma torrente impetuosa sobre as regiões do norte, talando os campos e exercendo incalculáveis estragos e horríveis matanças. Itajiba bem compreendeu que os seus selvagens guerreiros, por intrépidos e valentes que fossem, não poderiam sustentar por muito tempo a pé firme um combate contra as forças dos homens civilizados, e que com suas flechas e tacapes não lhes seria possível fazer face às descargas dos arcabuzes inimigos sem sofrerem grandes estragos e reveses. Assim pois evitou sempre empenhar-se em um combate formal com o inimigo, mas por meio de bem dirigidas guerrilhas, de escaramuças passageiras, de contínuas emboscadas e surpresas foi caindo sobre eles e causando incessantemente em suas fileiras perdas consideráveis. Ora ao atravessarem uma selva, uma chuva de flechas descia como por encanto sobre as cabeças dos soldados goianos, que atônitos ouviam somente os alaridos selváticos dos inimigos, sem que lhes pudessem ver o rosto; quando de carabina armada olhavam para todos os lados em procura dos selvagens, já estes tinham-se escoado subtil e silenciosamente pelas brenhas deixando o chão juncado de cadáveres inimigos. Ora pelo silêncio e escuridão da noite setas inflamadas, sem saber-se donde partiam, baixavam como meteoros ardentes sobre os abarracamentos dos Goianos; a desordem, a confusão, o susto reinavam no acampamento, e súbito uma chusma de guerreiros selvagens entrava por ele de roldão, espalhava o terror, o estrago e a morte, e sem dar aos adversários tempo de reagir, desaparecia de pronto a favor das trevas como uma coorte de duendes por entre a escuridão da noite. Outras vezes com mais audácia ainda na volta de um caminho uma nuvem de selvagens dava de surpresa sobre os Goianos, passava de voata pelas suas fileiras disparando um chuveiro de flechas, e velozes na carreira a competir com o veado ou com a ema desapareciam de novo na amplidão dos desertos. Os Goianos, fatigados por um fim de perseguir um inimigo que se furtava a seus golpes como fantasmas, e que como o vento parecia fugir-lhes das mãos, vendo suas fileiras de dia em dia diminuírem-se consideravelmente destroçadas por flechas disparadas por mãos quase invisíveis, assentaram que seria uma louca temeridade avançarem mais pelos sertões, e regressaram a marchas precipitadas diante das hordas de Itajiba, que prosseguiu desassombrado em sua marcha de devastações e pilhagens.

Bem pesava ao coração de Itajiba mover tão crua e devastadora guerra a seus compatriotas, sem que se desse motivo algum que aos olhos de sua consciência o justificasse de tais excessos e atrocidades.

Mas a torrente da fatalidade o arrebatava e não lhe era mais possível recuar. As solenes promessas feitas ao chefe dos Chavantes, seu ardente amor pela filha do cacique, e talvez também projetos de dominação, que já começavam a despontar-lhe no espírito, e para os quais os acontecimentos pareciam rapidamente impeli-lo, eram motivos poderosos que o faziam prosseguir sem hesitar na carreira encetada.

Todavia em suas correrias Itajiba procurava sempre poupar o mais que fosse possível o sangue de seus inimigos, e coibia quanto podia o feroz canibalismo de suas tropas avezadas ao roubo, ao incêndio e à carnagem. Sem encontrar mais estorvo algum em sua marcha Itajiba, precedido pelo terror e a consternação, foi avançando até as imediações de Vila Boa. De uma eminência ele descortinou ao longe os serros áridos e escalvados que rodeiam o berço de seu nascimento; o coração se lhe apertou de angústia ao contemplar aqueles sítios, onde tão risonha e prazenteira se deslizara a aurora de sua vida, e que ele agora vinha ameaçar e cercar de terror e consternação; sentiu sua alma esmagada sob o peso de uma cruel e sombria tristeza ao lembrar-se que estava para sempre exilado do país de sua infância, que ele tinha tingido no sangue inocente de um infeliz amigo; parecia-lhe que a sombra de Reinaldo, surgindo por sobre os horizontes longínquos, exprobrava-lhe seu horroroso crime, e o expelia daqueles lugares com dolorosos gritos e maldições, e o remorso lhe ralava o coração.

Itajiba refletiu longa e profundamente. Tinha às suas ordens uma multidão de combatentes ainda engrossada pelo grande número de prisioneiros que arrancara aos vencidos, e estes munidos já de armas de fogo tomadas aos Goianos, em cujo uso e manejo ia adestrando os selvagens. Podia pois tentar com bastante probabilidade de sucesso um assalto sobre Vila Boa. Mas o horror instintivo que o desviava daqueles lugares paralisou a sua marcha.

Também por outro lado via que a empresa não deixava de ser arriscada, e sendo malsucedida nulificaria todos os sucessos até ali obtidos. Itajiba julgou que já tinha feito bastante para glória sua e para proveito e lustre da nação a que tinha ligado o seu destino, e resolveu portanto o regresso da expedição que comandava. Além de todos estes motivos, outro talvez mais forte atuava em seu espírito, e acelerou a sua volta. No meio de tantos perigos e fadigas, Itajiba nunca esquecera a sua querida Guaraciaba, e seu amor não deixava de inspirar-lhe cuidados e receios; Inimá, cuja expedição provavelmente estaria mais cedo terminada, poderia já ter voltado triunfante e orgulhoso, e Itajiba sentia estremecer-lhe o coração pensando no que poderia ter acontecido em sua ausência no arraial dos Chavantes.