O Esqueleto (Victor Leal)/VI
O Satanás acompanhou o príncipe a Santos na madrugada do dia seguinte.
Naquela noite, em que a tragédia da rua do Conde se passara, o Satanás saíra de casa da filha, como um louco. Vagara sem destino até o amanhecer, apertando a cabeça nas mãos, sem compreender ainda o que se havia passado.
E no dia seguinte, a bordo, d. Pedro, que o forçara a partir consigo, notou-lhe a fisionomia alterada: o Satanás queixou-se de estar doente e fechou-se a sete chaves no mais absoluto silêncio a respeito dos sucessos da véspera. A notícia dos dous assassinatos espalhara-se rapidamente pela cidade: tinham sido encontrados os cadáveres de Paulo de Andrade e de Emerenciana, e a polícia pôs-se logo em campo para esclarecer o negócio. De Branca, porém, não havia a menor notícia: desaparecera.
Quando o príncipe partiu para Santos, os horizontes políticos do Brasil toldavam-se, anunciando a tempestade iminente. D. Pedro via-se reduzido a simples governador do Brasil e recebera já a ordem de retirar-se para a Europa. O povo de São Paulo mandara-lhe a célebre representação de oito mil pessoas, pedindo-lhe que ficasse.
No ouvido do príncipe regente soavam ainda as últimas palavras de seu pai, ao embarcar para Lisboa: Pedro, põe a coroa sobre a tua cabeça...
O seu nobre desejo de ser o constituidor de um novo povo era secundado ainda pelos conselhos dos seus partidários, que lhe inflamavam cada vez mais o entusiasmo e a ambição.
A Sociedade Tenebrosa do Apostolado, que então funcionava no quartel da Guarda Velha e da qual era o príncipe o Archonte Rei, incitara-o a precipitar os acontecimentos. Demais, as últimas notícias de Lisboa eram as mais inquietadoras possíveis: os deputados brasileiros, insultados nas cortes, tinham reagido escandalosamente com uma nobre energia: perseguidos, tinham sido forçados a embarcar para Falmouth e daí~ara o Brasil.
De modo que o príncipe não podia mais hesitar.
Mas, em Santos, não foi a política que lhe preocupou o exaltado coração.
Lá mesmo, o Satanás teve de reassumir as funções de medianeiro fiel. Porque, cheio, durante o dia, de preocupações políticas, o príncipe passava as noites a correr a velha cidade, à cata de aventuras.
As ruas sujas de Santos, eternamente cobertas de lama, quer a chuva caísse, quer o sol abrasasse, impregnadas de um cheiro repugnante de maresia, não tiveram mais segredos para os dous. E Satanás descobriu uma rapariga deliciosa, que casara com um velho fidalgo português e que não hesitou em abrir o seio à honra dos beijos do jovem príncipe.
A primeira entrevista realizou-se na Barra, em casa de uma velha algarvia, conhecida na cidade pela perícia inexcedível com que preparava as peixadas suculentas para as funçanatas de então. E fui por uma bela noite de luar que O príncipe, acompanhado do Satanás, partiu para a Barra, onde o esperavam uma farta peixada de escabeche e um farto colo de mulher morena.
A casa abria as janelas para o mar, onde o luar entornava a sua prata líquida, naquela noite serena. Eram a perder de vista, desde a praia curva, de areias claríssimas, até o limite apartado do horizonte, águas e águas que tremiam ao luar, encrespadas e franjadas de espuma.
À porta d. Pedro parou. A sua alma ardente de ambicioso agradava aquele infinito sereno, aquela vastidão de águas calmas, ilimitadas como os seus sonhos de poder e de glória.
O Satanás, ao lado, olhava também o mar: e aquilo trazia-lhe à lembrança o infinito do seu desespero e a soledade da sua vida, sem filha, sem amigos, cão rafeiro de um fidalgo...
Mas d. Pedro foi o primeiro a arrancar-se das suas meditações:
- Entremos. Nunca se deve fazer esperar uma mulher.
- Nem uma peixada, acrescentou o escultor.
Entraram. Uma sala baixa, toda furada de janelas, por onde o luar entrava, cintilando. Ao centro, a mesa estava posta, aceiada, com a grande terrina de louça azul, descoberta, deixando ver o molho louro do escabeche, cujo aroma fazia a água crescer na boca.
Maria, ao ver entrar o príncipe, levantou-se do banco em que estava sentada, a uma das janelas, contemplando o luar. Era uma mulher opulenta, de amplas formas sensualmente arredondadas, olhos profundos e negros, circulados de olheiras roxas. No lábio superior, carnudo e vermelho, sombreava-se-lhe um buço delicioso.
O príncipe beijou-lhe a mão, fidalgamente. E, enlaçando-lhe a cintura, foi com ela para a janela. Daí a pouco, a sala encheu-se de um sussurro de vozes cochichadas nomezinhos ternos, risadinhas brejeiras, beijinhos marotos. O Satanás meditava a um canto, taciturno.
A velha Marta do Peixe entrou muito gorda, muito suada com dous seios formidáveis, trêmulos como dous grandes bolos de gelatina, trazendo os canjirões do Ribatejo.
Que viessem para a mesa, que viessem para a mesa! estava a cousa de empanturrar o bandulho e soluçar por mais! haviam de lamber os beiços.. Não! que para coser as anchovas tenrinhas não havia com'a ela!
Abancaram todos. E a Marta, de mangas arregaçadas, deixando ver dous braços que pareciam duas pernas, pôs-se a encher pratarrazes de peixe.
- Olhem que foi pescado ali assim p'lo meu home! E é quê ele foi feliz, o raio do dianho, que as pescarias têm andado nada boas, p'la Senhora da Boa Morte!
O príncipe interessou-se pelo homem da Marta.
- Então? rendia o negócio?
- Qual nada, senhor! É uma azáfama do tinhoso a sol e chuva, e nada de fazer p'r'ó pão! E inda é bom quando não se morre por lá, por essas aiaguas de Cristo! Inda tresantonte lá se ficou o Chico da Burra, mais a canoa e a rede... Agora é verdade que ninguém mandou o desinfeliz ir pescar por riba da catedral!
- Que catedral, mulher? interrogou o Satanás, curioso.
A Marta contou então a lenda, muito conhecida, naqueles tempos e ainda hoje, em Santos. Dizia-se que uma parte da cidade, construída pelos primeiros portugueses, fora submergida. Era nessa parte que fora edificada a primeira igreja de Santos: e tanto que, por noites assim, de luar, quem chegava à beira da praia, ouvia no seio das águas um barulho de sinos, dobrando a finados. E ai! do pescador atrevido que ousasse pescar naquele ponto!... vinham os padres à tona d'água e carregavam com ele para o fundo do mar.
- Crendices tolas! - disse d. Pedro.
Mas, por uma sucessão de idéias, aquela história supersticiosa da velha trouxera-lhe à memória as profecias da Zabanila. Sacudiu os ombros. E, aproximando a cadeira da cadeira de Maria, pôs-se a conversar com ela, em voz baixa. Depois levantaram-se, voltaram à janela.
A Marta do Peixe ia retirar-se discretamente da sala, frechando para a janela um olhar meloso e brejeiro de rufiona entendida. O príncipe falou:
- Olá! mulher! podes levar a luz!
O Satanás saiu, e foi à praia apreciar a noite. E a sala às escuras encheu-se de beijos.
A mesa ficara posta, com a terrina destampada. E talvez, naquela escuridão, a alma faminta de d. Bias andasse em comunicações espíritas com a alma cheirosa do peixe...
Havia meia hora que estavam sós os amantes, quando o Satanás falou da porta:
- Senhor!
- Que é? saiu das trevas da sala a voz do príncipe, enfadado.
- Cousa séria.
- Ora, deixa lá as cousas sérias para amanhã, homem!
- E o capitão das guardas que aí está.
- Que espere.
- Não pode esperar. É preciso que fale já com ele.
- Vai-te para o diabo e deixa-me em paz!
- Ouça, senhor...
- Arre, vai-te! já te disse...
- Perdão! não me vou. Acabam de chegar despachos assustadores de Lisboa.
O príncipe resolveu-se a desenlaçar-se dos braços da amante. Saiu. O capitão esperava-o. Depois de uma curta conferência, o príncipe veio despedir-se de Maria. Outra vez a sala se encheu de beijos. E o príncipe, elevando a voz, chamou pela Marta.
Ela veio logo, muito azafamada, arrastando as banhas pesadas. E ajoelhou-se, comovida, quando o seu hóspede lhe meteu na mão duas moedas de ouro.
Nessa mesma noite, o príncipe saiu de Santos, acompanhado por um regimento de cavalaria. E a madrugada despontava, banhando de ouro e fogo os píncaros de Cubatão, quando a comitiva começou a subir a serra, a caminho de S. Paulo.