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O Esqueleto (Victor Leal)/XIII

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O Satanás ao sair do Paço, levando consigo a filha, parou um momento no largo, procurando apertar o coração para lhe conter as palpitações.

Ah! parecia incrível aquilo... tê-la de novo, louca embora, embora desonrada, mas tê-la enfim, poder de novo apertá-la nos braços, purificá-la com o batismo dos seus beijos, tentar à força de carinhos e de afetos restituir-lhe a razão e a felicidade.

O outro vencera... que importava? O essencial para ele era possuir de novo a filha.

Amanhecia. Perto o mar cintilava espumando contra o cais. Passavam negros descalços, nus da cintura para cima, carregando os tigres, barris cuidadosamente fechados e ainda assim empestando o ar. O largo começava a encher-se de trabalhadores e catraieiros.

O Satanás compreendeu que era preciso sair dali. Podia causar suspeitas a sua presença naquele lugar, ao lado de uma mulher, cujo estado de loucura se via logo no desvario do olhar, no desalinho das roupas, no desordenado dos gestos.

E, arrastando consigo a filha, caminhou para o cais.

Um catraieiro acorreu logo:

- Uma canoa, patrão?

- Sim e depressa.

Mas, o catraieiro um brutamontes espadaúdo e barbado, de camisa de flanela branca listrada de azul, olhava agora com desconfiança para o Satanás. Via-se que hesitava, com receio de se ver comprometido em algum crime: receava conduzir aquele homem suspeito e aquela mulher de fisionomia estranha e de vestido ensangüentado, porque o pouco sangue perdido por d. Bias caíra sobre ela.

- Então! que é que esperas?

- Eh! patrão! quem é você?

- Homem, vamo-nos embora e deixa-te de falar, bruto! - gritou-lhe o escultor, metendo-lhe na mão uma moeda de ouro.

Não hesitou mais o catraieiro. Saltou para a canoa e ajudou a descer Branca e o pai.

- Pr'a onde arriba, patrão?

- Para a Lapa. Depressa.

Daí a pouco, saltavam os dous, pai e filha, na praia da Lapa, e entravam, por uma porta baixa, numa casa espaçosa, cheia de janelas.

Era o atelier do Satanás.

Sentia-se, desde a entrada, um cheiro incômodo de mofo, um ar abafado de casa longo tempo fechada, onde ninguém mora, onde ninguém vai. Ao entrar na sala principal, foi necessário que o escultor corresse imediatamente a abrir as janelas, tão forte, tão sufocante era o cheiro do gesso mofado.

Havia muito tempo que o Satanás não entrava ali. O seu tempo andava ocupado em outras cousas, nas correrias noturnas com o príncipe, nas conjurações, nas vigílias vagabundas pelas tavernas e pelas casas de batota. Pallingrini era um nevrótico. Passava meses inteiros na convivência única do copo e da espada, numa boêmia infernal, cheia de bebedeiras e de duelos, sem se lembrar da sua arte. De repente, vinha ao atelier, fechava-se lá oito dias, começava com entusiasmo uma estátua, um busto, trabalhava com ardor, numa impaciência febril, numa alucinação doentia, aborrecia-se, atirava ao chão a pá de modelagem, dava um pontapé no camartelo, e voltava a atirar-se à vida airada, deixando a obra incompleta.

A sala era toda envidraçada. Enchiam-na, cobertos de pó, estragados pela umidade e pelo sol, os esboços do escultor.

Nada acabado, nada completo. Aqui um projeto de digladiador, sem cabeça, levantava-se, cheio de manchas de mofo, esticando os músculos atléticos. Adiante, uma cabeça de mulher, anjos de asas quebradas, grupos disformes, misturados com instrumentos de trabalho, ossos humanos, caveiras e manequins. Uma estátua do príncipe, modelada em gesso, estava atirada a um canto, partida pelo meio.

Foi para aí, para essa casa povoada de estátuas, que o escultor levou a filha: e ela também parecia uma estátua tão fria e tão branca como as outras, arrastando-se pelo atelier, durante os dous dias que se seguiram ao do malogrado duelo.

Foi debalde que o Satanás formou em torno da filha uma atmosfera de cuidados e de carinhos. A vida desaparecia aos poucos, visivelmente, daquele corpo consumido pela febre. E era o que torturava mais o escultor: ver que ela teria de morrer, sem voltar à razão, sem conhecê-lo, sem pela última vez chamá-lo - pai!

No terceiro dia, mais fraca do que nunca, Branca amanheceu ardendo em febre. Tinha a pele abrasada, os olhos vermelhos, o corpo sacudido de calafrios.

- Paulo! meu Paulo! gemia de instante a instante...

O Satanás torcia as mãos, alucinado, à beira do leito. Ao cair da tarde, a febre baixou: e ela ficou serena, com um longo filete de sangue ao canto da boca, murmurando sempre:

- Paulo! meu Paulo!

O Satanás abriu as janelas: extinguia-se já o fogo do ocaso. A noite crescia sobre o mar. Um dilúvio de cinzas invadiu o céu. Tudo cinzento. Longe, no ponto em que o céu beijava as águas, a primeira estrela erguia a pálpebra de ouro. E uma grande tristeza saía de tudo, velando tudo para os funerais do dia. Ainda uma vez a voz de Branca suspirou dentro:

- Paulo! meu Paulo!

O Satanás, à janela, soluçava, com o rosto escondido nas mãos. Mas, de repente, uma gritaria confusa soou lá fora. Um magote do povo aproximava-se entre aclamações: a alma brasileira andava na rua, exultando e cantando, na aurora da emancipação. E aos ouvidos do escultor chegou distintamente a aclamação popular:

- D. Pedro! D. Pedro! D. Pedro!

- Paulo! meu Paulo! - gemia a pobre louca na sua agonia.

O Satanás foi ajoelhar-se aos pés do leito. Oh! era demais! era demais! o outro vencia, aclamado e forte, enquanto ela, a sua filha, morria!

- D. Pedro! D. Pedro! - gritava o povo mais perto.

- Paulo! meu Paulo! - ouviu-se a voz de Branca, ainda uma vez.

A voz saía-lhe agora difícil e fraca, soluçante, como um gemido, da boca que a hemoptise pintava a carmim, e que na alvura polar da sua face parecia a poética e misteriosa flor das neves da Lapônia.

- D. Pedro! D. Pedro!

Todo o corpo da moribunda estremeceu, inteiriçaram-se-lhe os braços, vidraram-se-lhe os olhos. Um último suspiro lhe saiu da boca:

- Paulo! - e ficou imóvel.

O Satanás atirou-se de bruços, com um grande grito de desespero. E o povo passava justamente sob as janelas do atelier: e a aclamação troou, violenta e vitoriosa, invadindo a sala:

- D. Pedro! D. Pedro! D. Pedro!

O temperamento do Satanás reagiu logo contra a sua grande dor sagrada.

Morta... Que lhe restava fazer? renunciar a luta, fugir para longe, para muito longe da terra maldita onde sofrera tanto, e ir preparar nas trevas do seu exílio voluntário, a obra sinistra da vingança, fazê-la amadurecer longamente, até que soasse a hora oportuna para fazê-la rebentar aos pés do príncipe... Mas não quis partir sem levar a filha consigo. Não a levaria viva, mas modelada na pedra dura, que, nas suas alucinações ele procuraria aquecer e animar, a custa de beijos e de abraços.

E atirou-se desesperadamente ao trabalho. Todo o seu talento, estragado e consumido pelo ócio e pelas orgias, voltou como por encanto, ao apelo da dor suprema que lhe vergastava a alma. Ao toque dos seus dedos, o gesso dócil se submetia, obedecendo-lhe aos caprichos da inspiração.

Toda a noite e toda a manhã seguinte, o escultor trabalhou sem descanso. O atelier, abandonado e poeirento, encheu-se de alegria e de vida. O sopro do trabalho animava tudo aquilo; e quando, de madrugada, o sol entrou vitoriosamente pelas janelas, vindo encontrar o artista embebido na sua obra piedosa, as estátuas pareciam sorrir...

Pouco a pouco, da massa informe do gesso, Branca saia, ressuscitada pelo amor do artista. Cercaram-lhe a fronte as ondas do cabelo, rasgaram-se-lhe os olhos, arqueou-se-lhe a boca dum sorriso inocente, empinou-se-lhe o colo virginal.

E ela aparecia assim aos olhos do escultor e ao coração do pai, tão pura e tão bela, como naqueles tempos felizes em que o alcoviteiro do príncipe ia purificar-se, ao seu lado, no pequeno santuário da rua do Conde...

Quando a estátua ficou pronta, o estatuário ajoelhou-se. Duas lágrimas rolaram pelas suas faces: e ele rezou, talvez pela primeira vez na vida.

Mas, acabada a oração, o Satanás transfigurou-se: era outra vez o mesmo espírito forte, o mesmo ousado e diabólico espírito da vingança e do ódio.

Levantou-se, olhou para o mar que se estendia infinito e calmo, ergueu o braço num juramento solene de nunca esquecer e nunca perdoar...

No outro dia, o Satanás fazia-se de vela, a bordo de um navio negreiro, para longe das terras do Brasil; e Branca ficava sob a lápide fria de uma sepultura do cemitério do Carmo, transformando a sua carne moça na seiva que mais tarde rebentaria em rosas na terra que ela purificara com a sua rápida passagem.