O Gaúcho/I/II

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II.

0 VIAJANTE.


Corria o anno de 1832.

Na manhã de 29 de setembro um cavalleiro corria a toda brida pela verde campanha que se estende ao longo da margem esquerda do Jaguarão.

Deixára o pouso pela alvorada e seguia em direcção ao nascente. Para abreviar a jornada, se desviára da estrada, e tomara por meio dos campos, como quem tinha perfeito conhecimento do logar.

Não o detinham os obstáculos que porventura encontrava em sua rota batida, mas não trilhada. Vallados, seu cavallo murzello os franqueava de um salto, sem hesitar; sangas e arroios atravessava-os a nado, quando não faziam vào.

Era o cavalleiro moço de 22 annos quando muito, alto, de talhe delgado, mas robusto. Tinha a face tostada pelo sói e sombreada por um buço negro e já espesso. Cobria-lhe a fronte larga um chapéo desabado de baeta preta. O rosto comprido, o nariz adunco, os olhos vivos e scintillantes davam à sua phisionomia a expressão brusca e alerta das aves de altaneria. Essa alma devia ter o arrojo e a velocidade do vôo do gavião.

Pelo trajo se reconhecia o gaúcho. O ponche de panno azul forrado de pellucia escarlate cahia-lhe dos hombros. A aba revirada sobre a espadua direita mostrava a cinta onde se cruzavam a longa faca de ponta e o amolador em fórma de lima.

Era côr de laranja o cheripá de lã enrolado nos quadris, em volta das bragas escuras que desciam pouco além do joelho. Trazia botas inteiriças de potrilho, rugadas sobre o peito do pé e ornadas com as grossas chilenas de prata.

O murzello, cavallo grande e fogoso, não tinha bonita estampa. Vinha arreiado á gaúcha; as rédeas e o fiador mostravam guarnições de prata; eram do mesmo metal os bocaes dos estribos á picaria e o cabo do rebenque de guasca, preso ao punho da mão direita.

Na anca do animal enrolava-se o laço abotoado á cinxa: e do lado opposto os fieis das bolas retousadas de couro, que descansavão no lombilho de um e outro lado. Pela perna esquerda do cavalleiro descia a ponta da lança gaúcha, cuja haste presa á carona apoiava-se de revez no flanco do animal.

Quem não conhecesse os costumes da província do Rio Grande do Sul, supporia que esse cavalleiro ia naquella desfilada correr alguma rez no campo; ou fazer uma excursão á qualquer charqueada próxima. Mas as pessoas vaqueanas reconheceriam á primeira vista um viajante á escoteira.

Com effeito ao lado do gaúcho gallopavam relinchando três cavallos, qual delles mais lindo e garboso; porém nenhum tão valente e brioso como o murzello, que os distanciava a todos, apezar de montado; e não era animal que precisasse de ser advertido pelo roçar das chilenas.

Estava fresca a manhã. Em setembro ainda reina o inverno na campanha; e nesse dia soprava o minuano, vento glacial, que desce dos Andes. Apezar do sól que dardejava em um céo límpido e azul, o frio cortava.

Depois de algum tempo de marcha, avistou o gaúcho no meio do campo o rancho de um posteiro, que assim chamam nas estâncias os vaqueiros incumbidos de guardar o gado solto. Encontram-se destas choupanas de distancia em distancia pela extensão dos grandes pastos.

O viajante botou o animal para o rancho.

Pela porta aberta via-se no interior um homem deitado no chão sobre um pelêgo, e um fogo a arder no fundo.

— Olá, amigo, Deus o salve!

— Para o servir; respondeu o posteiro virando-se de bruços e levantando a cabeça.

— Sabe-me dizer si o coronel estará em Jaguarão?

— Homem, deve estar.

— Então não sabe com certeza?

— Até antes de hontem lá estava. Mas de um momento para outro pôde ser preciso em outra parte. Ainda mais agora que os castelhanos ahi andam na fronteira, fazendo das suas.

Abrindo oponche, o gaúcho, tirara da guaiaca, espécie de bolsa de couro atada á cinta, um cigarro de palha e o preparava com a dextreza de fumista consummado.

— Bem; antes da noite saberei; disse tirando lume do fuzil.

Entretanto o pião, erguendo-se do pelego, se aproximara da porta e olhava com attenção para o viajante.

— A modo que estou conhecendo ao senhor? acodiu elle.

— Póde ser, chamo-me Manoel Canho, para o servir.

— Outro tanto; Francisco da Graça, mas todos me conhecem por Chico Baeta, um seu creado. Seu nome não me é extranho. Manoel Canho.... De Ponche-Verde?

— Isso mesmo.

— Bem dizia eu. Agora me alembro; foi em umas corridas no Alegrete, ha cousa assim como dois annos a esta parte. O senhor não esteve lá?

— Fui um dos que corri.

— Bem sei; e ganhou aos vencedores. Pois é isso, que eu tinha cá na idéa. E querem vêr?

Proferindo estas palavras, o Chico Baeta afastou-se do murzello para melhor examinal-o.

— Não ha duvida. Foi este o moço?

— É verdade!

— Eh pingo! exclamou o peão, dando com enthusiasmo uma palmada na anca do animal.

Só comprehenderá a energia da exclamação do Chico Baeta quem souber que pingo é o epitheto mais terno que o gaúcho dá a seu cavallo. Quando elle diz « meu pingo » é como se dissesse meu amigo do coração, meu amigo leal e generoso.

— Que faisca, Sr. Manoel Canho. Emquanto os outros ginetes, e os havia de fama, levantavão a poama na quadra, cá a murzellinho fez traz, zaz, zaz e fuzilou na raia como um corisco.

Canho estava gostando de ouvir o elogio feito a seu animal; o cavallo é uma das fibras mais sensíveis do coração do gaúcho. Mas alguma cousa instigava o viajante, que fazendo um esforço interrompeu o pião.

— Então se me dá licença, vou-me andando. Careço de estar hoje na villa sem falta.

— O churrasco está na braza, se é servido?...

— Obrigado; ficará para outra vez. Antes do descanso ainda tenho que fazer umas cinco léguas.

— Pois, amigo, até mais vêr.

— Com o favor de Deus.

— Olhe; se vir lá pela villa a Missé dê-lhe memórias; diga-lhe que em havendo uma folga, lá me tem para bailarmos o tatu.

— Farei presente; respondeu rindo o Canho que já ia longe á desfillada.

Naquelle andar fez o viajante a porção de jornada que tencionava, e approximou-se do arroio da Candiota, um dos afluentes do Jaguarão, que atravessa a campanha de norte a sul, na distancia de algumas legoas da cidade.

Medindo a altura do sól conheceu que era perto de meio-dia; já a sariema afinava a garganta para soltar o canto.

Parando á sombra de uma arvore na beira do rio, o gaúcho saltou no chão, e sacou em um momento os arreios do animal. Emquanto o murzello se espojava na gramma para desinteiriçar os músculos entorpecidos pelo arrocho da cinxa, o viajante batia o fuzil, e tirava fogo para acender um molho de galhos secos.

A sella é ao mesmo tempo a bagagem do gaúcho; esse viajante do deserto, como o sábio da antigüidade, pôde bem dizer que leva comsigo quanto possue.

A xerga lhe serve de cama; a sella forrada com o lombilho, de travesseiro. Nas caronas traz a maleta com a roupa de muda; na guaiaca patacões ou onças que constituem todo seu pecúlio. Entre a xerga e a manta, estendem um pedaço de carne que o calor do animal cozinha durante a jornada.

Manoel fez com presteza seus arranjos para a sésta; e deixando a carne a tostar sobre o fogo, approximou-se do rio para lavar as mãos e o rosto. A janta foi expedita. Uma grande naca de carne com alguns punhados de farinha; e água bebida no bocal doestribo,queo rapaz teve o cuidado de lavar para dar-lhe a serventia de copo.

Atirou-se então sobre a cama forrada com o pellêgo, e fumou dois cigarros de palha emquanto descansava.

— Hoje em Jaguarão; e daqui á oito dias, Deus sabe aonde! Talvez comtigo pae, lá em cima; murmurou o gaúcho engolphando os olhos no límpido azul do céo.

Meia hora não tinha decorrido, que o gaúcho levantou-se de um salto, e tirou do céo da bocca o som com que a gente do campo costuma afallar aos animaes. A tropilha que pastava ali perto, conduzida pelo murzello, aproximou-se gambeteando.

— Cá, Ruão!

Arreiado o animal, pulou o gaúcho na sella e atravessando o rio, partiu a galope.

Seriam cinco horas e meia, quando no azul diaphano do horizonte se desenhou illuminada pelo arrebol da tarde a torre da igreja do Espirito Santo, que servia de matriz á villa de Jaguarão.

Receioso talvez de que o ultimo raio do sól se apagasse, deixando-o ainda em caminho, o gaúcho afrouxou as rédeas ao ruão, que lançouse como uma flexa.