O Gaúcho/III/IV

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Catita, sempre tão pronta para ajudar a mãe quando era preciso, agora sentada à parte sobre a relva, fitava longos olhos no gaúcho, ocupado em arrear o alazão, para se pôr a caminho quanto antes.

No olhar da rapariga brilhavam diversos sentimentos, como em um raio de luz cintilam várias cores do prisma.

Admirava-se Catita da indiferença de Manuel. Ela sabia que era bonita; e quando não fosse tanto como lhe diziam constantemente, não se julgava indigna de merecer um olhar, ao menos de curiosidade. Esse homem que tinha corrido em socorro seu, parecia nem já se lembrar que ela existia e ali estava perto dele.

Contudo não perdera a esperança de atrair a atenção do gaúcho, e por isso lhe estava deitando aqueles olhares dengosos, capazes de enfeitiçar um morto. Lá tinha um certo pressentimento que o rapaz, voltando-se para ela, não partiria assim com aquele desapego.

Mas não era só a faceirice que tinha a rapariga enlevada na contemplação do gaúcho. Essa fisionomia sombria, mas enérgica, a impressionara. Ela adivinhava, sob aquela aparência concentrada e fria, o fogo intenso da paixão, sopitado, como a chama do betume que lastra por baixo d’água.

Ao mesmo tempo esse perfil saliente, de traços acentuados, acordava no fundo de sua memória vagas e indecisas reminiscências, que deviam estar ali desde muito tempo adormecidas. Não sabia a moça se já tinha visto este semblante, ou algum com ele parecido.

Um momento, a vista do gaúcho encontrou o olhar fito da rapariga, e desviou-se com desgosto, como se a tivesse ferido alguma luz muito viva.

Nesse movimento descobriu imóvel, em frente dele, Lucas Fernandes que traçou rapidamente com a mão direita um sinal cabalístico. Manuel sem mostrar surpresa nem dar grande importância ao acidente, reproduziu o sinal.

Aproximou-se então o miliciano com vivacidade, e travando da mão ao gaúcho, deu-lhe o toque simbólico, soprando ao ouvido uma palavra misteriosa.

Com esse reconhecimento, que revelava a existência de um vínculo secreto entre ambos, o Lucas Fernandes pouco adiantou na confiança de Manuel, que se manteve na mesma reserva.

Embora dedicado e com entusiasmo ao serviço de uma causa, nem por isso a pouca estima que a raça humana inspirava em geral ao gaúcho, se tinha amortecido. Ao contrário, mais em contato com ela, sua alma sentia-se por assim dizer esfrolada ao atrito das paixões torpes e ignóbeis que truaneavam diante dele.

Para Manuel a causa a que se dedicara era um homem, e nada mais. A afeição que recusava à sua espécie se concentrara ultimamente em um indivíduo. Bento Gonçalves se tornara para ele um símbolo, uma veneração. Tinha pelo velho guerreiro admiração profunda; e enchia-o de orgulho a idéia de estar ligado a ele por um laço espiritual.

Não sabia Manuel o que intentava o coronel; e nunca se preocupara com isso. Para quê? Sua missão era acompanhar, servir, defender o seu homem, e morrer quando fosse preciso para salvá-lo ou para vingá-lo. por isso, apenas Bento Gonçalves fora demitido do comando da fronteira de Jaguarão e do 4º corpo de cavalaria, o gaúcho, pressentindo que ele tinha necessidade nesse momento de rodear-se de seus amigos mais leais, partiu logo para Camacã, onde se retirara o coronel.

Bem se vê que importância ligava o Canho à sociedade secreta em que o tinham filiado. No seu modo de ver não passava de um meio de se enganarem os homens uns aos outros. Para servir o coronel ele não queria nem companheiro, nem ajudante: gostava mais de fazer as coisas só.

Como a refeição estivesse pronta, Maria dos Prazeres chamou o marido; e Félix aproximou-se impedindo as perguntas que Lucas ia dirigir ao Canho.

— Vamos ao churrasco? disse o miliciano.

— Nada; já estou pronto, e não tenho tempo a perder.

— Precisamos falar, retorquiu o furriel com intenção.

— Será para outra vez.

Fazendo um cumprimento de través, montou o gaúcho o alazão, que escarvava a terra para devorá-la. Nesse momento, da tropilha que esperava a curta distância, avançou o Morzelo, que veio meneando a cauda farejar o furriel.

De mau humor pela reserva e partida do Canho, o miliciano não reparou no cavalo; mas este começou a dar sinais manifestos de súbita alegria, soltando um ornejo que bem parecia um riso de prazer. Esta circunstância impressionou logo a Manuel; ele sabia que seus cavalos tinham o mesmo gênio arisco e desconfiado do dono; pelo que pareceu-lhe estranha aquela repentina afabilidade do Morzelo.

— O senhor conheceu meu pai? perguntou de chofre o gaúcho a Lucas.

— Seu pai?... repetiu o miliciano.

Os dois olharam-se; só então se tinham lembrado, que nenhum sabia o nome do outro, apesar de estarem juntos e conversando havia meia hora.

— João Canho, de Ponche-Verde!

— Era seu pai? Ora, se o conheci, meu amigo velho de outros tempos, quando no continente havia homens, que hoje parecem mais bonecos de cheiro que outra coisa, sobretudo os tais lá de Porto Alegre. João Canho? Sabe de que idade nos conhecemos?... Espere!... 1798... eu tinha 12 anos e ele 14. Andamos juntos na escola em Rio Pardo.

— Mas então o senhor é o furriel?

— Isso mesmo. Depois, ele seguiu lá seu rumo até que nos encontramos no tempo de Artigas. Os dois Bentos, bem sabe, andavam sempre juntos; eu servia às ordens de um, ele era camarada do outro.

— Estivaram em Taquarembó?

— Em Taquarembó, em São Borja, em Catalã, onde filamos o Verdum. Naquele tempo não se fazia tantas partes, como hoje, para brigar. A gente passava o trabuco a tiracolo, encilhava o pingo, e era só farejar para sentir onde cheirava o chumasco. Agora para se fazer uma rusgazinha de nada, são tantas as histórias que já aborrecem.

— Mas cá o Morzelo, ele também o conhecia, que está aí a fazer-lhe tantas festas?

— Ah! é verdade! exclamou o furriel atentando para o animal. Não tinha reparado; é o cavalo do Canho? Pois não me havia de conhecer! Fui eu que o salvei, e deu-me que fazer! Uma doença dos diabos.

— Lembro-me. Quando o pai foi a Montevidéu? Por sinal que ele voltou no cavalo do senhor.

— Se o Morzelo não podia nem se mexer. Então você conheceu o Lucas, hein, meu velho? disse o furriel amimando o pescoço do cavalo.

Manuel era outro. Uma expressão de alegria expansiva se tinha derramado por seu rosto, antes carrancudo. Sem sentir, apeara-se para melhor prestar atenção às palavras do furriel, e se embebera completamente nas reminiscências que lhe falavam de seu pai.

— Então não quer mesmo? perguntou o miliciano, designando com um gesto o lugar onde estava a mulher convidando-o para comer.

— Jante o senhor, que eu espero.

Sentaram-se os cinco viajantes na grama, ao redor de alguns pratos com churrasco, bolachas, bananas e laranjas.

O Lucas tanto comia, como falava; e Manuel escutava com prazer a evocação de fatos que ele tantas vezes, em criança, ouvira dos lábios paternos.

De quando em quando porém, sentia o gaúcho um constrangimento, encontrando os olhos negros de Catita fitos em seu rosto com uma insistência que ele não compreendia. Esse olhar curioso e ao mesmo tempo provocador, fazia-lhe o efeito de uma farpa no flanco de um touro.

— Come, Catita. Estás aí pasmada!

— Não é para menos, acudiu Félix. O susto que ela teve! Escapou de pinchar-se do barranco abaixo.

— Maria Santíssima! exclamou Vidoca.

— Lá isso, não, atalhou o Canho; na sanga não caía.

— Se já estava quase na beira!

— Mas eu tinha meu laço.

Os outros riram. Catita indignou-se:

— Então o senhor queria laçar-me?

— Pois que dúvida!...

— Se fosse capaz, eu...

A rapariga articulava estas palavras pálida e com um tom de ameaça, mas não pôde concluir; a voz finara-se no lábio balbuciante. Ergueu-se despeitada, vendo o ar desdenhoso com que Manuel pela primeira vez a encarava.