O Gaúcho/III/IX
Os dias seguintes foram chuvosos. O manto espesso da cerração, desdobrando-se pelos cerros e coxilhas, tornava a campanha triste e soturna.
Cerca de doze léguas de Piratinim, para as bandas do Erval, no rancho de uma estância, perdido no meio do campo, estavam reunidos seis peões que parolavam, comendo um grande churrasco; fora, os cavalos arreados e presos à soga sem freios, pastavam na grama.
— Então você acha, Félix, que o Neto ainda está em Piratinim?
— Pois que dúvida!
— E que gente terá?
—Uns duzentos, mas olhe que é boa gauchada.
— Eu não lhe dou nem metade; e não passam de farroupilhas.
— Talvez que amanhã os vejamos de perto, disse Félix a rir. Tomara eu!
Neste ponto os animais deram aviso. Um dos peões saiu fora do rancho para correr os olhos pelo campo; mas nada avistou que lhe despertasse a atenção. Entretanto os cavalos continuavam a indicar, por seu ar espantadiço, a aproximação de alguém. Com as orelhas espetadas, perscrutavam eles uma restinga de mato que ficava a alguma distância.
Suspeitoso o peão saltou na sela e botou-se para o lugar. Pareceu-lhe ver um vulto perpassar entre a folhagem, e não se enganava: de feito um cavaleiro ali estava desde algum tempo agachado entre as árvores, à espreita do que passava pelo campo. Conhecendo pelos movimentos do peão, que fora, senão percebido, ao menos suspeitado, tratou de evitar o encontro que parecia infalível, pois a língua de mato, além de estreita, era um raleiro, que de perto facilmente se devassava com a vista.
Um selvagem naquelas circunstâncias subiria ao cimo das árvores, para ocultar-se no mais basto da folhagem; mas nada separa um gaúcho de seu cavalo no momento do perigo: seria o mesmo que deceparem as pernas do centauro, e o reduzirem a um tronco mutilado.
Ganhando a orla oposto da mata, o desconhecido fez deitar-se numa biboca funda e cheia de capim a tropilha que trouxera; e cobriu tudo isso com algumas braçadas de folhas secas. Então estendeu-se pelo flanco do Morzelo de modo que era impossível descobri-lo do lado oposto. Um dos pés apoiava na orelha esquerda do cavalo, o outro o animal o segurava nos dentes como a cana do freio; finalmente, com a mão escondida no cabelo da cauda, o desconhecido parecia colado ao corpo do quadrúpede.
Quando o peão chegava à restinga viu à esguelha um cavalo estropiado, que se afastava pelo campo manquejando. Bateu o mato e nada descobriu de suspeito; retirou-se portanto convencido que o vulto não era outro senão o do Morzelo arrebentado por alguma viagem.
Entretanto o animal, sempre manquejando, ganhou uma canhada, que não se podia ver do rancho, e escondeu-se numa touça de sarandis. Aí o cavaleiro descansando da posição incômoda, mas sempre alerta, permaneceu até cair a noite.
Manuel, pois era ele, separando-se bruscamente de Catita, na noite de sua chegada a Piratinim, ouviu da biboca onde saltara, a conversa da moça com a Missé; e depois a seguiu de longe até que viu ambas se recolherem à casa da Fortunata. A filha do Lucas tremia com a idéia de deixar só a amiga e por isso a obrigou a ficar em sua companhia.
O Canho recolheu-se também; mas não pôde dormir. Toda a noite via debuxar-se diante dele o quadro vivo daquela tempestade sinistra. Rasgavam-se os relâmpagos; e do seio da luz celeste desprendiam-se duas centelhas que lhe traspassavam a alma e embebiam nela uma lava satânica. Eram os olhos de Catita.
Pela manhã dirigiu-se o gaúcho à casa de Neto, onde encontrou D. Juan Lavalleja, Verdum, Onofre, Crescêncio e outros republicanos orientais e rio-grandenses. O caudilho o incumbiu da comissão perigosa de reconhecer a posição e importância exata da força de Silva Tavares, comandante do Erval, bem como de espreitar seus movimentos.
Partiu o Canho como bombeiro. Assim chamam na campanha as vedetas destacadas que precedem os corpos militares, explorando o campo, e dando aviso da aproximação de qualquer partida suspeita. A etimologia dessa palavra, desconhecida na língua com semelhante significação, nenhum sábio por certo a aventará. No estilo pitoresco do gaúcho, o bombeiro é o peão que surge de repente, para não dizer que estoura como uma bomba, do meio da macega, e desaparece logo.
Nesse mesmo dia, soube Manuel na estrada do Erval que a força de Silva Tavares estava arranchada em uma estância à margem do Orqueta, nas vizinhanças do Serrito. Com efeito, seguindo as indicações e guiado por sua perspicácia, verificou o gaúcho pela madrugada a exatidão da notícia. Restava porém saber quantos homens tinha o chefe legalista, e ver por seus olhos que gente era, para levar a Neto uma informação segura.
Aproximou-se da casa o mais que era possível sem denunciar-se; mas conheceu que perderia o tempo inutilmente, pois Silva Tavares, cuja finura e astúcia tinham fama na campanha, espalhara também seus bombeiros em todas as direções para prevenir um assalto.
Manuel conseguira iludir a vigilância de alguns dos bombeiros, empregando para esse fim todos os ardis imagináveis; mas corria o risco de ser descoberto a cada instante sem ter colhido os indícios necessários.
Logo que fechou a noite, ele voltou à restinga, e montado na Morena, aproximou-se sutilmente do rancho, onde conversavam os peões.
Mas então por que foi mesmo que você deixou as farroupilhas, Félix?
Ora, foi o diabo de uma rapariga, que depois de se divertir comigo, há mais de dois anos, começou a requebrar-se com um sujeito que apareceu de repente.
É costume delas!
Não admito; eu cá defendo as muchachas.
Pois defenda, que há de achar uma para lhe dizer na bochecha, como me disse a mim a Catita, que se eu matasse o namorado, primeiro matava a ela!
Que tal a pequena?
E como se chama o cujo?
Diz ele que é Manuel Canho; mas eu penso que é Manuel Cão; e senão vocês hão de ver como lhe deito a coleira vermelha; assim lhe ponha eu os luzios uma vez!
Então você escamou-se com medo.
Medo!
Não digo do sujeito, mas da rapariga.
O sujeito, desafiei-o; não quis brigar por nada. Então passei para os legalistas; quero ver se ele agora tem desculpa.
Nada mais importante ouviu o gaúcho nem sobre sua pessoa, nem a respeito da força e plano de Silva Tavares. Resolveu portanto apresentar-se francamente na estância, como um viajante em trânsito.
Pela madrugada tirou os arreios do lugar onde os tinha escondido, e selou o Juca. Eram sete horas da manhã quando surgiu de repente no terreiro, sem que soubessem como ali aparecera.
Sua chegada, sem aviso prévio dos bomb eiros, excitou logo as suspeitas de um homem baixo e gordo que se via pela janela de um quarto a embalar-se na rede. Erguendo-se com uma vivacidade e presteza admiráveis para sua corpulência, saltou na varanda, mas com o disfarce de chamar um peão. O rico pala indicava ser homem de posição. Manuel reconheceu o comandante, porém não pestanejou:
Que temos? disse o tenente-coronel, como se casualmente e só então visse o recém-chegado.
Nada; quero descansar, respondeu o gaúcho com a maior serenidade.
Donde vem o amigo?
Da capital.
Ah! Vem de Porto Alegre! Então viu a rusga. Conte-nos lá como foi isto.
Não tem que contar. Chegou o Bento com uns vinte farroupilhas de poncho amarelo; fez uma careta, e tudo começou a tremer.
E o amigo?
Eu, vou me chegando para casa.
Aonde?
Em Ponche-Verde.
Ah!... Mas você é um rapaz sacudido, e nós carecemos de gente.
Lá isso não! Também os outros precisam, e eu vim-me andando.
Manuel tinha-se apeado; mas conservava-se perto do Juca, pronto ao primeiro sinal.
Diga-me, passou por Piratinim?
Ontem por estas horas.
Que gente tem o Neto?
Há de andar por cinqüenta.
Está bom; vá descansar. Olá,. Camaradas! acomodem aqui o amigo, gritou o oficial para um grupo de soldados e paisanos que se aproximava.
Ao ouvido perspicaz de Manuel aquele acomodem soou com timbre especial que o pôs alerta; e tinha razão, porque a gente espalhando-se pelo terreiro deitava-lhe cerco para evitar que escapasse. Nisto uma voz exclamou:
Agarrem que é o camarada de Bento Gonçalves.
Mas já o Canho estava na sela, e o impetuoso alazão arrancando, de um salto salvou o cerco, e disparou pelo campo fora. Dez ou doze balas acompanharam de perto o gaúcho, que as ouviu sibilar bem perto da cabeça. Então o intrépido rapaz voltou-se para cortejar de longe, agitando o chapéu no ar:
Já sei o que desejava, senhores, até mais ver.
Os bombeiros do rancho, ouvindo os tiros, saltaram na sela e puseram-se no encalço do fugitivo, que ao passar fronteiro à restinga soltou um grito vibrante:
Helô!...
Imediatamente a tropilha rompeu do mato e seguiu o cavaleiro que afastava-se com espantosa rapidez. O alazão não corria, voava, e com pouco desapareceu por detrás de uma coxilha.
Contrariado por ver escapar-lhe o inimigo, um dos peões, o que montava melhor animal, arremessou as bolas contra o resto da tropilha que ficara atrás não por serem maus corredores, mas por não poderem acompanhar a velocidade inaudita do alazão e da baia. Um dos animais caiu com os pés tolhidos pelas correias; mas, fazendo um esforço, conseguiu erguer-se. Passava nesse momento de corrida o Félix, que o lanceou nos ilhais, arremessando-o outra vez no chão.
Entretanto o fugitivo, depois de algumas horas vendo-se fora do inimigo, moderou a desfilada em que ia para dar fôlego aos animais.
Então, Morena, a coisa esteve quente? disse o cavaleiro sorrindo e passando a mão pelas clinas da baia, no momento em que ela emparelhava com o alazão. E o nosso Juca brilhou, hein? Foi a primeira vez que sentiu o cheiro da pólvora. Nós cá já conhecíamos o zunir das balas: é como um besouro!
Nisto Manuel vendo chegar o resto da tropilha e dando por falta do Morzelo, sentiu um aperto de coração. Sua vista ansiosa interrogou o Ruão, que soltou um rincho melancólico.