O Garatuja/IX
Que era feito do painel?
Ivo teve ímpetos de pedir à madrinha novas dele; mas arrependeu-se. Entretanto ninguém lhas podia dar tão cabais; pois fora ela com sua mão quem o tirara do cavalete, onde o deixara o rapaz, enquanto corria à tenda à cata do ingrediente para a iluminação.
Esta ligeireza da Rosalina carece de explicação.
De muito ruminava a antiga noiva do alferes nos modos de arranjar uma entrada com a Sra. Romana Mência, geralmente conhecida entre os garotos da cidade pelo expressivo apelido de matrona, que lhe valera sua muita severidade com as fraquezas do próximo.
Ora, a crônica dos amores da Rosalina e o episódio do enjeitado, apesar dos vinte anos decorridos, ainda estavam bem vivos na memória da matrona; e tanto bastou para que se baldassem todas as investidas da mãe do Ivo.
Mas não desacoroçoou a Rosalina; e cada vez mais se ocupou do modo de insinuar-se na casa da Romana. Carecia disso, não só para satisfação de seu amor-próprio ofendido, como para ajeitar a proteção de tão boa madrinha em favor do seu Ivo.
A Sra. Romana Mência era sogra do tabelião, e este bem podia admitir no seu cartório o rapaz, encarreirando-o em sua profissão, das melhores naquela época; pois era nos cartórios e nos conventos que se formavam então os homens para o manejo dos negócios da república; da mesma forma que hoje se fazem os estadistas nas tricas das secretarias, e nas alicantinas e rabulices do foro.
Na ocasião em que Ivo, fechando a porta da câmara, espirrou pelo corredor como um foguete à busca da tenda, a mãe que o viu tão pressuroso quanto refolhado, teve uns assomos de saber o que estava fazendo o rapaz. Empurrou a porta e achou-a fechada. Mais se lhe acendeu a curiosidade; rodeando pelo quintal bispou da janela o painel, que estava bem à mostra no meio do aposento.
Ai!... exclamou alvoroçada. Que Menino Jesus tão lindo, Senhor Deus!... De repente entrou-a um pensamento, que a pôs em faísca. Lembrara-lhe que a Romana Mência era uma devota, como não havia outra, perdida por tudo quanto era santo e cousa de beatice.
Recobrando a sua agilidade, do tempo do alferes, quando tantas vezes saltara essa mesma janela para ir-lhe ao encontro na cerca, por trás da atafona, a Rosalina com algum esforço conseguiu apoderar-se do painel, e cosendo-se com ele dentro da mantilha acatassolada, deitou-se de um fôlego para a casa da matrona.
Esta não se achava só, mas concertando com a nora e mais a Engrácia, uma das vizinhas, a novena daquela noite. Vendo entrar pela casa, e sem licença, a Rosalina, as duas se admiraram; mas a velha inquizilou-se ao sério.
Quem a chamou cá, mulher?
— Com perdão de Vossa Mercê, Sra. Romana, pela confiança de entrar assim na casa alheia, sem pedir licença; mas como é para bem!...
— Isso é que está por ver, que seja para bem, redargüiu a voz fanhosa da velha.
— Ai! era preciso que não fosse devota do Menino Jesus!
— A que vem isso agora?
— É ou não é?
— Se doutro modo não se vai e me deixa descansada, digo-lhe, senhora abelhuda, que sou e torno a ser. Agora musque-se!
— Pois então, exclamou a Rosalina, desenrolando a mantilha com ar de triunfo, recreie esses olhos em sua benta imagem.
Com um gesto patético apresentou o painel.
A Miquelina e a Engrácia caíram logo em êxtase diante da pintura; mas a velha desconfiada e prevenida levou algum tempo a firmar a vista, e compenetrar-se bem do que olhava. Então não se pôde conter e, pondo as mãos, entrou por sua vez em adoração.
Passado aquele primeiro enlevo contemplativo, cobraram as três a fala, e com a Rosalina fizeram um perfeito quarteto de tagarelice.
— Onde achou este retábulo, mulher? perguntou Romana.
— Foi o Ivo, o meu enjeitadinho que pintou! respondeu a Rosalina cheia de si
— Que me diz? Pois ele é capaz!
— Oh! tem uma habilidade, que é cousa por maior; o Belmiro não pode com ele.
— Há de trazêlo cá. Em o vendo, logo conheço se é verdade.
— A senhora pode experimentar.
— Deixe estar que ninguém me logra.
A esse tempo travara-se entre a Miquelina e a Engrácia renhida disputa a respeito do painel.
— Mas, senhora, dizia a Miquelina, está-me catucando cá dentro que este não é o Menino Jesus!
— Quem há de ser então? O Arcanjo São Miguel?
— Também não. Quem diz que este painel é de devoção? A mim está-me parecendo pintura de pouca vergonha!
— Jesus! Que blasfêmia! Pois não está vendo as asas de querubim?
— Mas este coração aqui, assim todo crivado, como almofada de renda? Aqui há tafularia, senhora.
— O coração... Mas é para significar as tribulações que a gente passa antes de ganhar o céu. Estes são os espinhos...
— Espinhos não, são setas, e bem setas.
— Vem dar na mesma.
— Eu cá, não sei o que tenho; mas era capaz de jurar que isto não passa de bruxaria.
— Qual, senhora! Pois eu não vi o Ivo quando estava copiando do próprio que tem nos seus divinos braços a Virgem Santíssima dos Carmelitas?
A Rosalina tivera essa idéia, quando pela primeira vez deu com o painel. não podendo compreender que o filho tirasse da fantasia, sem auxílio de cópia, o lindo vulto do Menino Jesus. Não duvidou pois dar como visto, o que fora apenas imaginado.
— Que é pintura de devoção logo se vê, observou a velha Romana. Se não fosse, não punha o menino assim nuzinho, sem malícia nenhuma, o inocente! Nessas pinturas desavergonhadas, não vêem como eles escondem as patifarias, que nem parecem?
Esta razão era sem réplica; à vista dela ficou assentado que o painel representava o Menino Jesus; e a Sra. Romana o colocou sobre uma toalha no trumó, mandando logo recado ao seu capelão e confessor, um frade capucho, para vir benzê-lo.
Foi aí que o viu o Ivo, ao entrar em casa da Romana, na alheta da Rosalina, que o puxava pela aba do gibão com receio de que lhe escapasse.
E não era sem razão; pois o rapaz, ao transpor a soleira, estava como que cheio de espavento, e quisera achar-se a léguas daí.