O Garatuja/XIV
Ninguém mais do que o ilustríssimo Senado desejava a transferência da Sé, que em grande parte promovera, retirando da Igreja de São Sebastião os assentos dos camaristas. Se não a levara avante, fora pelo receio de desagradar a El-Rei, obrando em negócio que excedia a sua alçada. Agora, porém, o caso mudava de figura; e cumpria-lhe zelar na manutenção de seus privilégios, menoscabados pelo prelado.
Preparados de antemão os bandos de sequazes, que usurpam o nome do povo, convocou-se sessão extraordinária para assentar no que mais convinha; e aí, em presença do governador, ouvidor-geral, provedor e oficiais da Câmara, levantou-se Francisco Pires Chaves, procurador do Conselho, para representar contra a mudança que à sua notícia chegara. E depois de bem exposto o caso, concluiu por este teor:
— 'Basta que São Sebastião é o divino Padroeiro, por cuja proteção se tomou a cidade, obrando nessa empresa façanhas e milagres, que os antigos experimentaram sensivelmente por sinais visíveis, e os presentes veneram por tradição viva na memória do povo. Essa eficaz proteção ainda agora a logramos, assim nas matérias de guerra, ficando esta cidade somente livre dos inimigos que invadiram todas as praças do Brasil; como também no tocante à saúde, livrando-nos de peste e contágio, como cada um por si tem testemunhado.
"E porque, mudada a fábrica da Igreja do Santo Padroeiro para outra de orago diverso, como se intenta fazer, altamente perde-se a primeira instituição paroquial, e o primeiro ser e nascimento da igreja fluminense; acrescendo o receio em que ficariam os moradores de que, diminuída a devoção que sempre lhe tiveram, e tarada à cidade a invocação de seu nome, se dispensasse o nosso Santo Padroeiro, que sempre o foi, de acudir-nos em nossas necessidades; por isso e mais razões óbvias e naturais, requeiro em nome do povo, e na presença das suas autoridades se resolva no melhor parecer, para que o glorioso São Sebastião não perca o seu título de Padroeiro de sua igreja e paróquia, que tem desde o nascimento da cidade. E nestes termos receberei Justiça e mercê."
Ouvidos os pareceres e tomados os votos que sem discrepância adotaram as razões deduzidas pelo procurador do Conselho, assentou-se em câmara que ficasse o negócio da Matriz no mesmo estado em que até então se havia conservado, enquanto se esperava que Sua Majestade, atendendo ao que se lhe havia avisado sobre a matéria, decidisse como fosse a bem do povo; e desta determinação mandou-se dar comunicação ao prelado.
Bufou o Doutor Almada ao ler a carta que lhe enviara o Senado nesse mesmo dia 3 de agosto, e enxergou nela um atentado contra a sua jurisdição. Não viu que pelo direito do padroado, à coroa exclusivamente competia destinar o lugar do culto, e nem admira tal cegueira em um prelado do século XVII, quando do mesmo, se não pior achaque, padecem os bispos de hoje.
No dia seguinte "desembainhando as armas espirituais", como disse o Senado a El-Rei, o imperioso prelado despediu contra a ilustríssima Câmara uma bomba eclesiástica de formidável calibre. Avalie-se da força do projétil por esta intimativa: "Agora lhes digo, que se em três dias que lhes dou pelas três canônicas admoestações que começarão da entrega desta, não revogam o assento que fizeram, os hei de declarar aos que se acham assinados na sua carta por incorridos na excomunhão da bula da ceia, e do mesmo modo hei de declarar a qualquer pessoa que nesta matéria fizer qualquer impedimento direta ou indiretamente. E por esta os notifico a Vossas Mercês para dita declaração."
A essa bomba não admira que respondesse o povo anos depois com o tal canhão que embocaram à porta do prelado; e se em vez de uma, os gaiatos carregassem a peça com três balas, não fariam mais nem menos do que praticou o Doutor Almada com as três canônicas admoestações.
Hoje em dia talvez muita gente ignore o que é excomunhão. Não foi assim naqueles tempos de prisca fé, quando bastava a palavra para fazer arrepios, e com razão, que era bem má graça ficar a gente como pesteado, de quem todos fogem, e a vagar por este mundo como um refugo do inferno, à espera de que o leve o demo, ou se lhe cosa na pele.
Por isso não deve surpreender que arrefecesse um tanto o entusiasmo do Senado pela defensão do padroado real, em pró do qual aliás não duvidariam os camaristas "pôr suas cabeças", como disseram na carta de 6 de novembro a Afonso VI. Responderam ao prelado protestando que no acórdão tomado nunca fora seu intento encontrar a jurisdição eclesiástica, senão só acudir à sua obrigação, por ser a Sé igreja do padroado d'El-Rei, para que em tempo nenhum se lhe pudesse dar em culpa, e argüir de pouco zelosos no serviço do dito Senhor; pelo que esperavam que não continuasse com a censura notificada.
Interpôs o governador seus bons ofícios, e afagada a soberba do prelado com o tom submisso do Senado, condescendeu este em suspender a excomunhão intimada, até resolução de El-Rei, a quem se dirigiram as duas partes, pela frota de novembro, a primeira que partiu depois desta ocorrência.
Reza a crônica que no intuito de justificar a sua determinação de mudar a Sé, afirmava o Doutor Almada que a Igreja de São Sebastião estava em mato, sendo preciso que o vigário lhe abrisse caminho para o trânsito dos fiéis nas festas e procissões. Não faltava à verdade o reverendo; apenas omitia uma circunstância bem insignificante: que o mato era de malvas, bredos e grama.
Assim terminou o conflito entre a mitra e o Senado; ou antes, sopitou-se para rebentar pouco depois, e com maior violência, como veremos.