O Garatuja/XX

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À rua da Misericórdia, próximo do Beco do Cotovelo, onde tinha residência, estava o Ouvidor Geral, Dr. Pedro de Mustre Portugal, em sua recâmera particular, atarefado com o despacho de processos.

Era homem de boa fêvera, nédio e socado, com uma dessas gorduras maciças e rubicundas, verdadeira polpa fradesca, da que se cria ao grosso unto do refeitório, e na manga lassa do hábito.

Cá, por fora dos conventos, também a terra produz dessa fécula substancial, quando a pachorra se mete em bombachas ou cuecas, e deita a dormir a consciência. Foi naturalmente por esse modo que o Dr. Pedro de Mustre Portugal obteve a rija carnadura que lhe realçava a compostura, e dava-lhe um aspecto, senão majestoso, certamente que importante pelo volume.

Sentado no telônio, sobre o estrado, esclarecido pela frouxa luz de uma lâmpada de azeite de mamona, o primeiro ministro da Justiça de El-Rei folheava os autos e os ia aviando, não sem escaparem-lhe algumas observações, que nada tinham com as ordenações e os provarás.

— Han-han!... murmurava com certo sonsonete; cá está o Matias Cosme!... Havemos de ver agora em que param as soberbias!... Se, torna a voltar a cara para não se desbarretar quando eu passar? Tornara!...

Salpicou o magistrado esta última palavra com um riso de mofa, e guardou no fundo da gaveta os tais autos, passando a examinar o seguinte da rima que tinha à esquerda, e que a um e um transferia para a direita.

— Oh! oh! oh!... exclamou entre riso. Patrono do réu, o Duro! Há de levar a liçãozinha do costume, para não se ter em conta de grande letrado!... Cuida lá de si para si que pode ensinar aos mais, o pedante!...

Sem consultar a ordenação, nem recorrer ao sujo canhenho, travou o nosso magistrado da pena, e escreveu dum jacto Indeferido, tendo o cuidado de calcar a mão para fazer uma letra bem grossa, já que não podia em voz ainda mais grossa chimpar o despacho lacônico e peremptório na bochecha do bacharel.

Destas ingenuidades que tinha o Mustre a sós e entre si, não vão fazer mau juízo a seu respeito. Passava por um dos magistrados mais honestos, que des. de a criação dá Ouvidoria-Geral do Rio de Janeiro haviam nela servido.

Em seu tempo, e isto basta para honrar sua memória, cessou uma balela que toda a gente repetia na cidade. Corria que certos mercadores de São Sebastião metiam-se com os ouvidores logo que estes chegavam à terra, e tanto faziam que os induziam a aceitar de empréstimo alguma soma, com que os tinham a jeito para seus pleitos e os de seus aderentes.

Também diziam de outros que, rendidos aos encantos de alguma ninfa da Carioca, trocavam a venda de Têmis pela de Cupido; e lá se iam ao sabor dos afagos, as sentenças com que Vênus comprava seus atavios e galas.

Ninguém ousou jamais suspeitar o Dr. Mustre de uma peita ou suborno. Cumpria à risca a ordenação não recebendo cartas relativas a demandas; e levava este escrúpulo ao ponto de tratar as partes desabridamente, quando o procuravam.

Tinha pois a consciência de ser um magistrado integérrimo. E seguro de que não o podiam comprar; nem influir por empenho ou ameaça, no exercício de sua jurisdição, do mais não se preocupava. Assim entendia que lhe era lícito sofismar uma lei para dar quinau em um advogado; demorar um processo para vexar a parte e obrigá-la à bajulação; inclinar-se em um ponto controvertido à decisão que favorecia seus amigos; satisfazer enfim todos seus caprichos e veleidades, dando-lhes a feição de opiniões.

É esta a pior espécie dos maus juizes. Acastelados na sua honestidade, que nem sempre é inexpugnável, põem a Justiça ao serviço de suas paixões e venetas; e quando vem o clamor, não falta quem os defenda como íntegros, lançando à conta de erro, o que aliás foi astúcia.

Seriam oito horas da noite, quando bateram rijo à porta exterior da recâmera. Surpreso de que o viessem perturbar àquela hora em seu trabalho, ergueu-se o Dr. Pedro de Mustre para ver quem o procurava.

— Com licença de Vossa Mercê, senhor doutor ouvidor-geral! disse o Sebastião Ferreira arremetendo pela porta adentro.

— Servo do senhor doutor ouvidor-geral!... disse da porta o licenciado João Alves de Figueiredo já nosso conhecido.

— Pode entrar, senhor licenciado; boa-noite, Sebastião Ferreira! Que novidade há?

Ainda revolto pela cena da encapelação, o homem não esperou que voltasse o ouvidor a seu telônio, e foi desde a porta acompanhando-o com a sua queixa.

— Aqui me tem Vossa Mercê em sua presença para querelar do prelado e seus fâmulos que esta mesma tarde me perseguiram com voltas e assuadas, chegando sua malvadez a ponto de me maltratarem gravemente o corpo em diversas partes, como vossa mercê pode ver, sem o menor respeito, já não digo à minha pessoa, mas à justiça de El-Rei, nosso senhor, cuja sou oficial.

Falou neste jeito por meia hora o Sebastião Ferreira, contando os pormenores da afronta que sofrera e acabou apresentando ao Dr. Mustre sua querela em que requeria devassa na forma da Ordenação.

Adivinhou logo o ouvidor que o requerimento era obra do licenciado, e preparou-se para notar-lhe os lapsos ou descuidos, a fim de acachapar o velho advogado com a ciência que lhe dava o provimento de El-Rei; porque da que se bebe nos livros, tinha bem pouca.

Essa presunção de grave jurista ia a ponto no magistrado, que sua rubrica era Dr. Portugal, querendo assim reviver para si a fama de seu homônimo, o Dr. Domingos Antônio Portugal, desembargador da Casa da Suplicação e autor da obra Tractatus de Donationibus Regiis.

Entretanto apesar dessas fumaças, o nosso ouvidor não queimava as pestanas sobre os livros, e além das Ordenações e das Extravagantes, era milagre encontrar-se em casa dele outra qualquer letra de fôrma.

Acabando de ler o requerimento espalmou o doutor a mão sobre o papel e disse com um sorriso:

— Careço de competência, senhor licenciado!

— Com a devida vênia, a ord. do livro 2º, tít. 1º, § 27, é expressa.

— Sem dúvida, quando ao tempo em que foi cometido o malefício, não andava o querelado em hábito e tonsura.

— Verum tamen! replicou o licenciado empertigando-se na ênfase doutoral. Pondere Vossa Mercê que o foro secular tem a primazia, pois a regra é que ninguém pode escapar à manus regia. É assim que a devassa se deve abrir, e os minorenses que venham com os seus artigos na forma da Ordenação, pois a seu tempo se verá se hão de receber-se.

Bem desejava o Dr. Pedro de Mustre dar uma lição ao prelado e vigário da vara pelas contínuas picardias que praticavam, intrometendo-se a cada instante com as cousas seculares. Mas empenhado o seu amor-próprio na questão com o licenciado, esqueceu tudo e meteu os pés à parede.

— Implorando a vênia do senhor ouvidor-geral... disse o tabelião curvando-se.

— Diga!

— Penso que não haverá dúvida, pois os biltres, com perdão de vossa mercê, têm hábito sim, mas de tonsura nem sinal.

— Está bem certo?

— Assim estivesse de obter desagravo.

— Pois há de obtê-lo, que lho digo eu. Amanhã abrirei a devassa. Desque não são tonsurados!