O Garimpeiro/II
A vila do Patrocínio está em uma das mais lindas e aprazíveis situações. Ocupa o alto e os lançantes de uma colina de pendor suave, encostada de um lado ao topo de uma serra, e gozando pelos outros lados da mais risonha e extrema perspectiva de largos e formosos horizontes.
Nas vésperas da festa, a que nos reportamos(há de haver mais de vinte anos), a alegre e faceira vila estava mesmo louçã e garrida, como menina da roça, que se enfeita com alegre sofreguidão para ir à festa na povoação vizinha. As fazendas e arraialetes, num raio de dez léguas em redor, tinham ficado despovoados. As casas da pequena vila já não eram suficientes para acomodar tanta gente; os ranchos improvisados e cobertos de capim; as barracas e os carros de bois, outras barracas ambulantes, com seu toldo de couro, agrupados em desordem pelas Campinas e vargedos vizinhos, abrigavam uma multidão de famílias sertanejas, que ao sol sempre brilhante daquelas paragens, onde se desconhecem as neblinas e aguaceiros, alardeavam seus vestidos de cores vivas e variegadas, seus grossos rosários e trancelins de ouro com pesados relicários e medalhas pendentes do pescoço, derramando-se pelo seio com incrível profusão. Os rapazes montados em lindos poldros ou em possantes mulas ajaezadas de prataria, as esporeavam pelas ruas, procurando fazer admirar as excelentes qualidade de suas cavalgaduras, e o seu desempenho e galhardia em dirigi-las. As violas, violões e guitarras ressoavam por todos os cantos daquela vila que sempre foi notável por seu gosto pelas sinfonias e serenatas.
A arena ou circo, em que se deviam correr as cavalhadas, era no meio do largo da Matriz, em uma esplanada que fica na parte mais eminente do outeiro em que está situada a vila. Era um arco circular de cento e vinte passos, mais ou menos, de diâmetro, em torno do qual os particulares iam construindo em desordem e sem simetria alguma seus palanques toldados e guarnecidos em roda de colchas de damasco, de seda e de chita de variadas e brilhantes cores.
Dois dias antes da festa, à tarde, fazia sua entrada na vila pela estrada do sertão uma família, que, entre outras muitas que am chegando, atraiu particularmente a atenção do povo que vagava pelas ruas, e que se apinhava pelas portas e janelas. Era um homem idoso, tendo a seu lado uma jovem e gentil cavaleira, que cavalgava com suma graça um lindo ginete branco, uma menina de nove a dez anos, e alguns pajens e mucamas a cavalo.
— Que moça tão bonita é aquela? — perguntavam dali.
— É a Lúcia! Pois não conhecem a Lúcia? Ah! Cada vez mais bela!
— É a Lúcia! Aí vem a Lúcia! — sussurrava-se em outro grupo; e moços, velhos e meninos a correrem às janelas para verem aquela peregrina formosura, cuja fama há muito já se tinha espalhado por toda aquela redondeza.
— É um sol de formosura! exclamavam simpaticamente os velhos. É o retrato de sua mãe, que eu conheci muito no meu tempo, mas retrato favorecido...
— É na verdade bonita — diziam as moças; mas, coitada, por viver sempre na roça, está com um ar tão acanhado.
— Ora, prima, se a senhora não fosse tão bonita, eu diria que isso é inveja. Veja com que graça e desembaraço ela governa o cavalo... queria que ela estivesse a olhar sempre para todos os lados?
Quando uma moça é bonita, airosa e bem feita, se cavalga um lindo ginete e sabe bem dirigi-lo, seus encantos ganham novo realce. Com o movimento as faces se incendem de cores mais vivas, os olhos despedem mais fulgor, e o porte como que se torna mais garboso e senhoril. Lúcia, que reunia todas aquelas condições em grau eminente, estava fascinadora. Sua entrada na vila produziu uma verdadeira expectação.
— Que bonita moça! E como governa bem o seu lindo cavalinho! — dizia-se ainda em um grupo de moços, que se afastara a um canto para vê-la. Eu prefiro este espetáculo a quanta cavalhada há neste mundo.
— tens razão. Entre as coisas lindas é ver uma linda moça montada em um lindo cavalo.
— Oh! Se as mulheres também corressem cavalhadas, e pilhássemos um terno de cavaleiras como aquela! ... que dizes, Elias?
— Isso é impossível— respondeu este— como aquela não pode haver outra no mundo. Mas nesse caso eu quisera correr cavalhadas toda a minha vida!
— Ah! Meu Deus! A primeira argolinha, que eu correr, e que hei de tirar por força, há de ser oferecida àquela incomparável formosura.
— Alto lá, eu corro primeiro que tu, e serei eu que primeiro terei a honra de ofertar-lhe o anel... que ventura, já estou sonhando com o gracioso sorriso com que ela tem de agradecer-me.
— Que esperança! Na primeira corrida vocês todos hão de errar, eu aposto; e eu, que serei um dos últimos a correr serei o primeiro a levar a argolinha à gentil dama, e o que vocês ainda não sabem, o pai dela com quem muito me dou, me há de convidar a jantar em sua casa. Olhem, não vão morrer de inveja.
O grupo, como se vê, era de corredores de cavalhadas, e entre eles achava-se Elias. Lúcia o tinha avistado, e tinham-se saudado com os olhos>Elias ao ouvir as palavras de seus companheiros remoia-se por dentro, e começava a sentir as primeiras inquietações do amor. Quando passara pela fazenda do Major sentira irresistível atração pela moça; mas, atendendo à sua posição de moço pobre e sem posição, não ousara afagar muito aquele sentimento, que esperava em breve se desvaneceria. Quando porém a viu entrar na vila radiante de beleza, e como que rodeada de uma auréola de prestígio, quando a viu tornar-se o alvo da admiração de tantos ricos e galhardos moços, que pareciam porfiados em merecer dela um olhar ou um sorriso, Elias sentiu um não sei quê picar-lhe o coração, e compreendeu que nunca poderia ver de bom grado aquela beleza passar ao poder de outrem.
Depois de dar o tempo necessário para o descanso dos recém-chegados, que se apearam em uma das melhores casas do largo, Elias foi um dos primeiros a visitá-los, no que não só cumpria um dever como também satisfazia o mais ansioso anelo do seu coração. A recepção foi cordial e afetuosa. É escusado dizer que Lúcia, ao ver o moço, corou de um modo muito expressivo.
Havia já lá, na sala do Major, um jovem trajado com elegância e certo requinte de mau gosto, porém, à última moda. Sobre o colete brilhavam-lhe a grossa cadeia do relógio, guarnecida de uma infinidade de penduricalhos, a luneta com seu competente trancelim, e no peito da camisa um formidável alfinete de diamante. O colete tinha também uma cintilante abotoadura metálica. Era em tudo o tipo acabado do peralvilho da corte, todo frisado e almiscarado. Era um negociante fluminense há pouco estabelecido no lugar. Fora a princípio mascate ambulante, mas havia um ano que se instalara no Patrocínio com loja e balcão, e segundo dizia estava bem principiado, e em vias de enriquecer-se. Gostava muito de Lúcia, e fazia a corte ao Major que o não olhava com maus olhos; pois via nele um ricaço em esperança, e por conseguinte um excelente genro.
Elias viu com desespero que por toda a parte não encontrava senão rivais. Essa circunstância, porém, longe de desalenta-lo, mais estimulava e incendiava a sua nascente paixão.
O jovem negociante era de conversação jovial e zombeteira. Para se inculcar de fina e polida educação escarnecia de tudo quanto era do sertão, e naquela ocasião, para dar mostras de seu espírito, começou pelas cavalhadas.
— Na corte ninguém iria ver cavalhadas senão para rir-se. É um divertimento do tempo de El— Rei nosso senhor. Que papel ridículo não fazem esses papalvos que ali vão galopar enfeitados de chapéus armados, bandas, fitas e ouropéis como figuras de entremez! ... E a embaixada, Santo Deus! Há nada mais estúpido! Admira que ainda haja homens sérios, que assim se atrevam a prestar-se ao debique em público sobre um cavalo dançador, repetindo de boca cheia umas asneiras que ninguém entende! É espetáculo próprio só para bobos ou crianças.
— Ora deixe-se disso, senhor Azevedo — replicou o Major — o senhor é bem difícil de contentar. O nosso povo gosta de cavalhadas, é doido por elas. Não podemos ter circos nem teatros, como nas grandes cidades; que remédio senão nos servirmos com a louça de casa!
— Ora! Façam banquetes, façam bailes, façam corridas de touros; não faltam meios de divertir-se o povo; mas deixem-se dessa triste bobice das cavalhadas.
—mas talvez V. Sª. goste de ver estas. Os cavaleiros são excelentes; temos soberbos cavalos, e estão muito bem doutrinados.
— Qual! Nestas coisas, quanto melhor, pior! Quanto mais perfeito anda o negócio, mais ridículo. Antes fosse uma verdadeira mascarada carnavalesca e doidejante; mas aquela cômica gravidade, aquela insípida regularidade, é coisa tristemente ridícula.
— É para V. Sª. , acostumado aos brilhantes e variados espetáculos da corte; mas para nós, pobres roceiros, não há nada mais divertido do que ver um guapo cavaleiro dirigindo um bom e bem doutrinado ginete, tirar uma argolinha, e, encaminhando-se a um palanque, ofertá-la a uma formosa dama...
— Sim; e depois com cara d’asno vir volteando o círculo com um molho de fitas na ponta da lança, ao som de músicas e foguetarias, e ir colocar-se de novo muito concho no seu posto. Há nada mais insípido! São coisas que se devem deixar para os artistas do circo eqüestre, que as fazem muito melhores, e disso ganham a vida.
Elias, que ouvia com impaciência as palavras do negociante, que humilhavam e o feriam em seu amor— próprio, julgou que não devia deixar sem resposta os motejos daquele pelintra, com quem, sem saber por que, embirrara desde o princípio, e assentou de confundi-lo e esmaga-lo. Elias, que além de ter feito os estudos preparatórios, por seu amor à leitura tinha adquirido variada instrução, era de feito muito superior ao seu adversário.
— Perdão — replicou Elias com polidez — não lhe acho razão, meu senhor, e entendo que a cavalhada é um divertimento muito nobre, muito agradável, e muito útil.
— Deveras! E não me fará o favor de dizer em quê? ...
— Em quê? Em muita coisa. O senhor bem sabe que as cavalhadas não são mais do que uma imagem, um simulacro das antigas justas e torneios. mas esses divertimentos bárbaros, em que se derramava sangue, e que muitas vezes custavam a vida aos justadores, não podem compadecer-se com as luzes e costumes da civilização atual, e admira que, mesmo nos sanguinários tempos da média idade, fossem tolerados entre povos cristãos. A cavalhada, porém, ficou como uma imitação daquelas lutas cavalheirescas, que, não custando o sangue nem a vida a ninguém, oferece um brilhante e nobre espetáculo aos olhos do povo. A equitação é uma arte útil, necessária mesmo; ninguém o pode contestar. A cavalhada produz estímulo e emulação entre os moços para se exercerem nesta vantajosa e nobre arte, dando-lhes ocasião de alardear o seu garbo e destreza em dirigir um possante e fogoso ginete aos olhos do público, e às vezes também de uma amante querida, que do fundo do seu palanque o anima com um olhar, ou com um sorriso. Dizendo estas últimas palavras, Elias lançou furtivamente sobre Lúcia um olhar rápido.
—triste meio de agradar às belas, fazendo papel de truão! , exclamou com uma gargalhada o jovem negociante.
— É mais nobre e cavalheiresco— retorquiu Elias— do que o namoro nos bailes e nas igrejas, que é tão comum hoje. E ainda nisto a cavalhada é uma semelhança dos antigos torneios, nos quais os campeões tinham sempre uma dama dos seus pensamentos, pela qual iam romper lanças na sanguinosa liça.
— Oh! meu senhor! Já lá se foi o tempo dos D. Quixote e das Dulcinéias — disse o negociante.
— É verdade; hoje estamos no tempo dos melcatrefes e dos bonecos almiscarados; duvido que melhorássemos nesse ponto. O uso de correr cavalhadas também produziria ainda uma outra vantagem, e seria inspirar aos nossos fazendeiros o gosto pela criação de bons e bonitos animais, tendo mais capricho na escolha e apuração das raças cavalares, coisas de máxima importância, e que em nosso país se trata com o maior desleixo. A cavalaria é uma das armas mais poderosas, principalmente nas guerras da América, onde ela é indispensável, e sem bons cavalos e bons cavaleiros não pode haver boa cavalaria. Quando a arte for uma arte inútil, quando a carreira militar for uma profissão ignóbil e desprezível, então a cavalhada será um espetáculo só próprio para bobos e crianças.
— Não creia que hão de ser as cavalhadas, que se correm de anos em anos, quando se correm, que nos hão de dar bons cavaleiros, nem bons cavalos. Infelizes de nós, se não houvesse outros meios de obtê-los, como as escolas de equitação, as corridas de parelhas...
—mas onde está nada disso entre nós? As escolas de equitação seriam úteis, sem dúvida; mas as cavalhadas e todos os espetáculos eqüestres seriam um complemento delas, porque estimulariam os moços a se exercerem nessa arte oferecendo-lhes ocasião de exibirem em público sua agilidade e galhardia. Ninguém freqüentaria as escolas de música ou de qualquer outra arte agradável, se não houvesse ocasião de apresentar em público, em ocasiões solenes como nas igrejas e nos teatros, seu talento e maestria. Para nós, porém, que desde a infância andamos a cavalo, essas escolas são muito dispensáveis, e mesmo sem elas sabemos, não só governar, como domar e doutrinar os mais fogosos animais, e quando é ocasião de nos apresentarmos em público; em breve o senhor poderá julgar se somos ou não bons cavaleiros.
Ah! pelo que vejo, o senhor também é um dos corredores da cavalhada? Nesse caso peço-lhe mil perdões pelo que tenho dito; mas, meu amigo, a falar-lhe com franqueza, não lhe invejo o gosto.
— Embora! ... O senhor acha ridícula a cavalhada; mas, pergunto eu, qual será mais ridículo, uma cavalhada ou um baile? Quem se presta mais ao debique público: aquele que dirige e sopeia um generoso corcel no meio da liça, sopesando uma lança ou brandindo uma espada, ou aquele que ao lado de uma dama arrasta os pés em um salão, fazendo mesuras, trejeitos e requebros? Qual será a prenda mais útil e mais nobre, a dança ou a equitação? Qual será mais proveitoso ao país, um bom dançarino ou um bom cavaleiro?
O negociante sentiu-se algum tanto desconcertado com as calorosas tiradas do jovem sertanejo em defesa das cavalhadas, e que eram interrompidas continuamente pelos aplausos e animadores apartes do Major. Lúcia, que não supunha Elias tão instruído e bem falante, o escutava com íntima satisfação e aplaudia, ora com um gesto, ora com um sorriso.
—seja como quiser, meu caro senhor— disse o negociante. — Não sabia que era cavaleiro e tão entusiasta; agora que o sei, não me animo mais a contrariá-lo. Fique cada um com sua opinião que não vale a pena questionar sobre semelhante coisa.
E, dirigindo-se ao Major, mudou bruscamente de conversação.
No entanto, Elias teve ocasião de dirigir timidamente a Lúcia algumas palavras sem importância, só pelo prazer de falar com ela e de lhe ouvir a voz. Por fim sempre se animou a pedir permisão para oferecer-lhe a primeira argolinha que tirasse nas corridas do primeiro dia.
No dia 7 houve pela manhã a missa cantada, o Te— Deum e a parada de costume. Tudo era farda: no meio daquela multidão de uniformes, os homens vestidos à paisana formavam uma minoria imperceptível. As famílias que queriam ir à igreja eram conduzidas pelas crianças e escravas, pois os pais e os irmãos adultos por via de regra estavam debaixo de forma. Assistindo-se aos festejos de gala nas vilas do interior, dir-se— ia que não há povo mais militarizado que o nosso. Entretanto, não há povo mais essencialmente pacífico, menos propenso à carreira das armas.
A lei lhe impõe o dever de envergar uma farda e entrar em forma em certos dias do ano, e eis em que consiste o militarismo a missão única da guarda nacional.
À tarde tiveram lugar as cavalhadas.
Às três horas, já os palanques toldados de colchas de cores brilhantes estavam atulhados de famílias. Por baixo e em torno deles formigava remoinhando uma multidão inquieta, esperando com impaciência o começo do espetáculo.
Por fim o estouro das girândolas e o repique dos sinos deram sinal da vinda dos cavaleiros.
Daí um instante estes, divididos em duas turmas de dez cada uma, entraram na arena a galope por lados opostos, montados em lindos ginetes ricamente ajaezados e enfeitados de fitas e européis, penachos e ressoantes guizos, e meneando as lanças ornadas de compridas fitas. Não traziam máscara, nem estavam trajados a caráter, como é costume em algumas partes; mas, segundo o uso do sertão, traziam uniforme militar à moda do tempo, cada um a seu talante e com primor e riqueza que podia. Uma das turmas, porém, trazia farda azul, e outra escarlate, figurando aquela os cristãos, e esta os mouros.
Depois de fazerem diversas evoluções, postaram-se as duas turmas em fila defronte uma da outra nas extremidades do circo. Cada cavaleiro tinha o seu pajem da lança a pé, conduzindo pela rédea mais um cavalo à destra.
É escusado descrever todas as evoluções das corridas, porque suponho que os leitores pela maior parte têm assistido a este divertimento, se bem que este hoje vá caindo em completo desuso e esquecimento.
Elias era o segundo da fila dos mouros, e logo na primeira corrida ia sendo vítima de um infeliz contratempo. Seu cavalo nimiamente fogoso e pouco acostumado ao estrondo da música e da foguetaria, desgovernou-se, e era quase impossível ao cavaleiro faze-lo trilhar a linha marcada. Corria ou antes corcoveava à direita e à esquerda, como um poldro bravio. Elias exasperado o castigava rigorosamente. O cavalo falseou de uma das mãos, e caiu de peito em terra. Elias saltou fora dos arreios; o cavalo levantou-se imediatamente; mas uma roseta da espora tendo se embaraçado no selim, Elias caiu e foi arrastado pelo circo umas dez braças no maior perigo do mundo.
— Jesus! Maria! Misericórdia! — foi o grito de alarme, que ressoou por todos os palanques.
Mas Elias se desvencilhara, e estava prestes a montar de novo; mas seus companheiros não queriam consentir; ele porém insistiu vivamente até que um pajem, vindo a toda pressa do palanque do Major, veio pedir-lhe por parte deste e de sua filha Lúcia que não corresse mais naquele cavalo.
— Sinhazinha teve tamanho susto, que ficou fora de si, e quase caiu— disse o pajem.
Ao saber que Lúcia tinha desmaiado, Elias teve ímpetos de matar ali mesmo o cavalo a lançadas e correr aos braços dela; mas ao mesmo tempo não podia deixar de abençoar do íntimo d’alma aquele incidente, que viera revelar de modo tão positivo o grau de interesse que inspirava à jovem e gentil roceira.
O jovem fluminense, que nunca largava a companhia do Major, estava em seu palanque.
— Oh! minha senhora— exclamou ele com certo despeito ao ver o susto e inquietação de Lúcia— não vale a pena tomar tanto cuidado pelo pobre rapaz. Deixa— o; está no seu torneio; e, se aqui não se quebram lanças, nem rompem-se couraças em honra das amantes, ao menos quebram-se as costelas no chão. É resultado do entusiasmo cavalheiresco.
Lúcia apenas respondeu com um olhar de desprezo.
Elias mudara os arreios para outro cavalo e as corridas continuaram. Ele ostentou-se sempre o mais garboso e mais hábil cavaleiro.
Chegou a hora da corrida de cabeças.
São cabeças de papelão colocadas sobre quatro postes nos cantos, e uma quinta no meio da arena. Os cavaleiros, volteando a arena a galope, cada um por sua vez tem de enfia-las na ponta da espada; é este último passo o mais difícil, e em que poucos são felizes.
Elias, quando largou a lança, tinha nela enfiadas todas as quatro cabeças. Depois em vez de desembainhar a espada como os outros, viram— no abrir alguns botões da farda, tirar do seio um curto punhal, e dependurando-se dos arreios com a presteza e agilidade de um gaúcho, quase sumir-se debaixo do cavalo, e depois reaparecer com a cabeça cravada na ponta do punhal. Os aplausos e os foguetes retumbaram por todos os lados.
— Ah! Meu Deus! — exclamou Lúcia involuntariamente e cobrindo os olhos com o lenço ao ver o moço naquela arriscada posição.
— Não se assuste, minha senhora— acudiu o fluminense— o rapaz está em seu elemento; é um excelente artista. No circo eqüestre do Bartolomeu este rapaz podia fazer fortuna.
Chegou por fim o momento de correr à argolinha, que é de todos os exercícios da cavalhada o mais difícil.
Os cavaleiros de ambas as turmas se reúnem de um só lado. Em frente deles, na outra extremidade, está pendurada a um cordão, preso a dois altos postes, uma argola de metal de uma polegada de diâmetro. Os cavaleiros, cada um por sua vez saindo a galope da fileira, têm de tentar enfia-la na ponta da lança.
Quando chegou a sua vez, Elias tinha montado de novo o fogoso rosilho; quando deram fé, já era tarde para estorvá-lo. O cavalo saiu aos trancos, num galope áspero e descompassado; mas a despeito disso, quando Elias passou entre os postes, a argolinha tinha desaparecido do cordão. Como é de estilo, dois cavaleiros vieram escoltá-lo, e ele, ao som de aplausos, músicas e foguetes, dirigiu-se ao palanque de Lúcia. Esta, com o mais amável dos sorrisos nos lábios e com mão trêmula de emoção, na forma do costume, atou-lhe na ponta da lança um molho de largas e compridas fitas, e ele volteou de novo a arena a toque de música e estouros de foguetaria. Era o herói da festa.
Seguiu-se a embaixada. Um parlamentar, montado em um formoso e bem doutrinado ginete, saiu caracolando, dançando, pinoteando para o meio da arena, e em um discurso bombástico no estilo do Carlos Magno, intimou por parte do rei dos cristãos ao chefe dos infiéis que se rendesse à discrição, etc. Mas o turco descrido não está por isso, e com a mais despejada arrogância jura por Mafoma que se não renderá e desafia a cólera do cristão vencedor. Então há a corrida desordenada. Os cavaleiros cristãos em massa investem sobre os turcos, os quais não podendo sustentar o choque, correm atropeladamente pelo circo, uns para aqui, outros para acolá, sempre perseguidos pelos cristãos. Enfim os mouros, vendo-se apanhados, põem rapidamente o pé em terra e, largando seus cavalos, correm a procurar refúgio e padrinho cada qual em um palanque de sua escolha, e assim aqueles perros infiéis, abrigados cada um aos pés de uma beleza cristã, de cujas mãos querem receber o batismo, ficam inteiramente a salvo da sanha dos perseguidores.
Elias, que era mouro, atracou-se logo ao palanque do Major, e foi apadrinhar-se com Lúcia. Esta com alegre alvoroço e quase pensando, em sua imaginação infantil, que aquilo era uma realidade, adiantou-se sorrindo a dar a mão ao cavaleiro, como é costume nessas ocasiões, este foi convidado a jantar em casa de sua madrinha.
Assim passou-se alegremente o primeiro dia de festa. Os outros dois, que se seguiram, correram igualmente animados e folgaram sem incidente algum, cabendo sempre a Elias as honras do dia nas cavalhadas.