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O Garimpeiro/XI

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Elias tinha gasto cerca de quatro meses em sua viagem do Sincorá à Bagagem. Quando disse a seu hóspede que apanhara febres intermitentes na margem do S. Francisco, não tinha mentido, se bem que naquela ocasião nada sentisse que delas procedesse. Essas sezões que apanhou em caminho foram que, com grande desespero seu, demoraram-lhe a volta por mais de dois meses.

Durante esse penível trajeto foi que o público e o governo brasileiro deram fé da grande quantidade de notas falsas que tinham sido introduzidas na circulação, e que se começaram a dar as mais enérgicas providências para descobrir e capturar os fabricantes e introdutores da moeda falsa. Esta notícia, porém, ainda não tinha penetrado pelos sertões que Elias tinha de atravessar do Sincorá a Bagagem; por isso ao chegar a esta povoação pôde ter conhecimento da abominável fraude de que fora vítima.

Leonel era um dos agentes mais audazes e ativos dessa sociedade de moedeiros falsos, cujo centro existia na Bahia e que se ramificava pelo império inteiro.

Por aí já se pode avaliar de que têmpera era a consciência daquele homem, e de que perversidades não seria capaz. Tinha porém o dom de ocultar sua perversidade debaixo das mais brilhantes e sedutoras exterioridades, e a todos iludia e fascinava.

Depois de ter passado centenas de contos de notas falsas no Sincorá e em outros pontos de sua província, assentou de percorrer outros pontos do império, prosseguindo em suas criminosas especulações. Girando assim constantemente, e no caso que ela lhe quisesse deitar a garra, pôr-se— ia a salvo atravessando o Atlântico. Na Bagagem, porém, o atrevido cavalheiro de indústria achou nos olhos de Lúcia um engodo irresistível, que o deteve nessa localidade por mais tempo do que desejava. Logo que a viu, tomou-se de uma paixão cega pela moça, não inspirada por um casto e sincero amor, mas filha desse desejo material e libidinoso das almas libertinas, e jurou possuí-la custasse o que custasse. Para logo conheceu a impossibilidade de seduzir e lançar no caminho da desonra aquela alma tão nobre, aquele coração tão casto. mas o casamento, para Leonel, era um meio tão simples como outro qualquer de trazer-lhe aos braços a mulher que cobiçasse. Abandona-la depois, onde e quando quisesse, era para ele também negócio de bem pouca ponderação. Entregue à descuidosa cegueira que resulta da prosperidade e da opulência, nem pensava na possibilidade de encontrar naquelas paragens alguma das vítimas de suas fraudes, e quase que já nem se lembrava de Elias, e, ou ignorava ou já não se recordava de que país era ele. Estava além disso persuadido que nos sertões as leis e a justiça são impotentes contra quem quer que tenha na carteira algumas centenas de contos de réis.

O escandaloso incidente, que tinha tido lugar em casa do Major, fizera viva impressão no espírito da população, que em peso estigmatizava o ato violento de Elias. O Major, cheio de indignação e de susto ao mesmo tempo, era o mais empenhado em exigir a punição de tal atentado, a despeito da oposição de Leonel, que clamava em altas vozes que dispensava a vindita das leis, e que ali ou em qualquer parte saberia desforrar-se cabal e categoricamente.

Elias, que na Bagagem poucas relações tinha, passou aos olhos de todos por um louco, um desmiolado. O horrível logro de notas falsas, de que fora vítima no Sincorá, já tinha sido divulgado, mas nem assim o público quis se convencer que Leonel pudesse ter a mínima parte naquele acontecimento, tal era a satânica habilidade deste para embair a todos e captar a geral estima e confiança. Esse fato, longe de escusar a Elias, serviu para explicar e confirmar a convicção em que muitos estavam, de que o rapaz endoidecera.

Ainda outra circunstância contribuiu para dar mais vulto a essa convicção. O Major tivera a ingenuidade de revelar em presença de muitas pessoas a paixão de Elias por sua filha.

— Bem conheço o motivo de tudo isto, disse ele, este pobre rapaz há muito tempo gostava de Lúcia, e parece que tinha a louca pretensão de casar-se com ela. A paixão e o desejo transtornaram-lhe a cabeça, coitado! tenho pena dele; mas não devo tolerar que fique impune semelhante desacato.

Assim o infeliz Elias, para cúmulo dos males, era objeto da compaixão desdenhosa de uns, dos motejos de outros, e do ódio de alguns. Somente o negociante, em cuja casa se hospedara, e a quem tinha contado sua triste aventura, tinha motivos para não acompanhar a opinião do vulgo; mas, homem de espírito fleumático, não querendo ir de encontro ao parecer de ninguém, guardava para si sua convicção, esperando que o tempo viesse deslindar aquele negócio, o que julgava que não poderia tardar muito.

— tantos contratempos viraram-lhe a bola, dizia um.

— Era um rapaz pacífico e prudente, ajuntava outro, não sei que diabo lhe entrou na cabeça para fazer aquela estrada!

— Coitado... observava outro, de um dia para outro viu-se roubado em tudo que possuía, e atraiçoado em seu amor... o caso é mesmo para enlouquecer.

Assim, enquanto Leonel campeava insolente e orgulhoso, protegido pela estima e simpatia geral, Elias jazia em uma prisão, como um pobre maluco, que apenas merece um pouco de compaixão.

Do seio de sua prisão Elias formulou uma denúncia contra Leonel. Mas Elias era um maníaco; as autoridades desprezaram a denúncia, embora estivesse concebida nos termos mais sensatos e procedentes.

Leonel, para remover toda e qualquer suspeita que alguém pudesse nutrir a seu respeito, quis que se desse rigorosa busca em tudo quanto era seu, em todos os valores que trazia consigo, e nada encontrou que o pudesse comprometer.

Todavia, como bem se pode julgar, Leonel estava longe de viver tranqüilo depois daquele desacato, e esperava com a maior impaciência e inquietação o domingo seguinte para efetuar o seu casamento, e depois— com a noiva ou sem ela— evaporar-se. Teria desaparecido incontinenti, se esse passo não viesse despertar contra ele as mais bem fundadas suspeitas, não fosse um terrível indício, uma confissão tácita de seu crime. Via-se enleado em um labirinto, cuja saída se lhe ia tornando extremamente difícil.

Mas como Elias nenhuma outra prova tinha contra ele mais do que a sua palavra, e além disso estava por poucos dias a ver-se livre do compromisso que ainda o detinha na Bagagem, ainda não julgava tão crítica a sua situação que devesse tomar logo o partido extremo da fuga. Para manter-se na reputação que soubera conquistar, de leal e honrado cavalheiro, forçoso era levar a cabo o odioso drama em que se envolvera. Uma vez casado, ou a pretexto de ir arrecadar seus bens, ou em virtude de uma carta que recebesse de seu pai ou de sua mãe, que estava à morte, chamando— o junto a si, se retiraria poucos dias depois muito honestamente, e sem despertar suspeitas teria tempo de pôr-se a salvo.

Para melhor disfarçar sua perfídia e mais arras dar de generosidade e cavalheirismo, como o crime de Elias era particular, e por ele não poderia ser acusado sem haver parte queixosa, Leonel desistiu da acusação judiciária, mas protestando sempre que apenas o visse solto, ou havia de morrer às suas mãos, ou havia de lavar em seu sangue a afronta de que fora vítima.

Mas seus amigos tiveram o cuidado de dissuadi-lo, fazendo-lhe ver que nenhum desdouro sofria em sua honra em conseqüência do desatino de um louco rematado; que ele seria tão louco como o seu ofensor se fosse arriscar a sua existência nas garras de uma fera intratável, por motivos de pundonor; que se vingava do coice de um burro, ou da cornada de um touro bravio.

Leonel, que não primava pela coragem, e que sabia quanto o seu adversário era vigoroso e destro no manejo de toda a espécie de armas, mostrou ceder com dificuldade a estes conselhos, reservando-se todavia interiormente o direito de tomar alguma cobarde e traiçoeira vingança, se porventura tivesse ocasião.

A riqueza, principalmente quando é acompanhada de um verniz de cortesia, generosidade e cavalheirismo, é sempre cortejada e adulada.

Leonel tinha pois uma numerosa roda de aduladores, que só para não incorrerem em seu desagrado deixaram de cumprir um dever de humanidade para com o pobre moço, que jazia na prisão sozinho, abandonado, sem ser visitado por quase ninguém.

Elias passou essas amargas horas, umas vezes sepultado em profundo abatimento, numa letargia da alma e do corpo, outras em acessos de raiva e exasperação, esbravejando, vociferando, e dando com a cabeça pelas paredes. Estes transportes de furor ainda mais confirmaram a crença em que estavam, de ter ele caído em alienação mental em razão dos horríveis contratempos que o tinham fulminado naqueles últimos dias. O infeliz bem via e conhecia os motivos do abandono em que o deixavam seus conterrâneos por amor de um astuto aventureiro que os soubera engordar, e os lamentava do fundo da alma: mas não podia refletir, sem estremecer e encher-se de furor, na sorte que esperava a pobre Lúcia, nas garras daquele bandido sem fé, sem costumes, sem consciência; e o que mais desesperava ainda era o pensar que ela ali estava bem perto, ela! que era a causa de todos os seus sofrimentos, ouvindo talvez tranqüila os seus bramidos de dor, e reputando— o, como os demais, um louco digno apenas de comiseração.

Estas e infindas outras considerações dolorosas davam-lhe febre e delírio; sentia arder-lhe o crânio e o coração túmido de angústias como que lhe não cabia no peito. A idéia do suicídio, que há dois dias antes lhe apresentara como o único meio de livrar-se daquela situação infernal, já não lhe sorria. O desejo de ver-se vingado o prendia à vida, e essa vingança ele a entrevia pendente sobre a cabeça dos culpados, ameaçadora e terrível. Era esta esperança que o alentava e o fazia suportar com alguma resignação as inclemências da sorte e as injustiças dos homens.