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O Hóspede (Pardal Mallet)/XV

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Então, naquela grande paz das digestões a elaborarem-se nuns laivos de beatitudes, vieram a falar sobre a política. Um assunto corno outro qualquer, para matar o tempo, essas longas intermináveis horas do entardecer, quando o ar embalsamado que se coava pelos jardins afora lhes trazia, de envolta com o perfume das murtas e das madressilvas, a sensação boa da vida honesta e pacata a escoar-se mansamente através dos anos pelas uniformidades enfadonhas do rotineiro! Urna coisa que a gente lia de manhã cedo nos "A Pedidos" do Jornal do Comércio, que ouvia nas palestras do bonde, ao alcance de todo mundo, que se podia discutir à vontade, em opiniões autoritárias, sem ter o trabalho de estudar, deixando apenas às soltas a louca fantasia! E eles entravam francamente na matéria, cada um trazendo o seu contingente, todos construindo um Brasil lá a seu jeito, fazendo uma atmosfera propícia à vitalidade das suas teorias, concordes sempre em que o governo fazia tudo mal, admirando-se de tanto amontoado de desatinos!

O Pedro pertencia à mocidade decrépita de hoje em dia. Tomava parte nas conversas da repartição, discorria nos cafés da rua do Ouvidor e chegava mesmo a ler a Gazeta da Tarde quando voltava para casa. No seu modo de considerar os negócios havia os ressaibos de umas leituras revolucionárias que não tinham sido bem compreendidas. Inclinava-se às aspirações modernas e chegava mesmo a ter uns pruridos republicanos. No final das contas o país estava à beira do abismo e em pouco tempo a bancarrota nos viria bater às portas! Era preciso um remédio violento para esse estado de anarquia e dissolução! E dava-se uns aspectos científicos para falar no ferro em brasa, na amputação das partes grangrenadas do organismo social. Chegara o momento dos grandes heroísmos e das grandes dedicações. A nau do Estado não podia continuar a viagem sem alijar metade das velharias que lhe entulhavam o porão!

Mas o Marcondes divergiu completamente da sua opinião. Em tempos ele também deixara-se enlevar por estas teorias bonitas dos panfletários! Chegara mesmo a ser sócio fundador do clube dos Girondinos, e escrevera alguns artigos de propaganda republicana na revista desse clube! A pouco e pouco, fora porém mudando de idéias e, quando se esvaíram os seus sonhos da mocidade, quando aparece-lhe o juízo calmo e refletido, deixou de parte todas estas baboseiras próprias da rapaziada e converteu-se aos sãos princípios de um liberalismo moderado. A tal República era simplesmente uma especulação com que meia dúzia de esfarrapados andava empulhando a pobre humanidade idiota! Demais, ele agora não tinha tempo nem meios de ser político. Principiava a vida, e precisava arranjar um meio de subsistência, um ganha-pão com todas as garantias legais. Mais tarde, quando já tivesse uma posição independente, refletiria sobre o caso e alistar-se-ia em um dos partidos militantes! Por enquanto a sua obrigação era não se meter nestes negócios para não angariar antipatias gratuitas que só podiam perturbar-lhe o desenvolver da existência!

D. Augusta aprovava-o, revoltada às idéias do genro, achando o Marcondes muito ajuizado e bem pensante. Ela votava sempre pelo sossego, gostando da política pacífica, intimidada à expectativa de uma qualquer coisa perturbadora. Demais prendiam-na à causa monárquica as suas tradições de família preciosamente guardadas no relicário do seu peito. O pai emigrara com d. João VI, e o marido possuíra o título de conselho! Além disto, das muitas obrigações que devia à família imperial, outras razões ponderosas havia a lhe ditarem todas estas crenças! No final das contas, as coisas não eram tão feias como pintavam! Todo mundo vivia bem, sem grandes inquietações! Tanto que sobrava tempo para discutir política! E em todo este negócio convinha observar que não valia a pena a gente dar-se ao trabalho de uma mudança para pior! O que seria do Brasil quando a hidra da anarquia tomasse conta do território? Só o pensar nisto bastava para arrepiar os cabelos!

Nenê também ritmava pelos mesmos tons Não achava fundamentos nas acusações que dirigiam ao imperador! Ele era tão bom, tão caritativo! Quantas e quantas mulheres, pobres viúvas desamparadas, iam aos sábados receber a esmola com que ele as sustentava? Nem valia a pena falar na imperatriz! Todo mundo sabia reconhecer-lhe o subido mérito! A princesa, essa, era tão agradável de trato! Não tinha presunção de qualidade alguma, falava com grandes amabilidades e, nos bailes que dava no Palácio Isabel, era tão cortês! Enfim! De que eram eles culpados? Para que atribuir-lhes a origem dos males que porventura houvesse? E em presença destas três convicções que lhe batiam todos os argumentos o Pedro teve de dar-se por vencido, ruminando ainda umas objeções vagas e indefinidas, em grandes frouxidões; ele próprio, meio duvidoso das suas crenças, republicano para ter uns ares guerreiros de moço modernista, incapaz de ir além da esfera palavrosa das discussões, amando dentre tudo o grande quietismo de existência em que ia vivendo.