O Hóspede (Pardal Mallet)/XIV

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Os conselhos de sá Jovina pareciam ter fortemente impressionado a mãe e a filha. Tanto que, à chegada dos dois amigos, foram eles recebidos quase cordialmente, com grande espanto do Marcondes, que esperava encontrar umas fisionomias enregeladas de cerimoniosidades, e por causa das dúvidas fora durante a viagem do bonde preparando o espírito do Pedro para a sua mudança. O Pedroca tinha ido recebê-los lá fora no portão e, trepando-se para o colo do rapaz, falou-lhe desenvolvidamente sobre a velha senhora, procurando repetir-lhe a história que acabava de ouvir. Depois quis acompanhá-lo ao sótão onde assistiu-lhe à mudança de roupa, vivamente interessado pelas escovas e frascos de perfumarias que havia em cima do toalete. Então, para contentá-lo, o Marcondes penteou-o com requintes de perfumes. Ao regressarem para a sala de jantar, naquela pequena espera do jantar que o Valentim estava pondo na mesa, o menino andou a mostrar os seus cabelos a todo mundo, exigindo que lhe cheirassem a cabeça no meio da geral alegria.

A refeição correu em grandes contentamentos, amenizada pelas graças de sá Jovina, que contava uma história a todo o propósito e a quem o Pedro excitava com contínuos apetites e perguntas. Por vezes d. Augusta mesma esquecia-se do seu aspecto severo de dama antiga e compartilhava das risadas satisfeitas com que iam todos distraindo o tempo. Nenê abandonara completamente os modos reservados do almoço, conquistada por essa superficialidade de alegrias intimamente gostosa da feição acomodada que iam tomando as coisas.

O Pedro, sempre bonachão, alheio a tudo quanto o rodeava, vivendo num mundo de sonhos, tornara-se também brincalhão, procurando recobrar-se do mau humor com que aparecera de manhã, depois da noite mal dormida que passara. E o Pedroca, sentado entre o Marcondes e sá Jovina, mimado pelos seus dois vizinhos, que procuravam adivinhar-lhe as vontades, dava uma nota de alegrias infantis, modulada no argentino suave das risadas a adornarem-lhe a boca rubra e pequenina.

À tarde, foi aquele mesmo espetáculo da rua convertida em salão comum, nas grandes familiaridades da vizinhança. D. Augusta acompanhara-os até o portão e agora envolvia-se na conversa, prestando atenção ao Marcondes, que se divertia em discutir com sá Jovina a dissolução da Constituinte e o 7 de abril; ela mesma acrescentando algumas minudências e detalhes que ouvira em outros tempos nas conversas de família, falando desassombradamente da marquesa de Santos, que chegara a conhecer. Nenê brincava distraidamente com o Pedroca, aborrecido daquilo, não podendo compreender como havia gente que achasse graça em semelhantes coisas, procurando de quando em vez interromper o fio da conversação, chamando-a para um outro terreno onde lhe fosse permitido fazer também as suas observações. O Pedro por seu lado não estava muito contente com isto. Não que ele tivesse opiniões assentadas em política! Era-lhe completamente indiferente a questão de forma de governo; embora tivesse uns amores secretos pega República, votava sempre pelo governo e em casa não gostava de conversar sobre este assunto.

Entretanto as duas velhas continuavam a remexer o entulho das suas recordações. Entravam francamente nuns detalhes crus, pela grande pornocracia do Primeiro Império. Evocavam por entre umas auréolas de glória o vulto abandalhado de Pedro I, e compraziam-se em contemplar a estatura corpulenta do real bilontra. Ele surgia-lhes na imaginação com o seu todo varonil e os olhos lúbricos a destilarem vícios, mas uns vícios nobres, que não se escondem nos camarins, que vêm para o meio da rua com a coragem de sua existência e a ostentação de suas torpezas! Aquilo sim era um homem! E d. Augusta, sem segundas intenções, aliás, comparava-o ao filho e achava este muito desajeitado, falto de elegâncias na sua eterna casaca sebosa. Ao menos naquele tempo a gente podia chegar à janela quando o imperador passava, certa de ver uma bonita cavalhada! Ela era então muito menina, mas ainda se lembrava de ter admirado por diversas vezes o brilhantismo do séquito imperial!

E vieram a falar sobre a independência. No final das contas, havia ali um mistério, uma coisa que nunca foi devidamente esclarecida, mas de que em tempos se falava extraordinariamente. Pelo menos sá Jovina lembrava-se de tê-lo ouvido a diversas pessoas. E a boa velha fez-se discreta, abaixando a voz, como quem ia comunicar um segredo. Jorge de Avillez, o comandante das tropas portuguesas no Rio de Janeiro, dizia ela, fora casado com urna senhora muito bonita por quem o Pedro I se apaixonou. Este apaixonou, a velha senhora o sublinhava, nuns tons cômicos, cheios de segundas intenções. Parecia, acrescentava ela, que o general não gostara muito da coisa e reunira as tropas na Armação para se vingar. Mas o imperador, que estava no teatro, foi avisado em tempo e obrigou a legião lusitana a capitular. E sá Jovina sorria maliciosamente. Achava muito engraçada esta idéia de fazer depender o 7 de setembro, e tudo mais, de uma aventura galante, de uma simples briga entre um marido altivo e um príncipe metido a d. Juan!