O Hóspede (Pardal Mallet)/XXIII

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A cada uma destas superexcitações de sentidos o Marcondes retirava-se alquebrado, tendo um mundo de ardentias a escaldarem-lhe as artérias. Vinham-lhe então uns longos abatimentos, umas prostrações sem fim. Recriminava-se a si mesmo! No final das contas devia atribuir tudo à sua covardia. Adivinhava-a prestes a desfalecer, a cair-lhe nos braços! Bastar-lhe-ia abaixar-se para apanhá-la, para tê-la como sua! Entretanto não fizera nada! Deixara-a quieta e sossegada a magoar-se daquela vitória não perdida! E de si para si, confessava-se uma besta, muito ignorante nestas matérias de amor! Se ele fosse mais brutal, não tivesse tantas considerações e respeitos, não andasse atemorizado com uns receios infundados, com certeza já tê-la-ia conquistado! E lamentava-se furiosamente da sua inépcia, maldizia estes tempos em que se metera nas conquistas fáceis e nos amores a cinco e até mesmo a dois mil-réis! Se ele tivesse aproveitado estes anos da sua primeira mocidade na aprendizagem da crápula do bom-tom, com certeza não estaria agora tão atrapalhado com este noviciato que lhe custava tanto trabalho!

E prometia emendar-se. Jurava a seus deuses que daquela época em diante havia de ser mais empreendedor. Castelava uns planos para o futuro. Agora queria Nenê fosse como fosse. Queria-a em nome de todas estas derrotas que experimentara por causa de seus modos esquerdos e de sua falta de prática. Queria-a em nome dessa paixão que lhe escaldava o sangue e lhe entontecia a cabeça. Queria-a como o primeiro degrau dessa escada por onde esperava subir ao canalhismo aristocrático, como embasamento sólido e gentil de arabescos sobre o qual pretendia erguer o monumento de suas futuras glórias dom-juanescas. Queria-a como o sarcasmo lançado aos amores fáceis do seu passado, como o complemento da sua carta de bacharel em direito. Queria-a fosse como fosse, custasse o que custasse, ainda mesmo que tivesse de passar por cima de um cadáver, numa grande superexcitação de espírito, alucinado por toda essa paixão sensual que lhe brotara de repente no organismo inteiro, nas veemências que geram as dificuldades não superadas.

Formava uns planos para futuros a sós. Dir-lhe-ia toda a imensidade de desejos que lhe abrasava o crânio. Ela havia de ceder, de se deixar cair nos seus braços. E depois? Oh, como havia de ser bela a existência! Castelava-a numas alegrias sem fim, numas brutalidades enormes, nuns paroxismos de sensualidades. Viveria ali, naquela mesma casa, a amá-la constantemente, a rodeá-la de carinhos e afetos. Não lhe repugnava compartilhar com o Pedro esse tesouro de amores bons que lhe adivinhava. No final das contas o outro era marido e tinha direitos adquiridos, direitos em que não ousava tocar. Seriam dois a amá-la. Apenas, evitaria por todos os meios que o outro conhecesse aquela vida a três. Era possível que o amigo não se agradasse muito com o negócio e convinha evitar as desavenças possíveis! Amá-la-ia em segredo, e sempre, e sempre. Para não abandoná-la, para nunca separar-se dela, ficaria ali mesmo no Rio de Janeiro, sem pensar mais em obter uma promotoria, limitando-se a abrir um escritório para viver honesta e decentemente.

Oh! Ele bem sabia o que fazer depois do primeiro abraço e do primeiro beijo quente, quando já lhe tivesse inoculado um pouco daquela seiva abrasada que lhe escaldava o sangue! Para ele toda a questão, todas as dificuldades estavam no primeiro amplexo. Depois, tudo era fácil, devia suceder-se muito naturalmente como um desencadear de corolários. Apenas lhe parecia extremamente complicado o estabelecer a premissa. E a si mesmo confessava a sua impotência, reconhecia-se inapto para tanto, acobardava-se diante da perspectiva. Oh! se ele fosse ousado, se tivesse lá aprendido a aproveitar-se desses tão falados momentos psicológicos em que as mulheres param-se à beira do abismo onde se deixam cair ao mais leve impulso, com certeza já teria levado tudo de vencida, já estaria a viver aquela vida honesta e sossegada que se lhe afigurava tão brilhante e sorridente num conjunto de felicidades mansas! Oh! Ele queria dobrá-lo, este Cabo Tormentoso após o qual ficar-lhe-ia, ao fim da navegação, essa Índia poética e misteriosa das voluptuosidades asiáticas!

E como se reconhecia impotente e pequenino para tão grande empresa, incapaz de levá-la ao termo, sonhava uns meios de evitá-la, de pular por cima de todas estas dificuldades. Queria uns desenlaces rápidos e fáceis para esta situação que a cada momento sentia mais complicada. Por vezes, como uma idéia boa, pareceu-lhe muito mais agradável o deixar à moça a iniciativa dos primeiros passos. Assim era muito melhor! Quando estava só, lá no quarto, todo entregue a este escaldar de desejos, mordendo os travesseiros nuns paroxismos de paixões, sonhava o vê-la chegar de repente e entregar-se a ele cheia de súplicas, pedindo-lhe que a não fizesse mais sofrer, que a tomasse já e já. Ele então mostrar-se-ia bondoso e complacente, como um José que, depois de pequena resistência, acaba cedendo porque tem amor à roupa e não quer deixar a túnica nas mãos da mulher de Putifar. Assim, sim! E ele queria este desenlace como o mais cômodo e o menos trabalhoso, como a solução mais fácil àquele paroxismo de desejos em que viviam os dois. Havia de obrigá-la a isto, a vir-se-lhe entregar! E para determiná-la a tanto, para conseguir tudo isto procurava fazer-lhe brotar no crânio uns ciúmes fortes e veementes.