O Homem/I

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Madalena, ou simplesmente Magdá, como em família tratavam a filha do Sr. Conselheiro Pinto Marques, estava, havia duas horas, estendida num divã do salão de seu pai, toda vestida de preto, sozinha, muito aborrecida, a cismar em coisa nenhuma; a cabeça apoiada em um dos braços, cujo cotovelo ficava numa almofada de cetim branco bordada a ouro; e a seus pés, esquecido sobre um tapete de pelos de urso da Sibéria, um livro que ela tentara ler e sem dúvida lhe tinha escapado das mãos insensivelmente.

No entanto, não havia ainda um mês que chegara da Europa, depois de um longo passeio que o pai fizera com sacrifício, para ver se lhe obtinha melhoras de saúde.

Melhoras! Que esperança! - Magdá voltou no estado em que partiu, se é que não voltou mais nervosa e impertinente. O Conselheiro, coitado, desfazia-se em esforços por tirá-la daquela prostação, mas era tudo inútil: de dia para dia, a pobre moça tornara-se mais melancólica, mais insociável, mais amiga de estar só. Era preciso fazer milagres para distraí-la um segundo; era preciso de cada vez inventar um novo engodo para obter que ela comesse alguma coisa . Estava já muito magra, muito pálida, com grandes olheiras cor de saudade; nem parecia a mesma. Mas, ainda assim, era bonita.

Morava com o pai e mais uma tia velha chamada Camila numa boa casa na praia de Botafogo. Prédio talvez um pouco antigo, porém limpo; desde o portão da chácara pressentia-se logo que ali habitava gente fina e de gosto bem educado; atravessando-se o jardim por entre a simetria dos canteiros e limosas estátuas cobertas de verdura, e enormes vasos de tinhorões e begônias do Amazonas, e bolhas de vidro de várias cores com pedestal de ferro fosco, e lampiões de três globos que surgiam de pequeninos grupos de palmeiras sem tronco, e bancos de madeira rústica, e tambores de faiança azul-nanquim, alcançava-se uma vistosa escadaria de granito, cujo patamar guarneciam duas grandes águias de bronze polido, com as asas em meio descanso, espalmando as nodosas garras sobre colunatas de pedra branca. Na sala de entrada, por entre muitos objetos de arte, notava-se, mesmo de passagem, meia dúzia de telas originais; umas em cavaletes, outras suspensas contra a parede por grossos cordões de seda frouxa; e, afastando o soberbo reposteiro de reps verde que havia na porta do fundo, penetrava-se imediatamente no principal salão da casa.

O salão era magnífico. Paredes forradas por austera tapeçaria de linho inglês cor de cobre e guarnecida por legítimos caquimanos, em que se destacavam grupos de chins em lutas fantásticas com dragões bordados a ouro; as figuras saltavam em relevo do fundo dos painéis e mostravam as suas caras túrgidas e bochechudas, com olhos de vidro, cabeleiras de cabelo natural e roupas de seda e pelúcia. Cobria o chão da sala um vasto tapete Pompadour, aveludado, cujo matiz, entre vermelho e roxo, afirmava admiravelmente com os tons quentes das paredes. Do meio do teto, onde se notava grande sobriedade de tintas e guarnições de estuque, descia um precioso lustre de porcelana de Saxe, sobrecarregado de anjinhos e flores coloridas e pássaros e borboletas, tudo disposto com muita arte numa complicadíssima combinação de grupos. Por baixo do lustre, uma otomana cor de pérola, em forma de círculo, tendo no centro uma jardineira de louça esmaltada onde se viam plantas naturais. A mobília era toda variada; não havia trastes semelhantes; tanto se encontravam móveis do último gosto, como peças antigas, de clássicos estilos consagrados pelo tempo. Da parede contrária à entrada dominava tudo isto um imenso espelho sem moldura, por debaixo do qual havia um consolo de ébano, com tampo de mármore e mosaicos de Florença, suportando um pêndulo e dois candelabros bizantinos; ao lado do consolo uma poltrona de laquê dourado com assento de palhinha e uma cadeira de espaldar, forrada de gorgorão branco listrado de veludo; logo adiante um divã com estofos trabalhados na Turquia.

Era neste divã que a filha do Sr. Conselheiro achava-se estendida havia duas horas, deixando-se roer pelos seus tédios, aos bocadinhos, com os olhos paralisados num ponto, que ela não via.

Foi interrompida pelo pai.

— Ah!

— Como passaste a noite, minha flor?

Magdá fez um gesto de desânimo, soerguendo-se na almofada de cetim, e tossiu. O Conselheiro assentou-se ao lado dela e tomou-lhe as mãos com fidalga meiguice.

— Preguiçosa!...

Um belo homem! Alto, bem apessoado, fibra seca, barba a Francisco I, toda branca, olhos ainda vivos e uma calva incompleta que lhe ia até ao meio da cabeça, dando-lhe ao rosto uma fina expressão inteligente e aristocrata.

Fora da marinha, mas aos trinta e cinco anos pedira a sua demissão, instalara-se no Rio de Janeiro, e casara, entregando-se desde essa época à política conservadora. Enviuvou pouco depois do nascimento de Magdá, único fruto do seu matrimônio; chamou então para junto de si a irmã, D. Camila, que vivia nesse tempo agregada à casa de outros parentes mais remotos; a filha foi entregue a uma ama até chegar à idade de entrar como pensionista num colégio de irmãs de caridade.

Era a essa infeliz criança, tão cedo privada do amor de mãe, que o conselheiro dedicava a maior parte dos seus afetos, e era também das suas mãos pequeninas que recebia coragem para enfrentar os desconsolos da viuvez e as neves, que ia encontrando do meio para o resto do caminho da vida. E era ainda essa criança, já mulher, que o desgraçado via agora escapar-lhe dos braços e fugir-lhe para a morte, arrastando atrás de si um triste sudário de mágoas brancas, mágoas de donzela, mágoas flutuantes, que pareciam feitas de espuma, e contra as quais no entanto se despedaçavam todo o seu valor de homem e todas as forças do seu coração de pai.

Coitadinha! Havia dois anos que se achava nesse estado. Pode-se todavia afirmar que começara a sofrer deste a fatal ocasião em que a convenceram da impossibilidade do seu casamento com Fernando.

Que romance!

Fernando fora o seu companheiro de infância, o seu amigo; cresceram juntos. Quando ela nasceu, encontrou-o já em casa do pai com cinco anos de idade, e desde muito cedo habituaram-se ambos à idéia de que nunca pertenceriam senão um ao outro.

Segundo o que sabia, toda a gente, este Fernando era um afilhado, que o Sr. Conselheiro adotara por compaixão e a quem mandara instruir; o certo é que o estimava muito e não menos verdade era que o rapaz merecia esta estima; dera sempre boas contas de si, e desde o colégio já se adivinhava nele um homem útil e honrado. Um belo dia, porém, quando andava no penúltimo ano de medicina, o padrinho chamou-o ao seu gabinete e disse-lhe que, de algum tempo àquela parte, observava-lhe com referência a Magdá uma certa ternura, que não lhe parecia inspirada só pela amizade.

Fernando sorriu-lhe e fez-se um pouco vermelho.

— Com efeito, confessou, havia já bastante tempo que sentia pela filha do seu padrinho muito mais do que simples amizade. E toda a sua ambição, todo o seu desejo, era vir a desposá-la logo que se formasse; tanto assim, que tencionava, mal concluísse os estudos, pedi-la em casamento.

— Isto é impossível!

— Impossível? interrogou o rapaz erguendo os olhos para o Conselheiro. — Impossível, como?

O velho fez um gesto de resignação e acrescentou em voz sumida:

— Magdá é tua irmã.

— Minha irmã...?

Houve um constrangimento entre os dois. No fim de alguns segundos, o Conselheiro declarou que não tencionava fazer tão cedo semelhante revelação, e que nem a faria se a isso o não obrigassem as circunstâncias.

Fernando estava abismado. Sua irmã. Visto isto - toda essa história, que ele conhecia desde pequeno; essa história, em que figurava como filho de um pobre marinheiro viúvo, falecido a bordo, era...

— Uma fábula, concluiu o pai de Magdá, sempre de olhos baixos. — Inventei-a para esconder a minha culpa.

O moço teve um ar de censura.

— Bem sei que fiz mal, prosseguiu o velho, hesitando em levantar a cabeça. — Mas não podia declarar-me teu pai sem prejuízo de tua parte e sem enxovalhar a memória daquela que te deu o ser. Era casada com outro e tu nasceste ainda em vida de minha mulher. O marido de tua mãe estava ausente quando vieste ao mundo; ignorou sempre a tua existência, e enviuvou quando tinhas apenas dois anos de idade. Eu então carreguei contigo para casa, inventei o que até aqui supunhas verdade e nunca mais te abandonei.

Fernando deixou-se cair numa cadeira. O pai continuou, aproximando-se mais, e falando-lhe em surdina:

— Minha intenção era esconder esse segredo até no dia em que depois de minha morte, viesses a saber que estavas perfilado por mim e contemplado nas minhas disposições testamentárias; mas - o homem põe e Deus dispõe - para meu castigo, quis a fatalidade que te agradasses de tua irmã e, como bem vês, só me restava agora confessar francamente a situação. Ficas, por conseguinte, prevenido de que, de hoje em diante, deves empregar todos os meios para afastar do espírito de Magdá qualquer esperança de casamento, que ela por ventura mantenha a teu respeito...

Fernando declarou que preferia desaparecer dali. Partiria no primeiro vapor que encontrasse.

Não! isso seria loucura! Ele estava bem encaminhado e pouco lhe faltava para terminar a carreira... Que se formasse e partiria depois.

— Olha, concluiu o velho, passado um instante - caso prefiras estudar ainda um pouco na Europa, vê o lugar que te serve e conta comigo. Não sou rico, mas também não és extravagante; apenas o que te peço é que, de modo algum, reveles a tua irmã o que acabas de saber. Será talvez uma questão de temperamento, mas creio que morreria se o fizesse.

Quando o Conselheiro terminou, Fernando chorava.

— E o marido de minha mãe? perguntou.

— Há dez anos que morreu; não deixou parentes.

E o pai de Magdá, vendo que o filho parecia sucumbido, passou-lhe o braço nas costas: — Então! vamos, nada de fraquezas! um abraço! e que esta conversa fique aqui entre nós dois.

O rapaz prometeu e jurou que ninguém, e muito menos Magdá, ouviria de sua boca uma só palavra sobre aquele assunto. O velho agradeceu o protesto com um aperto de mão; e ficaram ainda alguns momentos estreitados um contra o outro, até que o Conselheiro se retirou, a limpar os olhos, e o rapaz caiu de novo na cadeira, dobrando os cotovelos sobre uma mesa e escondendo no lenço os seus soluços, que agora lhe rebentavam desesperadamente.

Foi Magdá quem veio despertá-lo dali a meia hora, depois de o haver procurado embalde por toda a casa.

— Ora, muito obrigado... ia dizer, mas deteve-se, intimidada pela expressão que lhe notara na fisionomia. — Que era aquilo?... Ele estava chorando?...

— Ó senhores! Hoje nesta casa estão todos amuados! Ao outro encontro chorando, que nem um bebê; este diz-me que não está bom e que eu entretenha-me com a tia Camila! Ora já se viu!

O pai afagou-lhe a cabeça. — Esta tolinha!...

— Mas, papai, que tem o Fernando?

— Não sei, minha filha.

— Diz que um amigo dele está muito mal...

— Pois aí tens...

— E você, papai, por que está triste?— Não estou triste, apenas preocupado. Não é nada contigo. Política, sabes? Mas vai, vai lá para dentro, que tenho que fazer agora.

— Política!...

Magdá afastou-se, meio enfiada, mas daí a pouco se lhe ouviram os gorgeios do riso nos aposentos da tia Camila.

Já lá estava o demoninho a bolir com a pobre da velha!