O Inferno (Auguste Callet)/Appendice/III

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CAPITULO TERCEIRO

 
DA DESCIDA DE CHRISTO AOS INFERNOS
 

Descendit ad Inferos; tertià die resurrexit à mortuis; ascendit ad c[oe]los, sedet ad dexteram Patris, indè venturus est judicare vivos et mortuos.

Credo in Spiritum sanctum, in sanctam Ecclesiam catholicam et apostolicam, in communionem sanctorum, in remissionem peccatorum, carnis ressurrectionem et vitam æternam. Amen.

(Symb. apostolorum).

I

O Filho do homem, expedindo sobre a cruz sua vida mortal, desceu aos infernos. Não é o Evangelho que o refere; é um documento não menos venerado, o qual, com o Pater e Ave, é parte das orações que a Egreja ensina aos seus filhos: documento, ao que parece, anterior á redacção dos Evangelhos e resumo da fé apostolica: é o Credo.[1]

Jesus morto vai annunciar aos mortos a boa nova: Satanaz vencido, os peccadores resgatados, o céo aberto aos que oram, aos que choram, aos que soffrem. Para estes exclusivamente é que seu sangue aspergiu o chão do calvario. Jesus não dispensa da penitencia os que morreram culpados; mas dá-lhes a esperança que as antigas crenças deixavam luzir na terra sómente, e apagavam no tumulo.

Sei de sobra que os theologos querem que o inferno, visitado por Christo, não seja o verdadeiro inferno; mas sim o limbo, o purgatorio, os seis primeiros circulos da Géhenna, e não o ultimo. Esta distincção, porém, não está no Credo. O inferno ahi diz-se com todas as letras, e, mais pelo claro, os infernos, como quem indistinctamente diz todos os logares de soffrimento onde podem penar os mortos.

«Desceu aos infernos, diz o Credo, e ao terceiro dia resurgiu dos mortos.»

Quem eram esses mortos com quem Jesus passou trez dias? A interpretação natural é — todos os homens que, desde o principio do mundo, haviam desparecido de sobre a terra; não só patriarchas e prophetas, senão todos os judeus; não só todos os judeus, mas todos os gentios. Eis aqui, entendidas ao natural, o que dizem as palavras: «Desceu aos infernos, e habitou trez dias com os mortos.» Quereis dar áquellas palavras uma accepção espiritual? Temos ainda mais. luz na questão. Os mortos espirituaes são os condemnados, os que eram considerados em perpetua privação dos resplendores eternos. Não são os prophetas, os patriarchas, os eleitos, os santos, nem ainda alguns d'esses que por peccados haviam merecido as penas temporarias, por que não estavam espiritualmente mas só carnalmente mortos, crendo, esperando, amando, vivendo. Seja qual for a interpretação adoptada, leva-nos a concluir o inverso do que os theologos affirmam. Do citado trecho do Credo colhe-se que Jesus desceu, não só ao limbo, mas tambem ao inferno, não só aos patriarchas que esperavam sua vinda, — explicação acanhada e violenta dos hebreus conversos e dos christãos judaisantes — mas aos mortos de todos os tempos e paizes, aos peccadores que a lei antiga e antigas crenças haviam ferido de morte espiritual, eterna, incuravel, da verdadeira morte. O Redemptor, o Crucificado, o Messias visitou-os, mostrou-se-lhes, e elles rejubilaram ao verem-no e choraram lagrimas d'amor d'aquelles olhos aridos. Jesus não destruiu o inferno; converteu-o em purgatorio. Do inferno judaico e gentilico fez o inferno christão, inferno que corrige, inferno onde ha o chorar sem blasphemar, onde ha o soffrer sem desesperança nem rancores.

Outras luzes póde dar o symbolo dos apostolos ás almas piedosas. Mais abaixo, diz: «Creio na vida eterna» mas não diz: «Creio na morte eterna.» Este horrivel dogma não se lê no credo apostolico. Se ahi se falla em infernos é para nos ensinar que Jesus Christo lá foi, e de lá sahiu, mas como devia sahir, vivo, glorioso, triumphante e bemdito.

Diz finalmente o Credo que Christo subiu ao céo, onde está sentado á dextra do Padre, d'onde virá a julgar vivos e mortos.

Quaes vivos? os justos? Quaes mortos? os peccadores, os ultimos povoadores da terra e os antigos habitantes d'aquellas tenebrosas mansões onde a esperança radiou com o Christo quando tudo foi consummado na Cruz? Não é possivel que uma só palavra tenha dois sentidos com tão breve intervallo. Quereis que os mortos d'entre os quaes resurgiu ao fim do terceiro dia sejam os antigos reprobos? Tambem eu quero. Quereis antes inferir de taes palavras que os nossos avós judeus e os pagãos, quantos então eram mortos, viveriam, n'outra parte, jubilosos ou suppliciados? Tambem eu quero. Adoptai um sentido, ou outro, ou ambos juntamente, que a mim não se me dá d'isso. O que ha de sempre forçosamente reconhecer-se é que a phrase representa a mesma idêa significada uma ou duas linhas abaixo. Será, conseguintemente, preciso confessar que os mortos visitados por Christo são os mesmos que elle virá julgar quando julgar os vivos. Direi pois logo que na descida aos infernos, Jesus morou trez dias não entre os justos esperançados, mas entre os condemnados á desesperação para os ungir de seu sangue, consolal-os e salval-os. E, senão, para que os visitou?

Faz-se mister prescindir de entender qualquer palavra divina ou humana, se do Credo se colhe o dogma das penas eternas. Não está lá: o contrario é que está. O veneravel texto é mil vezes mais luminoso que todas as glosas dos doutores.

II

Viveu Origenes quasi coevo dos tempos apostolicos. Toda a gente ouviu fallar da santidade de seu viver, pureza de costumes, alento nas perseguições, vasta sabedoria e raro engenho. Pois ainda assim, aquelle insigne doutor, e illustre confessor de Christo, negava as penas eternas. Acaso receberia elle a verdadeira tradição dos apostolos, ou, á força de reflectir, atinára com a genuina accepção do Evangelho? Não sei. Todavia confesso envergonhadamente que ainda não li as poucas obras restantes que tão assignalado sujeito escreveu sobre tal materia. O que mais sei é que foi condemnado, muito tempo depois que morreu, por um edito do imperador Justiniano, e anathematisado, com a porção da obra relativa ás penas eternas, por o concilio ecumenico de Constantinopla, anno 553.[2] Não se deram os bispos á canceira de provar que elle era ruim logico; declararam-o herege, que era mais summario, e por contagem de votos.

É muito para notar que o primeiro concilio ecumenico de Nicea, anno 325, e o segundo de Constantinopla, anno 381, se abstivessem de decidir sobre a doutrina de Origenes, ainda nova e florecentissima, e á conta d'isso mais funesta, se por ventura escondesse perigo. Divergiam sobre o assumpto as opiniões dos padres d'aquelle tempo? Recusariam não se conciliarem? A questão confundil-os-hia? Inclino-me a crer que sim. O mais notavel documento que os dois concilios nos deixaram, denota indecisão de natureza a um tempo estranha e evidentissima: é uma profissão de fé muito particularisada, a mesma que hoje se entôa aos domingos na missa cantada nas egrejas do oriente e occidente.

O concilio de Nicea, ao redigir o symbolo da sua fé, desenvolveu em certos pontos o symbolo dos apostolos; mas, quanto ao mais, abreviou aquelle antigo symbolo, e o que mais espanta é a suppressão completa do descendimento aos infernos.

O concilio de Constantinopla, adoptando o symbolo de Nicea, aperfeiçoou-o, e additou-lhe alguns artigos, mas não lhe repoz a descida aos infernos.

Que quer dizer esta eliminação? Desceu ou não desceu Christo aos infernos? Se desceu, por que o não dizem? Acham que é insignificante o caso? Não merecerá a pena relembral-o?

  1. Conta-se que os apostolos, antes de se apartarem para levar aos gentios a boa nova, trez annos pouco mais ou menos depois da morte do divino Mestre, se reuniram e compozeram o Credo, elenco das verdades cujo ensino lhes fôra confiado. O Evangelho ainda não corria escripto. Só depois da separação, é que foi composto o de S. Matheus, que antecede a todos. O symbolo da fé apostolica tambem não andava escripto; mas ensinava-se de cór aos fieis, e por isso longo tempo se conservou na Egreja, bem como a tradição egualmente oral da sua origem.
  2. No anno 321, Origenes foi denunciado ao Concilio de Alexandria, e interdicto do sacerdocio. S. Jeronymo attribue esta condemnação a ciumes e invejas que inspirava a eloquencia de Origenes aos Padres reunidos n'aquelle Concilio.