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O Inferno (Auguste Callet)/Appendice/II

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CAPITULO SEGUNDO

 
Resposta a uma objecção
 

Fallei da multidão dos condemnados, e tirei d'esse facto, contra a eternidade das penas, inferencia que me parece valiosa. É certo que a maioria dos homens seja condemnada? Os fieis, que estudaram este assumpto em livros modernamente escriptos, crêem que não, e vos dizem que os philosophos maliciosamente assacaram aquella opinião aos seus adversarios para os tornar odiosos. Não duvidam que ha inferno; não os inquieta a natureza do supplicio, mas sim a quantidade dos suppliciados. Mil, cem mil, um milhão d'almas a padecerem eternamente parece-lhes coisa muito de crêr-se, moralissima, certissima. Não póde suppôr-se que o inferno esteja vasio; aliás melhor seria supprimil-o. Um milhão ou alguns milhões d'almas, se Deus as abandona, tambem ellas abandonam a Deus; é bastante para exemplo, é bastante para justiça; porém metade do genero humano e mais de metade, é excesso, é monstruoso: não se crê. Não é isso, quer-nos parecer, a boa nova que celebraram ha mil e oito centos annos os magos e os pastores nos caminhos de Bethelem. Mas os velhos dogmas de Israel por tal arte andam baralhados com as verdades christãs, e tanto a primitiva Egreja com elles se identificou formando um corpo doutrinal, que um homem instruido não póde hoje, sem risco de heresia, tentar separal-as.

Sem embargo, opera-se no seio do christianismo um singular trabalho, de que o clero não dá tento, bem que a iniciativa de ha muito proceda d'elle mesmo. Este trabalho de que as obras de Sanchez, de Escobar, do padre Annat, do padre Lémoine, e d'outros casuistas, tão agramente invectivados por Pascal, eram apenas indicios, tende a neutralisar cada vez mais a acção n'outro tempo tão vigorosa dos elementos hebraicos do christianimo. Sentimentos, que debalde quereriamos suffocar, rompem á luz; o coração reclama, bem que timidamente, seus direitos; a consciencia, constrangida debaixo do pezo de abafadoras tradições, não repulsa, mas a tremer levanta do peito o fardo, como para respirar. Verdade é que ainda nos pregam os velhos mysterios da synagoga; mas, ao mesmo tempo, cuidam em dissimular-lhes as consesequencias logicas relativas á vida futura, e — notabilissimo caso! — não insistem nas consequencias praticas, no tocante á vida presente. Este ultimo facto, muito significativo, provém dos casuistas. Foram elles quem primeiro quiz achanar aos homens a estrada do céo. Como não soubessem conciliar as necessidades da vida terrestre com as da fé, e não ousassem embarrar pelo inferno, com medo de torriscar os dedos, derruiram audazmente a moral. Graças lhes sejam dadas, que isto de peccados mortaes está por um fio! O assassino, mal lavou as mãos, e o perjuro mal lavou a lingua, são admittidos ao sagrado banquete, O pulpito continua a fuzilar trovoadas minacissimas; é ainda Isaias e S. Paulo a bradarem; mas, no tribunal da penitencia, os coriscos apagam-se; quem confessa é o tolerante padre Lémoine, que perfeitamente percebe que uma duqueza, uma capitalista, uma burgueza opulenta não podem viver de favas, nem trajar de serguilha, nem dormir no taboado, nem imitar sequer de longe a perfeição negativa das santas reclusas, cujas virtudes andam celebradas nos pulpitos. Descobrir, porém, no complexo dos actos dos homens, o limite exacto do dever, isso é desvario: ou prohibir, ou permittir tudo quando se renuncia e dirigir verdadeiramente as peccadoras mundanas para o antigo ideal da abstinencia ascetica. O theatro, o baile, os hombros nús, a maledicencia, as prodigalidades do luxo, a parcimonia das esmolas, a lisonja, a ambição, a cupidez, a ingratidão, as desavenças, tudo passa, tudo é venial, nada impede da desobriga. Nem o juiz nem o penitente conhecem regra. O mais virtuoso e austero padre póde ser integerrimo no pulpito; mas, no confessionario, treme, receia afugentar a alma que o procura; lembra-lhe o Bom Pastor, o céo promettido ao ladrão que se accusa, o perdão da adultera, e involuntariamente contribue a facilitar as quedas, e as reincidencias, facilitando a expiação. Pois os primitivos christãos não tinham ouvido fallar do bom ladrão, e da mulher adultera, e da parabola do Bom Pastor? Comparem com a disciplina de hoje a de então que eu já referi. Se o padre Lémoine lesse nas catacumbas um capitulo da Devoção commoda, o congresso de fieis e martyres surgiria em pezo contra tal innovador, e o bispo excommungal-o-hia. Tenho minhas duvidas que o proprio S. Francisco de Salles o tractasse bem. É que os primitivos christãos nunca perdiam d'olho Satanaz, peccado original, inferno, e conformavam o seu procedimento, não a tal artigo de fé ageitada a dar alentos á esperança, mas ao complexo tremendo da doutrina que aprendiam.

A harmonia que primordialmente se deu entre a disciplina da Egreja e as crenças da Egreja, está por tanto desde muito desacorde. Port-Royal tentou afinal-a. Foi esse o segredo da sua lucta com os casuistas mas os casuistas venceram. A contenda acabou.

Meditemos agora nas consequencias logicas dos nossos dogmas, relativos á outra vida, dos esforços que debalde se envidam para lhes amaciar as asperezas e edulcorar-lhes o travor, com medo de que lhes não atirem fóra copo e remedio.

Em louvor dos theologos modernos, declaro que poucos ha que possam encarar impassiveis a multidão de pagãos e hereges que regorgita do inferno — multidão que sem intercadencia augmenta com muitos milhares d'almas cada dia, muitos milhares cada anno. Elles, pois, escondem as vinganças divinas, em vez de nol-as mostrarem, no seu trilho aterrador á maneira dos antigos. Quando cuidam em nos animar, tambem elles se animam em seus proprios quebrantamentos, sentindo que a piedade desborda e arrasta a fé; e não só a piedade, mas tambem a justiça.

S. Thomaz de Aquino, incapaz de ceder unicamente á piedade, estacou diante d'esse problema de justiça, e diligenciou, a seu modo, resolvêl-o, por feição que podesse, sem offensa da fé, contemporisar com a sua razão.

Imaginou um justo fóra da Egreja, ignorando as verdades salvadoras, e predestinado ao inferno por culpa de sua ignorancia. Ora um anjo celestial, quando este justo agonisava, desceu a revelar-lhe a verdade, dando-lhe assim entrada na Egreja por uma porta falsa, e mantendo por este theor milagrosamente a inteireza dos dogmas. Pouco importava a S. Thomaz, tão grande e inflexivel logico, salvar as regras explicitamente formuladas pelos concilios; e, se taes regras podiam ferir a justiça, lá estavam os anjos para concilial-as. O que elle queria era salvar os gentios.

Mas, hoje em dia, os theologos avantajam-se a S. Thomaz. Já não ha recorrer a milagre. Dizem que, se entre infieis, e até entre os hereticos, ha pessoas honestas, Deus bem as vê: essas pertencem á Egreja, não corporal, mas espiritualmente; creem implicitamente as verdades que ignoram, e basta isso: são catholicos lá do seu feitio. É pois prohibido condemnar a esmo gentios e hereges, cegos innocentes, virtuosos transviados, erros invenciveis[1]. Já se diz que ninguem é condemnado, tirante os máos, qualquer que seja a religião que professem.

Bella é a linguagem, mas tambem é evidentemente illusoria; por onde vamos vêr que tal piedade, bem que sincera, não póde aproveitar a alguem. Vós não condemnais todos os gentios nem todos os hereges; é verdade. Os dogmas que nos ensinais é que os condemnam. Ora, se, acaso, os cinco dogmas tirados do judaismo fossem falsos, bem sabemos que não estava em vossa alçada condemnar, ainda que o quizesseis, um só idolatra, por peor que houvesse sido; mas, ao invez, se taes dogmas são verdadeiros, tambem sabemos que não cabe em vossa alçada salvar um só gentio nem um só herege, ainda que o quizesseis. Mais: em virtude de taes dogmas, é de fé que o homem nasce máo, e que o crime que lhe mancha o berço, explica, mas não lhe justifica os erros da vida. Irroga-se culpa a quem se liga á religião de sua familia e patria, quando tal religião não é a genuina. Se assim não fosse, vêde bem que melhor seria ter nascido sarraceno que catholico; que um turco salvar-se-hia procurando de boa fé, como os patriarchas, prazeres que a nós nos perdem para sempre; e o maximo das bençãos seria nascer e morrer selvagem, n'alguma ilha incognita, longe dos formidaveis clarões que nos privam de desculpar com a ignorancia os nossos peccados. Fossem embora salvas alguns milhares de creaturas apenas entre os billiões d'ellas que morrem em peccado original, uma duzia só que fosse, seria que farte para argumentar que ha salvação fóra da Egreja, e sem algum dos soccorros extraordinarios de que ella dispõe. Estes theologos tolerantes não reparam que inutilisam a revelação, que despojam a Egreja das chaves do céo, ou, pelo menos, indiciam que ha chaves em duplicado para lá entrar, e que judeu, musulmano, lutherano, philosopho, todo homem honrado tem uma chave. A opinião assim pelo claro não ousariam elles exhibil-a, e, a bem dizer, tudo aquillo não é opinião sua; é, melhor ainda, expansão de alma que aspira á verdade e justiça; é protesto da humanidade christã contra o judaismo, protesto mais revelante por não ser voluntario, nem saber-se a si mesmo comprehender. O raciocinio não é o essencial do protesto, como em S. Thomaz d'Aquino; quasi que não é parte em taes discursos, pois que os discursadores não concluem como deviam, se raciocinam; e não podem fundamentar a sua argumentação sobre ensino authentico da egreja[2]. É mister, por desgraça, renunciar á orthodoxia ou condemnar despiedosamente mais de tres quartos do genero humano. O justo, estranho á Egreja, a quem nos prohibem de offerecer a mão, não existe aos olhos da fé: é um phantasma que avulta á vossa piedade. Se ha ignorancia involuntaria e invencivel, não é a do idiota? Ora ahi está! o idiota, o cretino, o aborto sem olhos nem ouvidos peccaram no ventre materno, peccaram mortalmente, e só pelo baptismo conseguirão justificar-se. Como é então que ha de subtrahir-se ás tentações e ás sincadilhas de que tanto a custo se escapam os filhos da Egreja, um ente egualmente viciado em sua natureza, mas mais livre, se envelheceu sem revelação e sacramentos? Onde ganhará elle amor ao bem e vigor para pratical-o? Tal hypothese é heresia por atacado; só poderemos aceital-a como excepção milagrosa; e, n'essa qualidade, não vingaria dulcificar o sentir que esperta em nossa alma o perpetuo inferno, onde, ha seis mil annos, se vão acamando as gerações humanas.


  1. Veja entre outras obras os Estudos a respeito do Christianismo por Nicolas, tom. III, c. 14. Este livro foi approvado, louvado e recommendado pela auctoridade ecclesiastica, e nomeadamente por Mons. Cardeal Donnet, Arceb. de Bordeaux. O padre Lacordaire protegeu-o assignaladamente, considerando-o a mais completa e melhor apologia da fé catholica.
  2. Este ensino multiplicou-se com diversos aspectos: peccado original; necessidade do baptismo; ha uma só fé e um só baptismo; fóra da egreja não ha salvação; necessidade dos sacramentos da penitencia, de confirmação, etc., como auxiliares de nossas enfermidades, depois do baptismo, necessidade e conjunctamente insufficiencia da prégação e da leitura; inefficacia das boas obras sem os sacramentos; manhas e poderio de Satan; impossibilidade de viver e morrer em estado de graça fóra da Egreja que é a dispenseira das graças, etc., etc. Encheriam um volume os decretos, promulgados áquelle intento, e os anathemas fulminados contra quem houvesse dito ou viesse a dizer o contrario d'esses decretos.