O Inferno (Auguste Callet)/Appendice/I

Wikisource, a biblioteca livre
APPENDICE

CAPITULO PRIMEIRO

 
PROVAS MYSTICAS DO INFERNO
 

I

Da auctoridade da Biblia
 

Ninguem nega que a Biblia contém brilhantes verdades; mas essas brilhantes verdades não nos encantam por estarem na Biblia; em qualquer parte onde as vissemos, as amariamos por seu natural resplendor. Da natureza d'ellas, as encontrais nos escriptos dos antigos sabios. São taes verdades como a noiva dos Cantares: a sua belleza é toda sua, e não reflexa, e todo seu imperio lhes promana da formosura.

Porém, a Biblia tambem encerra pensamentos que, pomposamente vestidos, nos tocam o espirito por inverso modo. Quanto mais os examinamos tanto mais os regeitamos. Afóra a visinhança, nada tem commum com as sympathicas verdades, entre as quaes se nos deparam. É-nos, todavia, prohibido de as distinguir, e confiar em uns com desconfiança d'outros; dizem-nos que tudo é verdadeiro, e verdadeiro com o mesmissimo titulo, não porque sejam umas cousas mais ou menos persuasivas que outras, mas porque se acham escriptas n'aquelle livro.

Dispensam-nos de procurar na Biblia o cunho interior que Deus gravou na verdade para que a reconheçamos. Caracteres naturaes e distinctivos do erro podem guiar-nos em tudo; mas na Biblia não. N'outros livros é facultativo discernir o justo do injusto; para o quê temos regras certissimas, e instrumentos agudissimos; mas é peccado querer julgar a Biblia. Cumpre-nos, lendo-a, desconfiar do nosso coração, do nosso espirito, de tudo, salvo d'ella. Assiste-nos o direito de dizer, como Platão que Homero ultraja a divina magestade, quando mistura o Olympo com as paixões humanas; porém, quando a Biblia glorifica a perfidia de Jahel, e a cavillação de Judith, e o roubo e carnificina dos chananeos, e faz collaborar Deus em tantas traições e morticinios, não nos é permittido o duvidar. Se Isaias nos figura o Salvador de Israel calcando o povo como o vinhateiro esmaga a uva no lagar, foliando sobre elle e sacudindo com selvagem alegria os seus vestidos aspergidos de sangue, não seu, mas dos homens, devemos dizer: Amen! eis aqui o bom pastor, o cordeiro de Deus, a mansa victima do Calvario, o Christo na sua gloria! E quando o psalmista comparar o Senhor a um homem embriagado do vinho que lhe redobra as forças e lhe faz expedir pavorosos gritos, devemos sem escrupulo responder: Assim seja! Claro é que nenhum de nós quereria similhar-se ao vindimador sanguinolento nem ao guerreiro ebrio; ninguem ousaria assim fallar de Atila recolhido á tenda, com receio de ser ouvido; mas similhantes confrontos que envileceriam Jupiter e offenderiam o rei dos hunos, prodigalisal-os-hemos ao nosso Deus, em seu templo, attendendo a que os prophetas sabiam melhor do que nós quaes são os elogios que lhe prazem. Taes sujeitos nada diziam do seu chefe: tudo que escreviam era o espirito santo que lh'o ditava, desde os successos até ás expressões significativas d'elles. Ora ahi está por que tudo é sagrado quanto a Biblia contém, e por que tal pensamento, que n'outro livro trescalaria a impiedade, é, na Biblia, uma adoravel coisa. Ha n'isso mysterio não menos profundo que o do inferno, se tentarmos esclarecel-o; e tal mysterio, com que se quer demonstrar outro, promove discussões que o catholicismo impugnou sempre, servindo-se d'isso como arma contra os protestantes.

O catholicismo diz aos protestantes: Como sabeis que a Biblia é divina? Conhecestes Moysés? Quando Deus lhe fallou do cimo da montanha, estaveis presente? Passastes a pé enxuto o mar vermelho, ou bebestes agua da rocha de Horeb? Quem vos affirmou que aquelle homem era propheta? Que provas vedes na Biblia de que não é toda ella obra de homens? Milagres? Outros livros os contam, e vos fazem rir. Verdades? Outros livros as encerram sem que as imputeis ao Espirito Santo. Obscuridades? Coisa naturalissima, sendo tantas em todos os auctores, e nos vossos não menos. Quem sois vós, para que vos acreditemos, quando nos affirmaes inverosimilhanças? Não vos conhecemos. Que caução nos dais? Sois inspirados? Fazeis milagres? Vejamol-os. Não basta dizer: a Biblia é divina; é mister proval-o irrefutavelmente. O numero dos vossos partidarios não faz nada á questão. O livro dos Vedas, que se gosa do foro de divino na Asia, é tão antigo como a Biblia, e não tem menos sequazes. Se a Deus aprouvesse, communicar-se aos homens por meios naturaes, como dizeis, fal-o-hia por lances de bondade, com o fim de os unir, como filhos do mesmo pae, por que, a par e passo que melhor se conhece Deus, mais se conhecem a caridade e justiça. Como é pois que tantas nações, presumindo possuirem taes oraculos, em vez de viverem unidas, luctam discordes, erigindo altar contra altar, injuriando-se, perseguindo-se, e votando-se reciprocamente ás chammas eternas! O que as divide é as obscuridades da Biblia; não é as verdades naturaes que lá se vos deparam. Quem alumiará a escureza em que dizeis está Deus involto, e no seio da qual os homens se dilaceram, desprezando naturaes e luminosissimas verdades? Os judeus entendem as prophecias diversamente do vosso parecer; e, tão de boa fé as interpretam, que sustentam a sua opinião em desterros, carceres, fogueiras, durante seculos, fugindo, e deixando rasto de sangue por toda a parte do mundo. Qual seita protestante não arrancou da espada contra a sua irmã? Todas tem tido martyres e verdugos. Isso não nos parece prova da divindade da Biblia. Nem sequer lhe podereis provar a authenticidade. Os originaes d'esse livro miraculoso onde param? Perderam-se, comeu-os a traça, como succede por tempo a tudo que é obra de homens. Porção consideravel d'esse antigo monumento acabou ás mãos dos hebreus, depositarios d'elle. O que nos resta são reliquias. Se capitulos inteiros, de que apenas sabemos os titulos, já não existem, quem vos auctorisa a pensar que os capitulos subsistentes não foram alterados? Estariam elles a melhor resguardo? Por quem? Por que? E como? Quem os copiou? Quem os traduziu? Quem abona a fidelidade de tantos copistas, e a intelligencia e sciencia dos traductores? Por que signaes se conhece qual é a melhor entre as copias antigas, e entre as differentes copias antigas? Em qual traducção confiaremos entre tantas diversas? Reportar-nos-hemos ao livreiro, ao impressor, ou ao editor? A quem? A mortos desconhecidos, a vivos ignorantes, ou a sabios sem missão e cuja sciencia nos é ainda problematica? Pois que venha ahi quem quizer, e mostrando um papel rabiscado exclame: eis-aqui a palavra de Deus! E sem mais nem menos ponha-se a gente de joelhos! Á vista d'isso ninguem póde ser accusado de idolatria. Se não tendes á mão outras provas da authenticidade e divindade da Biblia, todo o homem cordato regeitará a Biblia, sem salvar o Novo Testamento. O christianismo foi prégado antes da redacção dos evangelhos, ás multidões que não sabiam ler. Quando essas prégações começaram a correr escriptas, os evangelhos eram aos cardumes; appareceram logo cincoenta attribuidos aos apostolos e aos discipulos de Jesus.

Quem se entenderia n'este cháos? Quem poderia decidir que o evangelho de Thiago não era de Thiago, e que o evangelho de João era de João? Quem poderia discriminar entre o verdadeiro e o falso? Entre o de Deus e o dos homens? Quem poderia discernir e acreditar a boa copia entre as copias falsificadas de João? A coisa não era de si tão luminosa que podessemos aceital-a hoje em dia.

No quarto seculo, bem perto dos tempos apostolicos, esta questão enleava gravissimos doutores, um dos quaes, testemunha de taes incertezas, Santo Agostinho, dizia que elle sem o testemunho da Egreja não prestaria fé ao verdadeiro evangelho. Não achava elle portanto nos escriptos de João, de Lucas, de Marcos, de Matheus e de Paulo a prova intrinseca da sua divindade; com mais forte razão não acharia a mesma prova intrinseca nos escriptos de Moysés, de Samuel, de Esdras e outros prophetas.

Se eu não debilitei, resumindo-as, as razões com que os catholicos intentam reconduzir ao seu gremio as seitas dissidentes, expuz tudo o que tinha a expor sobre a primeira prova mystica do inferno, extrahida das Escripturas. Passemos á segunda prova que é o testemunho da Egreja.

II

Da auctoridade da Egreja
 

Diz-nos a Egreja catholica que é preciso crêr o que ella nos ensina como se Deus nos fallasse. Quando nos annuncia que todos nós peccamos antes de nascer, e que a Virgem, mãe de Christo, nasceu sem peccado — o que se não acha no evangelho — devemos acredital-o como se o evangelho o dissesse. A Egreja supre o silencio das escripturas, interpreta os textos, umas vezes prende-se á letra, outras descobre um entendimento occulto que só ella vê, o unico verdadeiro. Como possue, com a Biblia, a tradição oral dos patriarchas, dos prophetas e dos apostolos, a nova synagoga continúa no tempo e no espaço a immortal cadêa, guardando, diz ella, o dom de prophecia e o dom dos milagres.

A Egreja catholica é mais que a imagem de Jesus Christo: está consubstanciada n'elle como sua esposa. Testemunha do passado, luz do presente e do futuro, legislador infallivel, juiz sem appellação, devemos consideral-a sempre como viva incarnação do Verbo eterno. Seria a Biblia um livro duvidoso em seu texto, se ella não asseverasse a autenticidade d'elle, e duvidoso em seu espirito se não recebesse a missão de o explicar aos homens. De modo que toda a auctoridade n'este mundo, já a da razão, já a dos livros sagrados, sóme-se absorvida na soberana auctoridade d'ella.

Esta segunda prova do inferno é de natureza analoga á primeira: é mysterio. Exponho-o sem o discutir. Mas os protestantes discutem-no; negam-o, reprovam-o em nome dos prophetas e dos apostolos, e milhares e centenas de milhares d'elles affrontariam a fome, o frio, a penuria, o exilio, os carceres, a tortura ordinaria e extraordinaria, o poder de Cezar e toda a casta de supplicios, com o denodo dos primitivos martyres, antes de vergar o joelho ante a Egreja — o que elles qualificariam de idolatria. Não posso abster-me de relatar algumas de suas objecções, as quaes, bem que sejam forçadas sobrenaturalmente com versiculos do Apocalypse ou das Visões de Isaias, nem por isso me parecem menos debeis.

Temos, dizem, um facil meio de nos certificarmos da infallibilidade da Egreja. Perguntai-lhe o que deve fazer-se em frequentes circumstancias da vida, quando os mais doutos homens se bandeam em dous ou tres arraiaes, dizendo uns: deve fazer-se isto; não, — dizem outros — isso é pessimo — ; e os terceiros sustentam que não se deve fazer nada, ainda que a inacção pareça aos outros criminosa. Pelo facto de nos prohibirem actos manifestamente culposos aos olhos da razão, já prohibidos por lei natural, pelo decalogo e pelos philosophos, isso não convence que possuam luzes milagrosas para regerem almas. O que queremos é que nos guiem no lance em que os outros conductores nos abandonam, nos pontos em que elles se desavém, em que se calam; emfim, na conjunctura em que os homens tem grande interesse em conhecer a verdade que se lhes occulta. Venha a Egreja n'um d'estes casos. Não affrontemos com os casuistas multidão de problemas onde o nosso partido seria grande; busquemos antes, nas relações da vida civil, um só d'esses factos duvidosos, sobre os quaes a sabedoria humana está indecisa. Vá de exemplo o emprestar a juro, e exponhamos primeiro a questão muito pelo alto.

Deve emprestar um homem ao seu visinho, dinheiro ou qualquer outro valor, gratuitamente? É, pelo contrario, licito haver parte dos lucros da quantia cujo uso se permitte, por tempo marcado, ao visinho? Como principio, ninguem condemna o emprestimo gratuito, o qual, á maneira da esmola, é um acto de liberalidade muito para louvar-se, mas que seria nocivo, sendo praticado sem discernimento. Todavia, alguns philosophos, e modernamente alguns caudilhos das seitas communistas, defendem que o emprestimo gratuito é o unico bem consoante á equidade natural, e que a minima usura é roubo. Estes philosophos tem sido arregimentados na peor especie de utopistas. Toda a gente sisuda recusa considerar a gratuidade do emprestimo como obrigação moral. Tal preceito usurparia á mediania económica os meios de valer ao indigente laborioso; o pae de familias não arriscaria as migalhas penosamente poupadas, se o não acoroçoasse esperança d'um beneficio adequado ao serviço que presta e aos perigos que corre. Os que nada tem caíriam, por conseguinte, em mais apertada dependencia dos que tem tudo profusamente. Nas modernas sociedades, similhante preceito multiplicaria os invejosos, multiplicando os avarentos. Feriria de esterilidade o campo da viuva, estagnaria o movimento da industria e commercio, e, pelo tanto, o desenvolvimento da riqueza e vantagens moraes que ella proporciona. O emprestimo a juro é logo geralmente admittido como justo e fertil em toda a especie de prosperos resultados. Mas surdem para logo novos obstaculos. Deve-se limitar a taxa do juro que o devedor pede ao crédor? Como se hão de avaliar os prejuizos do devedor, e os lucros conjecturaes do crédor? Ha nada mais hypothetico e variavel! Que differença entre a qualidade e os productos de duas terras convisinhas, entre tal e tal mister, entre a capacidade d'este e a d'aquelle! O juro legal, ás vezes pequenissimo, casos haverá em que seja pezado; mas, como é legal, pezará com todo seu pezo sobre os que menos lh'o podem supportar. Será elle até motivo a encarecerem os generos, e redundará em incommodo e vexame. Tal é, quando menos, a opinião de celeberrimos philosophos.

Mas deve-se, como elles querem, deixar livre plenamente a vontade dos contrahentes?

Cuidar-se-ha que tudo isto é mera questão de economia politica: não é verdade. Aqui, mais que tudo, militam questões moraes complicadas e de alto melindre, de interesse quotidiano e universal, questões que enliçam elevadissimos espiritos, e sobre as quaes devemos, por isso, interrogar a Egreja.

Se consultamos os canones dos concilios, e nomeadamente os de Nicea, d'Arles, de Carthago e de Elvira, achamos que a Egreja condemna, em theoria, o emprestimo a juro. Na pratica, porém, tolera-o. Não insistamos na contradicção. Se é permittido o emprestimo a juro, quaes são as condições? Tem alguem direito de fixar o beneficio do devedor? Quem é? O Estado? Se é o Estado que fixa a taxa do juro, é o Estado quem definitivamente decide do que Deus concede e do que Deus prohibe, do que é e do que não é peccado, e por tanto a lei divina varia com a phantasia da lei. Se não é o Estado, é o uso da terra? Ha nada mais injusto e irregular? Que principio cumpre adoptar? Onde está o direito? Onde o abuso? Que é da regra? Não ha nenhuma? Não ha. A tal respeito é tamanha a desordem entre os theologos como entre os estadistas, e philosophos, e economistas e jurisconsultos, e entre os confessores e penitentes. Varia em cada diocese a jurisprudencia: não vamos tão longe; varia em cada parochia. Mudai de confessor, e vereis que o mesmo facto, cercado das mesmas circumstancias, muda o nome: peccado mortal, injustiça, expoliação no confessionario á direita, acto licito no confessionario á esquerda, debaixo do mesmo campanario, em nossas opiniões, e o seu facho milagroso vasqueja ao pé do mesmo altar. Um parocho vos condemna e outro vos salva. Parece pois que a infallibilidade ecclesiastica é aleijada n'esta questão vital em que os ricos a invocam para tranquillisarem suas consciencias, e os pobres para satisfazerem as necessidade do corpo e as da alma, porque elles pedem de emprestimo para trabalhar, para nutrir os filhos, educal-os, casal-os, auxiliar os seus parentes velhos, e sepultal-os, e para isso é mister que achem quem lhes empreste.

Quanto a materia politica, reinam as mesmas contradicções e incertezas dos negocios civis. Ha factos criminosos perante a razão, e todavia são absolvidos e até glorificados por uma parte do clero, sem excepção dos bispos, ao mesmo tempo que uma outra parte da cleresia os condemna a meia voz; mas de modo que a ouçam. A carnificina chamada de Saint Barthélemy foi approvada em Roma e celebrada em quasi todos os pulpitos. A revocação do edito de Nantes foi approvada pelo Papa e pela maioria dos bispos. Sobejar-nos-hiam exemplos, se os quizessemos, sem ir tão longe. Por outro lado, ha factos legitimos, heroicos, louvaveis, perante a razão, e esses são malsinados e condemnados como crimes por parte do clero, sem excepção dos bispos, ao mesmo passo que outra parte do clero os approva, e ás vezes tem parte n'elles. E tambem do clero ha porção que se abstem de julgar taes actos. As ultimas insurreições da Polonia e Italia nos dão exemplo recente e ainda sanguinolento. Aquillo que um Papa censurou, e outro Papa stygmatisou, outros padres applaudiram, alentaram e abençoaram! Estas diversidades de opiniões sobre successos tão graves, e culpaveis, se o são, tão admiraveis pelo contrario, se não são culpaveis, manifestam-se no secreto do tribunal da penitencia como nos escriptos e actos publicos. O confessor de Carlos IX considerou d'Orther subdito rebelde porque recusou ser assassino.

O bispo de Abranches talvez negasse a absolvição ao confessor de Carlos IX. Tal italiano, injuriado por um frade, seria festejado pelo seu cura. De maneira que á vista d'uma auctoridade moral infallivel, bastantes catholicos, testemunhas d'este espectaculo, vendo para onde Roma pende, perguntam amargamente se em verdade os povos tem direitos, e meios de fazerem respeitar os seus direitos; se a desobediencia ao rei é só permittida em materia de dogma; se a liberdade, o trabalho do pensamento, da escripta e da voz não merecem ser defendidos, comtanto que vos deixem a liberdade de rezar; se ha outra patria além da Egreja; se o servilismo, já cégo, já illustrado, não é a principal virtude civica; se, emfim, n'este mundo o belprazer dos poderosos não é a suprema justiça. Estas e muitas outras perguntas tem sido contradictoriamente respondidas pela Egreja, que não sabe melhor que nós onde estão bem e mal, virtude e crime, em conjecturas solemnes e frequentes, nas quaes bem e mal, virtude e crime avultam a proporções enormes. A Egreja hesita comnosco, duvida comnosco, bandeia-se e apaga-se quando entra nas veredas obscuras em que o genero humano é forçado a entrar, as quaes inevitavelmente conduzem ao céo ou ao inferno. A Egreja sabe que a Virgem foi concebida sem peccado; conhece a gerarchia dos anjos; dogmatisa onde a incerteza seria talvez prudente, e a ignorancia saudavel; porém, se procuramos regras de proceder, esteio e guia nos tempos difficeis em que parece que a infallibilidade vai resplandecer, activar-se e resolver a questão, a Egreja perturba-se, balbucia, contradiz-se e desampara-nos á discrição.

Como é então que ella prova a sua infallibilidade? Prohibe-nos de esquadrinhar na Biblia as regras da nossa fé, allegando que a Biblia é livro inintelligivel para nós. E, se lhe pedimos a razão d'isto, abre o livro que incessantemente lemos, esse mesmo livro cuja authenticidade e sentido só ella garante e explica. É ahi que ella pretende mostrar-nos a prova que lhe pedimos; mas nós sustentamos que ahi não ha tal prova. Além d'isso, se é mister crêr primeiro na Egreja quem houver de crêr nas Escripturas e entendel-as, que argumento é esse? Póde qualquer, em um processo, invocar contra o seu adversario um documento de que elle só se constitue interprete e juiz? Contente-se pois a Egreja em affirmar que é infallivel, mas abstenha-se de o provar.

Eu por mim não creio. A infallibilidade é um attributo incommunicavel de Deus como a eternidade e a omnipotencia. Se o Papa e os bispos fossem infalliveis, não bastaria respeital-os, seria mister adoral-os. Disso nos defenda Deus! São homens como nós. E, quando o Espirito Santo nos illustra, somos como similhantes aos candelabros do templo, e, sem o querer, confundimos a nossa sombra com a luz que dardejamos em redor.

Assim fallam os protestantes. Não digo que taes discursos sejam concludentes: não me compete a mim julgal-os; mas d'este capitulo e do anterior inferimos uma conclusão cuja justiça creio que ninguem contesta.

III

Conclusão do que fica dito
 

A conclusão que eu desejaria tirar do que fica dito é que a Biblia e a Egreja, estas duas auctoridades que se invocam em favor das penas eternas, não tem o mesmo valor no conceito de toda a gente. Um protestante renegaria o inferno, apezar dos anathemas dos Concilios, se a Escriptura lh'o não annunciasse; mas um catholico renegaria o inferno, apezar da lucidez dos textos biblicos, se aprouvesse á Egreja attribuir áquelles textos, segundo o parecer de Origenes, um sentido visivelmente conforme á justiça e bondade de Deus.

Tanto em Genebra como em Roma crê-se no inferno; mas por diversas razões; e o que parece argumento decisivo para metade dos christãos, não têm a mesma efficacia para a outra metade. Conformam-se sobre a verdade d'um prodigio, recusando de ambas as partes uma das duas testemunhas que o affirmam; os de Genebra considerando a Egreja um professorado do erro; os de Roma sustentando que a Biblia desencaminha aquelles que exclusivamente se fiam n'ella.