O Inferno (Auguste Callet)/I/II
CAPITULO SEGUNDO
I
Chamamos a Deus nosso pae e nos consideramos seus filhos. Um pae condemnaria seus filhos a supplicios eternos? Que a questão seja de ingratos e desobedientes, de rebeldes e de máos, embora: Deus é Deus, e nós somos homens.
O mais sabio ancião n'este mundo é perante o Pae celestial o que diante d'esse velho mortal, curvado ao pezo dos annos, é uma criancinha no berço. Perante o Pae do ceo somos todos crianças balbuciantes que apenas caminhamos com andadeiras. E a comparação é ainda muitissimo ambiciosa! Ha mais proporção entre o menino que balbucia e os maximos doutores theologos, do que entre os maximos doutores em theologia e o eterno Pai. Cobertos de seus circumspectos barretes, aquelles doutores tartamudêam, gaguejam, balbuciam freneticamente, não se entendem a si proprios, descambam a cada passo, e movem á compaixão, se os compararmos a Deus. Dado que elles ainda durassem e crescessem em saber, ao mesmo passo que envelhecessem, nem por isso deixariam de estar como em perpetua infancia confrontados com Aquelle que tudo sabe, porque é infinito em sabedoria, em poder e bondade. Mas, d'outra fórma, a criancinha hontem nascida podeis já affoitamente comparal-a áquelles graves doutores; é um doutor que se aleita e entra em dentição: alguns dias mais, e vêl-a-heis defender these e supplantar os professores.
Comprehendeis, pois, que, se o velho doutor em theologia fosse pae, mettesse o filho em um carcere cheio de serpentes e ahi o deixasse para sempre? Qualquer que houvesse sido a culpa do menino, julgareis justo e discreto similhante castigo? Não vos pareceria o mestre mais louco do que o discipulo, e o pae peior que o filho? O vosso primeiro empenho não seria pôr o algoz no logar da victima? Não se levantaria toda a sociedade contra esse sabio sem coração? Nossas leis, nossos tribunaes consentil-o-hiam? Ah! castigos, sim, mas castigos que corrijam, e o perdão a final: eis o que é justiça de pae. Não entendemos outra. Ao chefe de familia não se consente poder arbitrario sobre os seus: a esposa tem direitos; tem-os o filho, o servo, protegidos pela sociedade, que para esse fim especialmente se constituiu. Se isto repugna ás antigas tradições, nem por isso é menos racional, equitativo e moral.
Ainda assim, por mais que fizesse este doutor atroz, seria menos cruel que o Deus prégado por elle. Se a morte não viesse rapidamente arrancar-lhe a victima, o officio de algoz cançal-o-hia. É difficil de supportar, ainda mesmo a um mau pai, o aspecto das torturas que elle exercita na pobre creatura que gerou. No coração humano tudo é mudavel, tanto o amor, como, por feliz compensação, o odio. Um principe morovingiano, chamado Charmne, revoltou-se contra Clotario; Clotario fez queimar vivos seu filho, a nora e os netos; mas diz a historia que elle se arrependêra. Se tal supplicio durasse uma semana sómente, de certo elle os teria salvado. Que bom pai! Que excellente rei!
Que amavel é este Clotario de par com o Deus que nos pintam! Este Deus quer que pensemos no inferno, mas não que se morra ahi; á imitação do algoz das prizões feudaes, deixa viver os pacientes torturando-os e disvela-se em lhes protrahir a agonia! Manda-os soffrer, ouve-os gemer durante a eternidade, e procede sua vingança, sem fechar olhos, sem tapar ouvidos, e por isso mesmo é que n'elle reconhecemos não um homem variavel, mas o que elle é, um Deus.
Ó Deus dos antigos, Bel, Teutates, Plutão, Eolin, seja qual fôr teu nome, Deus das batalhas, Deus do gladio, Deus dos fortes, guerreiro feroz, senhor irascivel, juiz sem entranhas, Deus dos eternos rancores, tu não és o meu Deus! O Deus que adoro, o unico e verdadeiro Deus, é o melhor dos Paes; apezar das minhas culpas, não me trata como inimigo nem como escravo; conhece melhor a minha fraqueza do que eu a sua força; e, até quando me castiga, não esquece que foi elle quem me creou e que eu sou seu filho.
II
É o purgatorio o logar incognito em que os mortos esperam, soffrendo, o perdão das culpas commettidas na terra. Ha ahi o chorar e o padecer; mas não se amaldiçôa Deus: bemdiz-se. Os soffrimentos ahi supportados são salutares porque se comprehende a justiça d'elles; e corrigem porque a esperança não é anniquillada.
Se tal logar existe, de que serve o inferno?
Deixar dizer que a eternidade é que apavora e refrêa o peccador. O peccador não sabe o que seja a eternidade; porque é impossivel absolutamente formar-se uma clara idêa do que seja isso. Se recuamos perante nós um pouco que seja as balisas do tempo, a nossa imaginação e razão se perdem; e cahimos nas prezas das mesmas angustias que sentiriamos, se vissemos a verdadeira eternidade.
Para que o homem se aterre lhe basta imaginar o soffrimento de que é capaz a sua natural sensibilidade, e qual o podem comprehender as faculdades do seu entendimento. Para que iremos mais longe? Não é bastante ameaçar os maus com castigos proporcionados ás suas faltas, durante um espaço de tempo desconhecido ou incalculavel n'este mundo? O que fôr mais do que isto é inintelligivel. Para lá d'estes limites, a ameaça nada importa; a alma está refarta de justiça, oppressa de terror, extenuada de padecer, dobra-se, cáe, aniquilla-se, adora, supplica perdão, não póde comprehender senão a piedade, está surda e insensivel a tudo o mais. O remate da justiça para nós é o perdão; e, se n'essas extremas alturas onde a imaginação póde chegar, e onde o peccado roja gemente, se em vez de perdão, nos mostraes o odio ainda flamejante, lá vai tudo: o terror tocou o apogeu; turva-se a razão, idêa de justiça e de bondade tudo se desfaz; a alma, que cahira crente, levanta-se atheista.
Se o tal inferno existe, no outro mundo coisa comprehensivel ha uma só; é o blasfemar dos condemnados.
Mas se tal inferno existe, de que serve o purgatorio? Pois os protestantes não o aboliram discretamente? Para os que podem crêr em tal inferno, que é cem mil annos de purgatorio? Este acaba e o inferno não; seculos e milhões de seculos de penitencia não se contam, esquecem-se. Em vista d'este sinistro inferno em que a misericordia é desconhecida, inutil o soffrimento, e a justiça um enigma, o purgatorio é um paraizo. Quem nos dera a certeza de lá ir! que os castigos ahi soffridos, por mais demorados e rigorosos que sejam, não ha temel-os: desejam-se. Por maneira que o mais terrivel castigo que imaginar se póde, o mais equitativo e rasoavel, deixa de impressionar as almas pervertidas pelo espectaculo d'uma punição sem siso nem justiça apparentes.
As pobres almas aterradas, aturdidas, estupefactas são impellidas involuntariamente a offender a Deus de dois modos; primeiro temendo-lhe a vingança, segundo não lhe temendo a justiça. A idêa dos castigos inefficazes e dôres infructiferas, por muito monstruosa, odiosa e falsa que seja, se humanamente a consideramos, torna inutil a idêa dos castigos poderosos e dôres salutares, por muito bella, clara, natural e divina que ella seja.
III
Quem quer que sejaes, senhor ou servo, rico ou pobre, esposo ou pai, viuva ou noiva, não negueis as expiações da vida futura. Não conheceis maus em prosperidade, cercados de respeitos, inaccessiveis á lei, e que se deitam e levantam sem remorsos? Não conheceis innocentes opprimidos, anciãos abandonados, orphãos desbalisados, pessoas honradas cuja vida é toda padecer e que nenhuma lei feita ou por fazer defenderia de homens ingratos e perversos? Se sois feliz hoje, sêl-o-heis amanhã? Convencei-vos de que negar a vida futura, seria o mesmo que negar a immortalidade da alma, e logo sua liberdade e responsabilidade; e, por consequencia, o mesmo seria negar virtude, direito, Providencia, e constituir este baixo mundo um verdadeiro inferno, um sonho, um pesadêlo, onde tudo seria horror e abominação, excepto o nada, tudo injusto, excepto o crime victorioso, tudo absurdo, excepto a inveja, o egoismo, a violencia, e a astucia que se roja. Ah! crêde na vida futura, com suas expiações e recompensas. E, se ha quem exclua do ceo a piedade, não vades vós, por uma irracional desforra, excluir tambem do ceo a justiça.
IV
Não nos accusem os theologos de negarmos acintemente os mysterios.
Os theologos referem o que vae no inferno como se tivessem por lá viajado. Pelo que elles dizem é paiz dos mais conhecidos: sabe-se o caminho, quaes são os seus productos, e qual o modo de viver dos seus moradores, bem como a origem, nomes e a gerarchia dos principes que lá reinam. Em outro capitulo estudaremos as edificantes descripções que fazem d'elle já physica, já moralmente.
Ácerca do purgatorio tem havido mais prudencia quasi nada se sabe do que la se passa: é portanto mais mysterioso que o inferno. Todavia, sem impedimento de ser mysterioso, que differença! Quanto mais profundamos a eternidade penal, menos se acredita; ao invez, quanto mais pensamos no purgatorio, mais nos sentimos compellidos a crêl-o. É o inferno mysterioso como o diabo, como a noite, como a contradicção, a confusão e o chaos. É o purgatorio mysterioso como Deus, como a alma, como a consciencia, como a vida, como a luz que nos alumia, como a materia impenetravel, como toda a natureza, como a verdade, como tudo o que existe e de que nós apenas conhecemos em sombra a existencia e apenas percebemos atravez de um veo, mas o bastante para não poder duvidar. É elle tão certo como tudo o mais do mundo; assenta no intimo de nossa alma sobre as mesmas bases da moral, do direito, do dever, do respeito a outrem, piedade, liberdade, amor, e sentimento do infinito. É por tanto o purgatorio, quanto á razão, o verdadeiro mysterio da justiça divina, assim como a Incarnação e a Paixão, quanto á fé, são o mysterio do Amor divino; — mysterio de justiça que, de mais a mais, se concilia maravilhosamente com aquelles mysterios d'amor, dos quaes o inferno perpetuo seria a negação.
Muitissimo nos espanta que os protestantes o não vissem. Quando tinham que escolher entre dous dogmas inconciliaveis, um velho e outro novo, sacrificaram, tanto em nome do Evangelho como da razão, um dos dois que mais se harmonisava com as leis da razão e a moral do Evangelho.
V
Os protestantes não conhecem termo medio entre paraiso e inferno; os catholicos, porém, acreditam-no, e segundo elles é o purgatorio ceo nubloso e triste, inferno onde se ora e espera, e que deve acabar. Infelizmente os catholicos não enviam todos os mortos ao purgatorio, crendo que se póde transpor aquelle meio entre ceo e inferno, sem ainda lá pôr o pé. Á similhança dos protestantes, ensinam que muitas almas, apenas despidas do seu involucro mortal, são despenhadas para sempre no eterno abysmo, ao passo que outras almas, logo que despedem da terra, alam-se direitas ao paraiso. Ensinam tambem, uns e outros, que o mais abominavel patife, convertido á ultima hora, póde morrer contente: eil-o vai absolvido como o bom ladrão; não tem mais que fechar os olhos e acordar entre os anjinhos.
É isto possivel? É isto verdadeiro? Que é pois o paraiso, e que idêa fazemos d'elle?
Pois que! verei eu do seio da bemaventurança, e na inalteravel tranquillidade dos justos, verei sem remorso e sem afflicção, encadearem-se a meus pés, já na terra, já no inferno, as tristes consequencias das minhas iniquidades? Nas minhas noites de libertinagem, matei; durante o somno de homens que valiam mais do que eu, assassinei um aváro para o roubar, um amigo da minha infancia para entrar no seu leito, uma mulher que eu havia seduzido e que morreu beijando-me as mãos, pensando em mim, a louca, mais do que em Deus! D'entre elles os peores que eu feri eram innocentes comparados comigo, e eil-os mortos intempestivamente, sem terem tempo de se arrependerem; eil-os engolphados na gehenna, com o coração roido pelo verme que não morre, gementes, chorosos, amaldiçoando-me; e eu, seu assassino; eu, peccador envelhecido na impiedade e agraciado por um milagre, louvarei Deus eternamente, por me haver feito instrumento da condemnação d'aquellas pobres almas!
Com as minhas delapidações, reduzi á miseria e a todas as tentações da miseria, e a todos os desvios da desesperação aquella familia que lá vejo em baixo: o irmão vende a irmã, a irmã vende a sobrinha, o pae vende os seus juramentos, os seus amigos, o seu paiz; a mãe arranca-se os cabellos; todos choram, todos soffrem, todos me accusam, e os seus gemidos chegam até mim; e eu hei de vêr imperturbavel, sem remorsos, sem dôr, aquelles fructos de meus crimes, aquellas ulceras, aquelles prantos, aquelles opprobrios, aquellas perfidias, aquelles escandalos em que eu tenho parte; e, pois que Deus se apiedou de mim, eu não terei piedade dos outros, e o que na terra me affligia, quando eu agonisava, não me ha de affligir depois da minha morte. Este deploravel espectaculo, bem visivel a meus olhos, não impedirá que eu me saboreie na felicidade dos escolhidos; convencer-me-hei que vae n'isso o influxo dos designios do Altissimo, e que o homem, faça o que fizer, não tem que vêr com o resultado das suas obras; e em vez de bater no peito a cada sobresalto dos meus proprios crimes, a cada repercussão das minhas proprias blasphemias, a cada reflorecer das venenosas sementes — vestigio unico que eu deixei da minha passagem na terra — vestirei a alva tunica, e beberei na taça dos anjos, das virgens, dos heroes, e dos martyres, como se eu fosse um d'elles.
Na verdade é uma egregia doutrina esta da justificação do peccador, pelo reconhecimento e pezar de suas culpas; levada porém áquelle grau, similhante doutrina é tão incomprehensivel como a do inferno. De uma demasia nasceu outra: n'uma parte encareceram a justiça; na outra exaggeraram a piedade. Comtudo, entre o castigo infinito por um só peccado, e o immediato perdão apezar de mil peccados, havia o que quer que fosse que parece desconhecer-se: a justiça sem colera, a misericordia sem pusillanimidade.
Salvam-nos como nos condemnam, com pouco custo ordinariamente, pois que se com facilidade nos abrem as portas do inferno, com a mesma nos abrem as do paraiso.
Considerem entretanto o purgatorio, não como meio entre o paraiso e o inferno, mas entre a terra e o ceo, ponto que certas almas atravessam rapidamente e quasi sem soffrer, e onde outros são condemnados a padecimentos mais ou menos extensos e variadissimos, consoante a natureza de suas culpas, e disposição no ultimo momento. Este purgatorio com as suas penas indefinidas, proporcionaes, rigorosas, purificantes, e, cedo ou tarde, coroadas pelo perdão, não seria um freio moral mais rijo que o medo das penas eternas, temperado pela esperança da misericordia na ultima hora, e pela reforma de vida na ultima edade? Convenho que não haveria medo de ser condemnado sem remissão; assim é; mas tambem ninguem presumiria de fugir ao castigo com um momento de contricção, depois d'uma longa cadeia de crimes. D'esta arte, Deus mostraria melhor o que é, justo, mas não cruel; bom, em vez de tolerante. Que mal lhe viria d'ahi? Commiséravos o lastimavel ancião coberto do sangue das extorsões e o tyranno abjecto que sopesou e corrompeu milhares de homens; tendes d'elles piedade, quando morrem chorando? tendes razão; mas apiedae-vos tambem de suas victimas ainda palpitantes, d'essas creanças que elles definharam e ceifaram em flor, e que vós condemnaes. Piedade e justiça para todos. Não desespereis os que vagarosamente caminham sobre os abrolhos da penitencia, mas não lhes encurteis a escada para os subir ao ceo. Sabei que na outra vida se chora amargamente o mal feito ao proximo que n'este mundo nos sobrevive, as desordens que se motivaram, as existencias que se transtornaram, as quedas moraes que se occasionaram, e que o arrependimento na hora extrema, posto que grandemente salutar, é apenas o principio, e não o fim, das expiações d'uma vida culpada.
É de crer que na Biblia e nos padres da Igreja isto se não encontre escripto; mas está escripto nas consciencias. Limpem os oculos e leiam.