O Inferno (Auguste Callet)/I/III

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CAPITULO TERCEIRO

 
OS FRUCTOS DO INFERNO
 

I

O bem
 
(BEM NEGATIVO, MONGES, ANACHORETAS, ETC.)

Se a morte vos sobresaltêa antes da penitencia, diz-se que sois condemnado por erro de espirito, por fraqueza dos sentidos, por um lance d'olhos, por um desejo culposo, e condemnado, sem esperança, tanto como se houvesseis sido um ladrão calejado, um parricida, um atheu. Lá vos está esperando o Senhor da vida; e ahi ides enredado em vosso peccado como ave cahida no laço. E tudo se acabou; tudo, sem que os vossos longos serviços ao genero humano contrabalancem o peccado final!

Se, no entanto, comparaes tudo que se ha mister fazer para ganhar o ceo ao pouco que basta para cahir no inferno, sereis forçado a reconhecer que as probabilidades são dissimilhantes, e que o mais certo, faça-se o que se fizer, é a condemnação.

D'onde procede nas imaginações vivas a dominante preoccupação de evitar o inferno; e d'ahi, pelo conseguinte, e desde os primeiros seculos, uma especie de singulares virtudes, mais espantosas que bellas, mais extravagantes que insinuativas: virtudes falsas, sem utilidade do proximo, bem que os theologos no'l-as inculquem por ideal da perfeição christã. Tal é o retiro ao deserto, a renunciação propria, o morrer antecipado, o fugir combates da vida, o desquite de deveres da familia e da cidade, a ociosidade contemplativa e penitente, a maceração, o jejum, o perpetuo silencio, a insulação, o odio ao mundo, a oração entre quatro paredes. É, tambem, a santificação do celibato, como se a fecundidade dos sexos houvesse sido amaldiçoada, como se fosse culpa continuar a filiação de Adão, e virtude esterilisar em si os embriões da vida humana.

E certo é que, admittido o inferno, e a queda original, e o ensinamento que lhe anda annexo, que outra conclusão se colhe? Multiplicar os homens, para que? para multiplicar os peccados? Se é tão duvidosa a salvação! Se a condemnação é tão facil! Para que nos enlaçaremos á orla d'um abysmo onde o esposo póde despenhar-se com a esposa e o pae com os filhos? Bastantissimos mentecaptos se casam, e povoam terra e inferno de desgraçados. Não seria melhor deixar acabar o mundo? Bemaventurados os celibatarios! Os sabios são os reclusos, os anachoretas, os eremitas. São como os viajantes que, em navio a pique, desamparam os companheiros, e salvam-se a nado. Cuidam só do seu salvamento; cada qual por si; soccorrer o irmão tem o risco de naufragio. Fazei como elles, navegantes; deixae no navio em sossôbro mercadorias, thesouros, e vossas mulheres, e mães, e vossos filhos, e fazei-vos ao largo: recresce a borrasca; rasga-se a vela; quem poder salve-se.

Bemditos sejam pois esses foragidos do mundo, mortos ao mundo e seus modelos, Simeão sobre a columna, João no muladar, esses desvariados todos macillentos, sujos, comidos de insectos. Grande vantagem levam: não tem que vêr com a terra, e já estão meios mettidos no ceo: o diabo já mal os póde aprezar.

Não é, todavia, a perfeição dos ascetas aquella que o Filho do homem nos exemplificou. Trinta e tres annos habitou Elle a terra, e quarenta dias sómente ermou no deserto, não para nos lá attrahir; mas, a meu vêr, para nos distancear, pois que foi no deserto, e ahi tam sómente, que o espirito das trevas o tentou. Anteriormente havia Elle vivido trinta annos com a sua familia; e viveu o restante entre peccadores. É para notar que nas suas modestas occupações, sob o colmado do carpinteiro, e mais tarde nos campos, nas cidades, nas tavernas, em meio do povo que ensinou, curou e nutriu, não ousou o diabo tental-o!

Mal imita Christo quem foge o mundo que Elle procurava. O sepultar-se um homem nos antros, a jejuar e a rezar por longo tempo, o sequestro da sociedade, o silencio, corpos macerados mal enroupados em pelles, exorcismos furiosos, luctas no vacuo, intrepidez baldada, e tantissimos outros piedosos desatinos não recordam exemplos do Salvador, mas sim as aberrações dos sectarios do oriente. Não póde ser isto a perfeição que Jesus veio ensinar aos homens; que tal chamada perfeição muitissimos seculos antes d'Elle já era conhecida dos pagãos idolatras, que tinham seus corybantes e vestaes, e bem assim dos judeus, mormente dos Essenios que a tinham aprendido dos magos da Chaldêa. Tal perfeição praticavam-a na India fanaticos sem numero, cuja raça ainda subsiste. Importamo'l-a dos mesmos paizes que nos mandaram a doutrina dos anjos rebeldes e a da reprovação dos homens — doutrinas cujo natural fructo é tal casta perfeição. Se o ideal da perfeição humana fosse isto, inutil seria o christianismo; pois que já os brahmanes a tinham ensinado dous mil annos antes do presepio, e os bouddhistas a tinham realisado mil annos antes dos monges da Thebaida.

É certissimo que os bouddhistas não visam exactamente ao mesmo scôpo que os monges catholicos: aquelles buscam em suas austeridades a morte absoluta, a destruição de sua personalidade, o serem absorvidos no ser universal, ao mesmo tempo que os monges, se renunciam ao seu eu neste mundo, é para o retomarem n'outra vida. É, comtudo, egualmente certo que, sem embargo da diversidade dos fins, vigora em ambas as seitas um principio commum, sendo que por identicas vias e praticas procuram a eterna bemaventurança uns, e outros o perpetuo dormir, a eterna insensibilidade. Só de per si o desejo do ceo não bastaria a inspirar a uns o mesmo proceder que inspira aos outros o desejo da anniquilação: pelo que, não é o desejo, senão o medo que povôa os desertos. Os bouddhistas, por egual com os christãos transviados, temem os soffrimentos infindos, os males sempre a renascer, se n'este mundo não attingirem a vida perfeita; e tanto para elles como para os nossos monges, vida perfeita é o absterem-se da vida, é a virgindade, o jejum, a penitencia, a soledade, o extasis, o antecipar a morte, um complexo de estereis virtudes, não filhas do amor, senão do mêdo.

Tal é, na sua mais elevada expressão, o bem que a crença do inferno produz n'esta vida. Causa espanto que os protestantes hajam conservado este dogma! É, porém, mais para espantar que elles, ao mesmo tempo que o conservam, destruam os mosteiros e inpugnem o celibato. Não ha ahi imaginar maior inconsequencia! A primitiva Igreja, que elles pretendem resurgir, cria sem duvida nas penas eternas, é isto mais que muito verdadeiro; mas pelo menos, operava em conformidade com sua fé. N'aquelle tempo, os esposos, ainda em vigorosa mocidade, guardavam continencia, sob pena de peccarem, durante o advento e quaresma, e nas festas e dias de jejum, pouco mais ou menos tres quartas partes do anno. D'elles alguns, para maior perfeição, não usavam nunca os direitos conjugaes, e envelheciam sob o tecto nupcial, em voluntario celibato, denegando-se as frias caricias que o irmão faz a sua irmã. Os ricos empobreciam-se, despojando-se espontaneamente de seus haveres, e os pobres lidavam para viver, mas descuidosos de amontoar, nem como previdencias para a velhice e infermidade, nem para legarem a filhos. Conta-se que desadoravam empregos publicos, e evitavam, como escolhos da alma, as emprezas lucrativas nomeadamente as commerciaes. Nunca espectaculos, nem jogos, nem dansas, nem folias. Sobriedade extrema, vestidos nem apontados nem de preço, jejuns em barda, orar dia e noite, lucta incessante e pertinaz contra a natureza. O seu distinctivo de christãos era aquelle. Uma leve falta, acareava-lhes a excommunhão; e, antes de absoltos, eram experimentados em seu arrependimento, por espaço de mezes e annos, quando o não eram até morrerem. Em quanto durava a penitencia, eram apontados, não só nos templos, durante os mysterios, senão tambem no exterior e nas relações da vida civil; e, por cima de ninguem os querer á sua meza, até as esmolas lhes regeitavam.

Diz com rasão Fleury que a vida dos nossos monges regulares corre parêlhas com a do commum dos fieis da Igreja nascente, cuja continuação é[1]. E accrescenta[2] que já entre aquelles fieis havia ascetas d'ambos os sexos vivendo reclusos. Eram os mais perfeitos, e exemplares. Taes ascetas, verdadeiros ascendentes dos monges contemplativos, trappistas, cartuchos, carmelitas, claristas, etc., esforçavam-se por imitar a vida de João Baptista no deserto e a de Elias no Carmelo.

Curavam elles pois, como já dissemos, uma perfeição diversa da de Jesus: anhelavam a perfeição negativa, qual os judeus e os orientaes a preconisavam; judaisavam sem darem d'isso tento, e os christãos seus imitadores continuavam inadvertidamente a tradição, não já de Jesus, mas de João Baptista e Elias, tradição congruentissima com o inferno. Já no tempo das perseguições era povoada a Thebaida; não tinha então a Igreja um tecto debaixo do ceo; e só depois que principiou a erguer templos é que edificou mosteiros, sua primeira obra depois que sahiu das catacumbas. É pois evidentissimo, em que peze aos protestantes, que o catholicismo não se apartou do espirito dos tempos apostolicos, nem das praticas de então, e que a vida monachal detestada por elles, é ainda hoje em dia o que outr'ora foi, a mais bella flor, e o mais mimoso fructo dos dogmas hebraicos, que elles tão piedosamente tem conservado.

II

A carmelita ou o ideal da perfeição theologica.
 

Comvosco admiro as religiosas que, sob diversos nomes e com diversos habitos, assistem ao genero humano, tanto com suas orações, com o seu trabalho quotidiano, com toda a celeridade de seus pés, com toda a agilidade de suas mãos, como com todas as forças de seu ser. Credes que não é possivel seguir mais do que ellas os divinos vestigios do Salvador. Ah! quanto vos enganaes! Quanto são baixas e eivadas de heresia as vossas idêas! A perfeição não consiste na vida activa e benefica das irmãs da caridade; onde ella está, segundo o ensinamento dos theologos, é na vida contemplativa.

Se procuraes, senhora, o modêlo para vós e vossos filhos, encontral-o-eis na carmelita, com preferencia á irmã da caridade. Aquella morreu para o mundo, jaz no seu cubiculo como em um tumulo. Vá quem quizer agasalhar orphãos, ensinar ignorantes, restaurar peccadores, curar doentes, ensinar officios a servos, dar voz a mudos. Affronte quem quizer o contagio de nossos vicios! Quem quizer que cure a nossa lepra! Esses cuidados vulgares não os quer a carmelita para si. Aos pés do altar, com os braços levantados ao Senhor, é o seu posto. Não se bulirá d'alli, ainda que todo o paiz arda ensanguentado. Não lhe digaes: vosso irmão está a morrer; vossos sobrinhos vos estão chamando. Não lhe digaes: arde a peste na cidade; á vossa porta está a maca. Ha muito que ella concebeu tedio do mundo; não lhes leveis novas d'elle, que perturbarieis o seu socego. Quanto menos ella se inquieta d'essas transitorias miserias, mais os theologos a admiram. N'isso mesmo, — crêl-o-eis? — é que está, segundo elles, a sua superioridade sobre a irmã da caridade, cujo coração virginal arfa como coração de mãe ao grito da criancinha[3].

A carmelita não pensa, nem tem que pensar senão em sua propria salvação, e tal pensar é um manancial das commoções que unicamente lhe são permittidas. Bem que ella viva dez, vinte, cincoenta annos sob o veo, fará todos os dias, á mesma hora e da mesma maneira, a mesma coisa sem poder por seu arbitrio alterar-lhe o minimo. São-lhe pautados os movimentos, e contados os passos. Em todo o curso de sua vida não ha a menor surpreza, o minimo abalo, o imprevisto, a menor liberdade, ou elevação espontanea das faculdades moraes. Estão definidas e immutaveis as suas relações com todas as coisas animadas ou inanimadas que a cercam: não se afeiçoa, não escolhe, não se decide. É-lhe prohibido ganhar affecto a coisas e a pessoas. A abelha é mais livre do que ella em sua colmeia, e menos inflexivel que as regras monasticas é o instincto que a dirige. Uma communidade de freiras parece-se a um povo de automatos e não a um enxame de seres viventes. E essa é que é a condição pela qual a harmonia subsiste. N'estas sociedades contra natureza, é prudente que a natureza seja algemada; pois, se lhe dessem folga, ella se revoltaria; e por tanto é forçoso esmagar a liberdade como cautela para que a licença não vingue. É pois a carmelita em todos os seus actos mera machina. Tem alma para obedecer e trabalhar na sua interior perfeição, destruindo em si, cada vez mais, vontades, desejos, e individualidade até ás raizes. Onde está a lucta está a vida. N'esse immutavel centro, solitario e silencioso, onde se caminha sem mudar de piso, passa a adolescencia sem curiosidade, e a velhice sem experiencia nem memoria. Ahi nada se renova; o dia que chega nada promette; o dia que finda nada deixa; é a vida um livro, cujas paginas em vão se folhêam: sobre essas paginas brancas ha uma só phrase, do começo ao fim, sempre a mesma: «pensa em ti, pensa na eternidade.»

Ahi vem agora com que espancar o tedio do mosteiro. Á mingoa de grandes e formidaveis combates do lar domestico e da sociedade, isto é, da vida real qual Deus a fez, a ociosa carmelita pugna heroicamente contra sua razão, contra seus sentidos, imaginação, e faculdades inactivas. Crê resistir ao diabo, resistindo á necessidade de operar, de amar, de saber, e ser util: estafa em puerilidades a sua virtude. Se durante o officio, uma mosca lhe pousa no nariz, é um caso, é uma provação. Se está distrahida, assalteam-na remorsos; se impaciente, vai confessar-se d'isso. Uma pulga é outro inimigo terrivel, outra occasião de grande queda ou de grande victoria! Um alfinete mal pregado, um vêo descomposto, uma lembrança, um gemido, um pensamento clandestino, o rastilho d'um rato atraz do armario, um Ave esquecido, ó cathastrophe! ó remorso! ruina de Sião! prantos de Job! brados de Rachel! transportes de Jeremias! Qualquer bagatella a alvoroça como materia de peccado mortal; qualquer futilidade lhe avulta com proporções monstruosas; pesa grãos de areia, e mede os atomos.

Pois se ella conseguiu esquecer sua familia, seu paiz e o mundo, não a cuideis completamente impassivel como se vos figura: o que ella fez foi concentrar em si e para si o amor e piedade que nega aos outros. Idolatra-se, não ao modo dos sybaritas, mas por um theor que, posto não seja sensual, não é menos egoista: absorve-se em contemplação de sua alma; no proprio coração preenche o vacuo de familia e de amigos, e de quantas creaturas de lá expulsou. Contempla-se sósinha, entre o inferno e o céo, a tremer perante um tal espectaculo, e sempre fluctuando entre estes abysmos, ora nas alturas, ora nas profundezas, passa de um delirio a outro, e das palpitações do terror ao extase dos seraphins.

Eu por mim não sei se Deus sorri a taes futilidades, a tal vida que não é viver, e a tal morte que não é morrer; mas os theologos affirmam que é n'isto que a perfeição consiste.

E forçoso é concordar que elles tem razão, se ha inferno. Se ha inferno, a irmã da caridade é imprudente, e nós, os admiradores d'ella, somos sandeus. O sequestro mais rigoroso é a consequencia legitima, natural, necessaria e fatal d'este dogma selvagem. O alicerce, a porta e o tecto do mosteiro é aquelle dogma, que desata as sociedades naturaes e viventes avinculadas pelo amor; é elle o occulto liame d'aquellas sociedades de automatos que não permaneceriam um dia, nem hora, nem momento, se tal dogma fosse proscripto. Sem inferno, a vida claustral não se percebe; com inferno, não ha imaginal-a mais a ponto, e é obrigatorio confessar que, de feito, a perfeição está n'ella, visto que a razão está com ella.

Não obstante, filhos do seculo, não renuncieis afogadilho de seculo, que vol-o prohibem os theologos.

Ficai entre peccadores, no foco das tentações, dos escandalos, dos erros, e das ciladas que vos tramam. Razoavel coisa seria fugir para o porto seguro que vos offerecem; mas não vades; continuae a navegar entre restingas, á mercê dos tufões, aos clarões dos relampagos. O convento não vos quadra; porque não foi feito para muitos.

Entendo, direis, que o convento se abriu para os entes mais debeis, para os incapazes não só de ajudar a outrem, mas tambem da mesma mente se salvarem, sem se arriscarem ás tempestades. Faz-se mister ás almas frageis e justamente timidas o estreito cenobio do claustro, a protecção das gradarias, a escravidão, as regras, o véo sobre os olhos, a mordaça nos labios; sem o que se perderiam. Em quanto os valentes combatem, vão ellas esconder-se longe do inimigo.

No seu caminho se arrastam gemebundos alguns fugitivos, fallidos de animo, cahidos por terra, feridos de suas proprias armas, e quem sabe se alguns heroes alanciados no coração! Entendo, direis, que o claustro é o refugio dos pusillanimes, o porto dos naufragados, o hospital dos infermos, e aqui se mostra a apparente razão porque nem toda a gente lá póde entrar.

Está enganado o duro leitor, que nada percebe dos mysterios theologicos. Saiba pois que o claustro é o asylo dos fortes; e que só lá são recebidos os athletas a primor, mais puros e intrepidos, a flôr da juventude christã. Não soffre a menor duvida que é mil vezes mais de perigo a sociedade onde os soccorros são muito menos do que os retiros abençoados. Que nos faz isso! De logar abrigado e onde a graça superabunda é que os poucos são repulsos, com quanto, ao primeiro intuito, nos pareça creado para elles; ao mesmo tempo que do baluarte das luctas angustiosas se retiram os fortes, com quanto pareça tambem este o seu logar proprio.

Os coxos, os cegos e os inermes são postos na liça sanguinosa; os mais aguerridos soldados enclaustram-se. Espantem-se e riam-se, que a coisa é assim; e, senão, perguntem-no á Sorbonna.

E assim é preciso que seja, pois que a perfeita vida é a claustral, que, no entender dos theologos, vem a ser a mais avêssa ás inclinações de nossa natureza viciosa, e, por conseguinte, a de mais difficil observancia; mas, porque é impraticavel na sociedade, não se lhe dispensa de ser exemplo á sociedade; e, sem presumpções de lá chegar, devemos propender para ella continuamente, visto que estamos tanto mais á beira do inferno quanto longe d'aquella vida perfeita.

Que se hade fazer, pois? Eis o problema. Cada qual tem no mosteiro um trilho feito, e o futuro certo, portanto está quite de cuidados que fóra d'ahi seguem a pobreza, o trabalho, e até a riqueza, além das responsabilidades que a toda a hora pendem dos actos de uma vontade livre, n'um viver sempre fluctuante.

No mosteiro é tudo exemplos edificantes; e, posto que seja defezo ahi grangear um amigo, em compensação não se adquirem inimigos.

Nem impeços, nem disputas, nem conflictos, males que a liberdade produz, sendo que a servidão lhes esmaga os embriões. No exterior é tudo recolhimento, paz, ordem, silencio, e esforço; perturbações, se as ha lá, vem do intimo e do recondito do nosso ser. O unico inimigo que ahi ha que recear é o diabo, tal invisivel e impalpavel adversario que todos trazem comsigo, fracos e fortes, mundanos e frades; porém tal inimigo perde no claustro boa parte das suas prerogativas; porque alli não está elle como em sua casa, e no seu reino: são-lhe menos os ministros, os vassallos, e os recursos. O recluso, afóra a pessoal energia de que é dotado e lhe assignala a vocação, topa ahi de todos os lados conselhos e amparos; e como quer que tenha em frente aquelle unico inimigo, soccorre-se de mil auxilios, que faltam ao homem do seculo, e, máo grado a sua fraqueza original, vence-os. Que fazemos pois n'este misero mundo em que a infermidade nos algema? Ha aqui o rir, o chorar, o renhir, o disputar, o abraçar-mo-nos, o odiarmo-nos, perseguirmo-nos, e o aniquillar-se o homem contra homem: é uma reluctancia sem fim, e sem regra, um retinir de espadas, um estrondear de martellos, de carros, de machinas, de cantares, de gemidos, um cháos, uma desordem, da qual a clausura não poderia dar-nos sombra de idêa. Aqui, são mil os objectos em que a alma anda repartida; as diminutas forças que temos dispersam-se. Acolá o inimigo identificado comnosco, traz escolta de auxiliares, e a lucta interna de que ninguem se izempta, complica-se com as luctas externas e inevitaveis. Cada homem tem de bater-se com uma legião. Quantos cuidados! Quantos deveres! Quantas incertezas e anciedades! Quantas encruzilhadas sem nome, sem pharol, sem sahida! Que poeiras, e que sombras!

Considerae aquella mãe de familia a quem encareceis as virtudes da carmelita.

É pobre, todos os seus parentes são pobres, os filhinhos rotos, famintos, quasi sempre doentes, o marido alquebrado do trabalho, ou que, desanimando, se envileceu e a espanca, um patrão, um proprietario, credores, mestres, amos, amigos, e que amigos! conselheiros, mas conselheiros de Job! Se tal mãe é rica, tem uma casa que reger, creados a dirigir, os quaes nem fizeram voto de pobreza, nem de obediencia; filhos a educar, sagrados interesses que defender, relações que receber, um marido a contentar, quer seja honrado ou não, quer seja piedoso ou impio. Com vontade ou sem ella está continuamente a braços com as paixões alheias, com caprichos, interesses, vontades e affectos contrarios; de continuo em face de circumstancias imprevistas, casos litigiosos e incertos, onde lhe é forçoso resolver-se quando qualquer resolução é perigosa, não o sendo menos os perigos, se se absteem. É preciso que ella, se quer salvar-se, seja a um tempo economica e caritativa; communicativa, mas discreta; umas vezes branda, e outras inflexivel; expedita, mas reflexiva; previdente, mas conformada a todos os sobresaltos da fortuna; que viva ao mesmo tempo em si, e nos outros, para si, e para todos: missão indefinivel, cheia de contrastes, de atravancos, de cruzes, mais ardua e mais difficil que a missão da freira.

Digam embora que esta mãe de familia tem na sua miseria satisfações, tranquillidade e jubilos que não goza a carmelita: depende isso de saber se os jubilos de que fallam são comparaveis ás dôres que a freira ignora. De mais, esqueceis que esses prazeres são um engodo e que se prendem n'elle sem o conhecer, e se prendem tambem quando o conhecem. A saciedade, o desgosto, e o cansaço são as naturaes barreiras da voluptuosidade. Chegará até ahi a mulher christã? Não o permitta Deus. Até onde irá? É ponto mathematico que separa o peccado do prazer licito; e, quando o limite se procura, onde fica elle já? Raras vezes estamos a sós com a serpente como Eva no Eden, e a freira na cella. Á mesa e em toda a parte ha quem vos distraia, seduza e arraste; bebemos sem sêde; está a bocca repleta, mas os olhos famintos; o gozo que satisfaz a precisão aguilhôa o desejo. Quem houver de parar a tempo na ladeira onde o aventurarmo-nos é permittido, ha de ter mil vezes mais vigilancia, cuidado e poder sobre si, do que lhe seria preciso para lá não pôr o pé. Conceder alguma coisa á natureza é contiçar o fogo que quizeramos extinguir; é alimentar o leão que desejaramos estrangular. Das delicias menos carnaes, toucador, conversação, emprego de teres e do tempo, é ainda mais desconhecido o limite, maior a liberdade, e mais temivel a responsabilidade.

Não me fallem de umas satisfações mentirosas que o terror empeçonha quando se pensa n'ellas, e que o inferno corôa, quando se não pensa no inferno. Por certo que é duro, mas o mais prudente é regeital-as. A abstenção é uma lei simples, clara, e breve: é bastante que haja coragem para a praticar sobretudo nos votos conventuaes. A freira, com o andar do tempo, afaz-se á lucta; curva-se ao jugo; os sentidos privados de excitações amortecem, até que, por fim, a coragem se torna tão inutil quanto lhe foi em todo o tempo inutil o espirito de proceder. Mas, se a lucta intima se prolongasse, a freira para evitar os desvios e as fugitivas rebeldias do corpo e da vontade, careceria de ter até ao seu derradeiro suspiro o inferno diante dos olhos, o cilicio na cintura, e o terror na alma. Assim é, mas que importa? Comparado aos soffrimentos de uma mãe, o que é o cilicio de uma virgem? Quem ousará comparar essas duas existencias? Comparar receios pessoaes com receios generosos? Combates sem testemunhas a combates exemplares? Trabalhos infructiferos a fecundos suores? E fallando sisudamente, e na melhor fé, se uma d'essas duas pessoas devesse copiar a outra, não é de certo a mãe que deveria servir de modelo? A irmã da caridade não é já de si mãe? E a esposa de José que trouxe em seu seio, e nutriu com seu leite o Filho do Homem, e ao pé da cruz lhe recebeu o ultimo alento, não foi ella, em sua amargura, a mãe adoptiva de João, o amigo d'Aquelle por quem chorava?

Que jactancia é essa então d'um desprendimento de affectos e vontades? Para que querem insinuar em nossos lares taes inquietações, terrores e escrupulos, unicas occupações do claustro? E para que é, em nome do ceo, sobrecarregar de jejuns e abstinencias a jornaleira, a camponeza, a mãe, que já vacillam sob o fardo do padecer e trabalhar?

Vê-se que theologia e bom siso são coisas infelizmente contradictorias. Vê-se que seria preciso abolir o inferno para que depois viesse a renuncia das macerações, terrores e falso ideal que um claro entendimento reprova.

Mas porque não se apaga o inferno? Extincto elle, brilharia o purgatorio com luz mais viva e salutar. O inferno é que faz odiosa a liberdade, rebaixando-a e vilecendo-a; o purgatorio volve-a estimavel, realçando-lhe bellezas, dignidade e grandeza, sem lhe dissimular os perigos e as penas. Quem crê no castigo eterno, enterra o talento para que o Senhor lhe não toque. Quem melhor conhece o Senhor e sua justiça faz render cinco talentos em casa do banqueiro, arriscando-se a perdel-os. O purgatorio actualmente de que vos serve? Dizem que a pobre carmelita se abalança a lá arder milhares de annos, por causa de algum secreto estremecimento do seu corpo que ella tanto disciplinou; por causa do captivo espirito que tão enfreado trazia, ou, emfim, á conta do coração generoso, cujas pulsações tantas vezes abafára.

O purgatorio deve aterrar principalmente a freira e os que vivem como ella; ora os mundanos não tem razão de se affligirem, antes devem consolar-se, pensando n'aquelle logar de supplicio. A nós, filhos do seculo, não nos é racionalmente permittido aspirar áquella dolorosa felicidade, que é castigo dos sanctos e o seu primeiro galardão ao mesmo tempo. Em vez, porém, de o desejar, e desejar em vão, como nós o temeriamos, se elle fosse a unica estancia em que se cumprisse a justiça de Deus! Que mudança se faria em tudo d'este mundo! A perfeição e a salvação não estaria na ociosidade em joelhos, no terror em oração, no fugir ao proximo, no entregarmo-nos a algumas privações e dôres corporaes, arbitrariamente substituidas ás dôres e sacrificios de uma vida proveitosa. Então se entenderia que ha dous modos de abusar de nossas faculdades, uma que está no desprezo d'ellas, com receio de as usar inconvenientemente; outra que consiste em nos servirmos d'ellas indiscretamente e ao avesso das intenções da Providencia que nol-as deu.

A doutrina do Evangelho não é doutrina de abstenção; é doutrina de acção: causa porque o purgatorio lhe quadra melhor que o Evangelho. Carecemos menos de frades que de christãos. Se o inferno refreia o mal, tambem impede o bem. A ameaça seria salutar; mas ella faz mais que ameaçar, empedra como a cabeça de Meduza quem a encara a fito. Tende a supprir com uma especie de passibilidade estupida a livre e intelligente actividade da alma. Não derime o egoismo, exalta-o a mais não poder, e tal exaltação devidamente localisada no deserto, n'uma gruta, no claustro, é medonha de vêr-se no seio das familias.

III

Discurso de uma mulher de sociedade que havia tocado a perfectibilidade theologica
 

De que serve amar-se a gente n'este mundo? Acaso nascemos uns para os outros?

Somos apenas companheiros de viagem que uma eventualidade ajuntou por momentos, mas que breve se hão de apartar, e talvez para sempre. Prestemo-nos de passagem alguns serviços, mas por amor de Deus, sem nos ligarmos reciprocamente. Por que ha de a gente amar-se? Vós que me ouvis, sabeis quem sou? E eu que vos fallo sei quem vós sois? Tendes um ar angelical, ó meu irmão, mas o interior de vossa alma não o vejo; o semblante do homem é enganador; a sua lingua é atraiçoada, as suas proprias virtudes são perfidas.

N'este mundo é tudo armadilha e mentira. Que demencia o amar, quando, com certeza, ninguem póde fiar-se d'outrem! Que injustiça querer um que o amem, quando nem a si mesmo se conhece alguem, e a cada hora se altera o genio, e ninguem póde fiar mais da duração de seus sentimentos que da duração de sua vida! Viajamos mascarados, só conhecidos de Deus, mas tão occultos a nós mesmos quanto aos outros. A que propendemos? Mal o sabemos, tão fluctuante é a nossa razão. Se melhor nos conhecessemos, a maior parte de nós se mutuaria rancores; em vez, porém, de se odiarem, os homens se entre-buscam no seio das trevas, attrahidos pelo mysterio que os innubla, e que devêra, se elles fossem discretos, afugental-os uns dos outros.

Ah! não nos amemos, não nos amemos! Ai d'aquelle que dá seus amores á creatura! Ai dos que se amam sobre a terra! É sombra que abraça a sombra, é o nada que se une ao nada. Amavel é só o bem: o restante é detestavel. Meu pai, honro-te e sirvo-te, por que vai n'isso um dever meu, e porque podes ser, sem que eu o saiba, um santo; amar-te, porém, não posso, porque, se n'este instante morresses, ninguem me certificaria de que Deus te perdoára. Eu devo amar em ti, sómente o bem occulto que ahi póde estar, e o amo em ti como nas outras creaturas, sem predilecção por alguma; porque esse bem occulto não provém d'ellas; e, se em ti existe — o que eu não sei, mas muito desejo — não procede de ti. Não te julgo, meu pai. Se eu escutasse o sangue, creio que te amaria até culpado, unicamente porque és meu pai, e eu me lembro de ter dormido em teus braços. Mas estes momentos da natureza corrompida já eu venci. Nada me és. Tracto da minha salvação servindo-te e honorificando-te; mas amar-te seria perder-me, por que amar o homem em si mesmo é amar o peccado. Na outra vida não ha maridos, nem esposas, nem paes, nem filhos, nem familia. Pais e filhos, mães e filhas, irmãos e irmãs serão separados no dia do juizo, desatados todos os vinculos. Não amemos ninguem, ninguem! Já póde ser que o inferno se esteja escancarando para aquelle que amarmos, e quem sabe se nós não cahiremos lá tambem empurrados pelo nosso amor? Nada de sentimentos cegos; nada de sentimentos corruptores. A ternura do homem é um disfarce de odio; e mais valera que elle nos odiasse francamente. Não amemos ninguem! ninguem! Póde ser que por ao pé de nós andem condemnados, cujos nomes ignoramos. Não amemos alguem, que nos não vá sahir algum reprobo.

Sou tua serva, ó meu esposo; servir-te-hei, obedecer-te-hei; e para te agradar o dever me forçará a cumprir o que me pedires do coração, que não é teu.

São doentes os nossos filhos? Por que te assustas? São hospedes que te foram confiados, e que tu deves esperar vêr irem-se ao primeiro aceno de quem t'os mandou. Eu que os trouxe no seio e os criei, vel-os-hei ir, sem lagrimas. Quem sabe onde irão quando nos deixarem? Cumpria que lhes vissemos o fundo d'alma para os amarmos. Praza a Deus que elles morram na sua divina graça! É o meu mais ardente voto; e, se mais além eu fosse, a minha ternura seria fraqueza. Se elles vão ao céo, hei de eu chorar-lhe tamanha dita! E se são condemnados.... Não amemos ninguem, ninguem, nem os nossos filhos sequer! Familia temos só uma: é Deus com os seus anjos, e confessores e santos. Tudo mais não merece uma lagrima nem um sorriso. Roguemos, por tanto, uns pelos outros, filhos do peccado, mas nada de nos amarmos.

IV

Discurso de um mundano, após bastos estudos ácerca da perfeição theologica
 

Em continuo pavor do inferno viveram os santos: orações, jejuns, cilicios, meditar nas escripturas, vigilias ao pé da cruz, bençãos de pobres soccorridos por elles, perpetua immolação, indigencia de cella, ninhos de palha, alimento a pão e agua, nem com tudo isto socegavam. Viviam como anjos, e temiam. Tremiam guerreiros, padres, doutores, pontifices — Mauricio á frente da sua legião; Gregorio, o Grande, sob a tiara; Agostinho, no pulpito; Jeronymo, em suas estudiosas viagens; Antonio e Pacomio no reconcavo das penedias. Noites alvoroçadas de pavor passava Thereza no claustro. Nem a innocencia da vida, nem a adoravel castidade das almas, nem a tunica immaculada, nem as mãos impollutas, nem o acerbo arrependimento dos penitentes, com o rosto sulcado de lagrimas, nada, nada lhes aquietava o medo da colera divina. Redobravam cada dia austeridades e sacrificios, persuadidos de que não mereciam a misericordia que tão precisa lhes era.

Ah! se a alma só assim se salva, perdidos estamos todos, ó meus amigos!

Bem ouço o theologo que nos diz: Não é assim; a salvação ganha-se com menores trabalhos. Deus não exige que todos os seus filhos sejam egualmente perfeitos. Mas ao theologo respondo: Estás perdido como nós, tu e tambem os teus mestres, e os teus discipulos, estaes perdidos todos. Os exemplos que nos cumpre seguir são os dos santos, não são os vossos. Mostrae-nos na Legenda um só santo que subisse ao céo pelo caminho commodo que descobristes. Debalde hei buscado, com fim de o imitar, um homem meio santo e meio peccador, servindo Deus e o mundo, temendo, como eu, a miseria, a dôr, as humilhações, condescendente comsigo proprio, almejando viver no coração de outra creatura, chorando sobre as illusões esmaecidas como Pedro sobre o seu peccado. Não encontrei tal homem. O mais que vi foi milagres de stoicismo, maridos que deixavam as mulheres, mulheres que deixavam os maridos, filhos que fugiam ao abrigo dos paes, ricos que todos seus haveres dispendiam, bispos que fallavam verdade aos reis da terra, á custa da vida até; ninguem que se contentasse de cumprir no rigor da palavra os preceitos de Deus e da Egreja; por toda a parte almas ardentes de zelo super-natural, tendo apenas de humanas os incançaveis escrupulos, os inquietos terrores; justos sem socego, penitentes sem repouso, virgens lagrimosas e anachoretas angustiados.

Vós, porém, que vos quereis salvar e salvar-nos com menos custo; vós, que viveis regalados em quanto o Christo mendiga á vossa porta; vós que tendes riquezas ao sol e riquezas á sombra, quando na vossa parochia tantas familias laboriosas carecem do mais urgente; vós, que cubiçaes a estola, a murça ou mitra; e achaes nas Escripturas louvores para outrem, além de Deus, oh! quanto differentes sois d'aquelles heroes christãos cujas imagens campêam nos nossos altares! Sois o que somos: haveis mais pavor das praticas dos santos que do proprio inferno; espanta-vos e desespera-vos a perfeição d'elles; a pesar vosso, amaes o que elles aborreciam, e aborreceis o que elles amavam; as vossas virtudes são mesmamente humanas, taes quaes as nossas, que não vem do alto, que se enroscam nos nossos vicios e nos acorrentam ao demonio.

Ai! que perdidos estamos, ó meus amigos! Que lucramos em fechar os olhos? Estamos todos condemnados! Que monta o desprezo proprio pregoado pelos labios, se no intimo do coração tendes a propria estima sempre desvelada? Que aproveitam as momentaneas conversões, seguidas de quedas mais desastrosas? Que vos fazem certas privações associadas a tanto regalos? Em verdade vos digo que estamos perdidos!

Ora pois, se assim é, se o abysmo está aberto e o cahir é irremediavel, cerremos os olhos e não cogitemos mais em tal. Entre o céo inacessivel e o inferno d'onde não ha mais sahir, resta-nos um momento só: gozemol-o, ó meus amigos. Que é isto de estar a gente a empeçonhar, com terrores vãos, prazeres, tão raros quão fugitivos? Não pensemos no que será; pensar n'isso e desesperar é a mesma coisa: desesperar de entrar no céo, e desesperar de sahir do inferno. Saboreemos o presente. Vivamos terrenamente: aqui ha creaturas ridentes que nos alegram, fragrancias que nos deliciam, e licores que atrophiam a memoria.

Quem é ahi o sandeu que falla em inferno? Não ha inferno, minha mãe! Conclue em paz os teus dias extremos. Não contristes com visões pavorosas essas creancinhas que te escutam, e que talvez falleçam antes de nós. Ride, ó meus filhinhos: a vida vos será breve e repleta de miserias, quando crescerdes.

Eu desejo, senhora, que a minha casa seja mansão de jubilos e não de tedios: quero ser amado pelo que sou e não por caridade; quero ser obedecido amorosamente e não com submissão de escrava; aliás, buscarei quem me ame, e me corresponda. Engrinalda-te de rosas, minha bella! Não ha inferno, e o paraizo tem-l'o ahi á mão. Enche-me o copo, e dorme placidamente nos meus joelhos. Amar! amemo'-nos, até á morte; que da morte para além começa o odio!

Ah! que bizarra invenção não foi esta do inferno! Um abysmo para onde naturalmente nos inclinamos, attrahidos, impellidos por quanto ha, cahidos em fim, e depois, o abysmo... fechado para sempre! Oh! primorosa perspectiva para que façamos da terra uma estancia de delicias peccaminosas!

V

O rebanho
 

Se não fosse preciso crêr na eternidade do inferno, e no pequeno numero dos escolhidos, e na inevitavel condemnação da maior parte dos homens, eu odiaria como vós os prazeres da vida; o sermão de Jesus na montanha se me figuraria mais bello e intelligivel; eu entenderia a felicidade das lagrimas, as delicias da pobreza e a doçura de todos os sacrificios.

Quando, porém, se me diz que não é bastante haver chorado e soffrido muito n'este mundo para ganhar o perdão divino; quando se me diz que nada vale affrontar a ira dos tyrannos, defendendo, a verdade que os fere, ou o direito que elles avexam; quando me dizem que nada monta morrer no patibulo pela liberdade da patria ou no campo da batalha pela sua independencia; quando me dizem não importa nada envelhecer na miseria por haver preferido a honra ás honras, o estudo á opulencia, o trabalho aos prazeres; quando me dizem que tudo isto é fumo, que estas dores, esta coragem, privações, heroica vida, heroica morte, não podem resgatar minha alma d'um peccado mortal, e aos olhos de Deus não valem o cilicio d'um frade, ou a confissão de um salteador agonisante; ah! confesso que, ao dizerem-me estas cousas em todos os pulpitos christãos, não entendo o sermão da montanha, e pelo contrario começo a comprehender os prazeres d'esta vida.

Vêdes aquelles pescadores que em fragil barquinha vão arrostar as ondas do oceano, e vogar, por dias, semanas e mezes, longe da praia, á mercê das tempestades para ganharem, á custa de mil perigos, o pão de seus filhos?

Vêdes aquelles telhadores na aresta do vigamento? aquelles mineiros sepultados nas entranhas da terra, longe dos raios beneficos do sol? Vêdes o lavrador curvado sobre o sulco? o pallido tecelão diante das machinas devoradoras? tanto operario sem nome avergado ao pezo de um trabalho ingrato e sem descanço? Pois a maior parte d'aquelles é condemnada, por modo que os seus soffrimentos n'esta vida são preludios dos que lá os esperam na outra. Aquella mãe que não póde vestir seus filhos, e que relança olhares invejosos ao palacio visinho, onde os cavallos medram mais fartos que os filhinhos d'ella; — aquelles mendigos que vagamundêam nos campos; os orphãos que se recolhem aos hospitaes; os soldados que marcham para as fronteiras; os proscriptos esquecidos no solo estrangeiro, condemnados, quasi todos condemnados, meu Deus! Um repleto conego, risonho e bochechudo, sem familia nem cuidados, repastando-se quatro vezes por dia, mas sem escandalisar ninguem, baixando a vista em presença das mulheres, pontual nos officios, está mais visinho do céo que todos aquelles desgraçados; e mais perto ainda do céo está um sancto anachoreta. Chorar, soffrer, trabalhar não é nada. Se choram, não choram as suas culpas, é a miseria dos filhos; se trabalham não é por penitencia, mas sim para grangear commodidades. Lagrimas de Babylonia, diz S. Agostinho. Avidos suores, vãs angustias! Muitos seculos ha que d'est'arte se lhes explica o sermão da montanha, e elles nem o comprehendem nem jámais o entenderão. É bem de ver que não vivem á maneira dos santos legendarios, nem dos conegos prebendados. Os que sabem lêr pouco lêem, á falta de tempo. Muitos não vão á egreja, e os que lá vão sahem como entraram. São profundamente ignorantes. A dura necessidade dobrou-lhes a cabeça sobre o torrão que regam com o seu suor; e a natureza, que lhes brada das entranhas da terra, diz-lhes cousas que elles percebem mais a preceito que os sermões. O estridor e o vapor das materias da sua obragem cega-os e ensurdece-os. Não sentem fome nem sêde da palavra divina, qual lh'a ensinavam algum dia. Digam-lhes que um eremita vae melhor do que elles, por que abandonou officio, casa e parentes, e todo se vagou á salvação da alma, e que ha vinte ou trinta annos resa, jejua e se disciplina, dizei-lhes isto que elles vos desfecharão uma gargalhada; mas, se ao mesmo tempo passar um soldado de bigodes brancos, ou algum recruta aleijado em Africa ou Italia, ou algum repatriado do desterro, em vesperas de para lá voltar, se a occasião o exigir, elles o saudarão respeitosamente. Que appareça um velho sem occupação, uma viuva com filhos maltrapidos, e elles se fintarão para soccorrêl-os. Contae-lhes casos de bemfazer e lanços de gratidão, vêl-os-heis commovidos. As virtudes d'esses infelizes são, para assim dizer, selvaticas, probidade orgulhosa, amizades humanas, mas apuradas até á abnegação, instinctos lucidos do que é grande e formoso, mas formoso e grande pela craveira das coisas d'este mundo. De par com isto ha falhas, e até crimes. Impacientam-se, praguejam, largam a redea aos desejos, porque, no seu modo de pensar, se não ganham, tambem não perdem. Vivem á beira das charruas, das córtes, das forjas, e nas abegoarias. Este viver influe-lhes na linguagem e nos costumes. Não têm alma que se ale longo tempo e ao alto sem que as azas lhe falleçam: é que pezam n'ella os cuidados terrestres. Ventilam problemas que não podem resolver. Desconsolados do seu destino, perguntam porque ha ricos e pobres, e porque, no outro mundo, serão condemnados, depois de tanto haverem trabalhado e gemido n'este?

O inferno não os apavora muito mais que a morte. Affizeram-se desde a infancia á vaga idêa de que hão de ser condemnados, seguindo a trilha commum da vida; todavia, apezar do proposito feito, nem por isso um terrivel pezo deixa de lhes aggravar o fardo das dôres quotidianas. O sino que dobra, o sahimento que passa, o doente que vae para o hospital, o pedreiro que cae da parede, o obreiro apertado entre o encaixe de uma roda e triturado nos dentes d'ella, os terraplenadores sotterrados nas saibreiras aluidas, os marinheiros comidos pelas vagas, o typho que devasta um bairro inteiro de operarios, mulheres sem maridos, paes sem filhos, filhos sem mães, tudo isto por vezes lhes relembra o Deus rancoroso que lhes prégam, e as surprezas da morte, e os perigos de sua precaria existencia, e com as miserias que findam outras que principiam, para nunca mais acabarem. Este povo assim é como um rebanho que se leva ao matadouro, aguilhoado pelos pastores, lacerado pelos cães, atormentado pelas moscas, cançado, sanguento, sequioso, abatido, estupido.

Compadecei-vos, pois, d'esses que nunca vos darão bons ermitões. Não ha, por ventura, um ideal mais aceitavel e ao mesmo tempo mais puro que lhe mostreis? Não ha senão esse a que aspira o ente sem familia, sem ligações e cuidados d'este mundo? Se, ao menos, podesseis annunciar-lhes a justiça de Deus sem os assombrar! Não são já de si que farte mysteriosas e raladoras as dôres d'esta vida? Não será de mais rematal-as com o terribilissimo mysterio do inferno? Pois se tendes a certeza que serão condemnados no trem de vida que levam, deixae-os respirar, e beber, e rir e dançar, em quanto o animo e tempo lhes não faltam; que a desesperação poderá leval-os a peores excessos.

Ó pobre genero humano! Será preciso que o Christo desça segunda vez do céo para te instruir, e que outra vez seja vindo e crucificado para salvar-te?

  1. Costumes dos israelitas e christãos, tom. II, cap. 53.
  2. Costumes dos israelitas e christãos, cap. 26. — Citei esta excellente obra por que ella é manuseada por todos, e facilima de consultar. De mais a mais, depara-nos a indicação das fontes onde o auctor bebeu, dispensando-nos assim de as indicarmos n'este livro.
  3. Elles comparam as irmãs da caridade áquella mulher de Bethania chamada Martha, a qual, vendo entrar Jesus em sua casa, se deu pressa em lhe servir a ceia; e comparam a carmelita á Magdalena que, em vez de ajudar Martha nas suas diligencias, lavava e perfumava os pés do divino hospede, enxugando-os com os seus cabellos. Diz porém o Evangelho que Jesus estava á meza quando Magdalena lhe abraçou e ungiu de lagrimas os pés. Não ha palavra na relação dos apostolos, d'onde possamos colher que é melhor orar pelos famintos do que alimental-os. O contrario é que lá se diz; e quando Jesus nos faz assistir de antemão ao julgamento do dia final, exclama: tive fome, e vós me alimentastes; tive frio, e me vestistes. A scena de Bethania, e o louvor dado a Magdalena, não desluz o claro ensino do Evangelho. Este episodio prova sómente que não basta alimentar os pobres, mas que tambem é mister instruil-os como filhos de Deus, os melhores amigos de Jesus, e sua visivel imagem na terra: o que rigorosamente fazem as irmãs da caridade, e não fazem as contemplativas.