O Inferno (Auguste Callet)/I/V

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CAPITULO QUINTO

OS CINCO GRUPOS
 
Divisão da sociedade em cinco grupos
 

Examinemos as coisas mais á beira. A sociedade não é toda formada de uma peça. Divide-se naturalmente em differentes grupos no discutir de seus interesses em este e no outro mundo. Religiosa e moralmente observada, podêmos dividil-a em cinco grupos.

1.º O grupo dos philosophos, ou livres-pensantes como hoje se chamam — sugeitos que systematicamente regeitam a revelação, e por consequencia o inferno sem fim; todavia, desinteresseiros, estudiosos, graves e tractaveis com honra e confiança.

2.º Longe d'estes a infinita distancia, e sem sombra de liga com os philosophos, está o grupo dos biltres professos, individuos relaxados, bandidos convictos, corruptos, desesperados.

3.º Entre aquelle grupo de espiritos selectos e o das almas depravadas, mas entre si equidistantes, está o grupo immenso e indecomponivel dos indifferentes, dos tibios, dos duvidosos, dos espiritos futeis, dos espiritos inertes, dos espiritos acanhados, dos fura-vidas, dos pachorrentos — turba sem piedade nem philosophia, sem prática de casta alguma, vivendo de seu trabalho, das suas rendas ou officios, mais ou menos descançados — guardas nacionaes, jurados, eleitores, conselheiros de districto, e o mais. Estes são uns christãos que só vão á egreja quando ha enterro, casamento ou baptisado, ou ainda em dias de Te Deum, quando a posição official os obriga.

4.º Ao lado e um tanto superior a este, está o grupo menos numeroso dos devotos; não dos hypocritas, que se ha de classificar no dos patifes, mas dos esforçados em praticar e que praticam, assim, mas com desinteresse, os mandamentos de Deus e da egreja. Estes vão á missa nos domingos, confessam-se ás vezes, e dão do seu gremio as irmandades e as confrarias.

5.º Finalmente, o admiravel grupo dos justos, dos perfeitos christãos, dos santos, dos continuadores e verdadeiros imitadores da vida de Jesus.

Vejamos se o dogma das penas eternas aproveita ás pessoas que formam aquelles differentes grupos.

I

O grupo dos philosophos
 

Os philosophos crêem em Deus, crêem na liberdade e immortalidade da alma, na justiça, em todas as noções moraes derivativas d'aquellas primaciaes verdades. Em revelações sobrehumanas é que não acreditam.

Ora, ameaças de inferno converterão tal gente? De quantos mysterios regeitam, o inferno é o mais incrivel; e tanto que irrita a propria fé, que, só abdicando o uso da razão, se submette. Dos philosophos não ha que esperar similhante sacrificio.

Se o dogma do purgatorio vos aproxima d'elles, o inferno, barreira que vos separa de tudo que raciocina, alonga-os de vós.

II

O grupo dos corruptos
 

Que lucram as pessoas de bem que esses patifes creiam no inferno? Está com isso a sociedade mais segura? E tal crença de que lhes serve a elles? O que os incommoda não é o diabo, é a policia; inquieta-os mais o degredo que o inferno.

Vá lá! — dizem elles — venha o inferno que não nos ha de faltar boa camaradagem! Quantas pessoas toparemos lá d'umas que n'este mundo se empavonavam todas, e não queriam rossar-se por nós! Havemos de vêl-os lá, mais apoquentados e castigados do que nós, esses patetas condemnados por pensamentos e palavras, por coisa nenhuma. Quanto á pessoa d'elles, tanto monta como a nossa, pois que hão de ser tão condemnados como nós. Não ha dois infernos, parceiros; ha um. Lá nos esbarraremos com capitalistas, com fidalgos, com duquezas, com comicas. Andaremos á ilharga dos juizes, dos quadrilheiros, dos escrivães, dos jurados e melhor ainda — viva a patuscada! — com deputados, com camaristas reaes, com bispos, com abbadessas, com principes e princezas, reis e rainhas. Venha o inferno! é tentador lá ir com tal sucia.

Tal é o raciocinio dos desalmados e a influencia que tem sobre elles aquella extravagante justiça, que nenhuma proporção gradua entre delictos e crimes, condemnando para sempre quem peccou uma hora, e o scelerado de toda a vida.

III

O grupo dos indifferentes, etc.
 

Estas pessoas cuidam em ser felizes com o auxilio da honestidade; pelo quê, se abstem do mal que o codigo define. Pelo que respeita aos sete peccados mortaes, não se preoccupam d'isso. Dizer que todos sejam invejosos, avarentos, luxuriosos, e o mais, seria mentir. N'esse innumeravel grupo abundam negociantes honrados, meninas castas, esposas fieis, pobres sem inveja, ignorantes modestos, ricos bemfazejos, e muitas abelhas para cada zangão; mas perfeito ahi não ha ninguem; ninguem ahi vive em graça; o melhor do rancho é aquelle a quem Deus, no dia do juizo, só accusar de ter violado sem escrupulo todos os mandamentos da Egreja. Mas, com esse só peccado na consciencia, o melhor do rancho será condemnado.

Se o roubo e o homicidio são raros n'essa assemblêa, não procede isso do medo do inferno. Ahi é bastante motivo para condemnação uma folha de papel escripta, um «sim» apenas balbuciado e ouvido, um lance d'olhos, uma flor murcha, e essa, onde entra amor — amor no peccado, meu Deus! — é de todas as condemnações a que mais piedade desperta. Porém, n'esse immenso circulo, onde tudo pecca, cada qual se condemna á sua vontade: um por fastio; outro por vaidade, este por curioso, aquelle por pusillanime; condemna-se um por um casal, outro por uma venera, por um acepipe, por um prato de lentilhas, por um penacho, por uma fitinha, por um trapo, por trinta contos, por trinta reis. Condemna-se este a trabalhar, aquelle a passear, um a comer, outro a jejuar, a ler, a dansar, a palestrar, a meditar, a vestir, a despir, desde a aurora até ao escurecer, desde a noite até ao dia, todos se condemnam a bel-prazer.

Distinguem-se lá os peccados que Deus pune indistinctamente. Permittem-se os que Deus castiga até com eternas penas, quando é elle só quem pune; recua-se, porém, dos que Deus castiga e a sociedade tambem. Não se diga pois que o inferno atalha os crimes dos indifferentes. Tambem ahi é manifestamente esteril similhante crença. O que se teme é o vigia, a patrulha, o commissario da policia, essas personificações vulgares, mas terriveis da opinião e da lei. Temem-se as algemas, o carcereiro, a masmorra, e ainda mais á mistura com os scelerados. Por muito dura e inevitavel que se figure, a pena material não os conterá sempre quando a paixão os esporêa. Do mesmo modo que affrontam o inferno, affrontariam a cadêa e até a forca, se a forca estivesse ás escuras; porém a vergonha, o estrondo da queda, é para o maior numero a pena intoleravel. Seriam capazes de desafiar carrascos e diabos; e não ousariam encarar o desprezo do amigo, do visinho, do estranho, do transeunte, do mendigo; não lhes faz grande mossa a ignominia diante de sua mãe ou de seus filhos, e tremem de se vêr baralhados com creaturas devassas que são máos sem repugnancia, e medram no mal como em seu nativo elemento.

Ha d'elles, porém, que se forram ao mal, contidos por sentimento ainda mais nobre que o medo da opinião. Esquivam-se, não do peccado mortal, mas do maleficio que a sociedade civil pune ou reprova: afasta-os d'isso com asco um natural sentimento, sem esforço. Educação e habitos fortaleceram esses bons instinctos. Não são perfeitos, mas são probos, sinceros, generosos, capazes de grandes sacrificios occasionalmente. Com certos deveres nunca especulam. Denotam que a si se respeitam, que a propria estima se lhes faz precisa, ainda mais que a da sociedade, facil de transviar-se. E bem que não sejam philosophos nem devotos, sentem vivamente a dignidade de seu ser. É certo que este sentir lhes seria mais delicado e firme, se abrangessem as perspectivas da vida futura, em vez de concentrar-se cá; mas é forçoso aceitar os indifferentes quaes são; e tanto entre os peores como entre os melhores, a vida futura não é movel nem empêço: é uma coisa esquecida.

IV

O grupo dos devotos
 

Será medo do inferno que impede os devotos de matar, de roubar, de se retoiçarem, como javardos, no lamaçal dos sentidos? Crer-se-ha que elles de per si sejam insensiveis á honra, ao opprobio, e aos mais freios moraes e nobres estimulos que regulam a ordem e andamento das sociedades temporaes? Ririam elles das galés e até da forca? Seriam elles, em verdade, infames da ultima ralé, se não receassem a condemnação?

Se ha ahi tal raça de christãos, confesso que eu não confiaria d'elles nada, nem a minha bolsa, nem minha mulher, nem o meu segredo, nem eu mesmo adormeceria socegado entre elles. D'um scelerado a um devoto d'esta laia a distancia é tão curta que os meus pobres olhos não na enxergam. Dizem que ha uns pessimos soldados que, á vista do inimigo, olham para traz e só marcham para a frente com a bayoneta nos rins. E, se os não vigiaes, eil-os que desertam; e, até quando se batem, albergam a perfidia no coração. Pois bem: aquelles devotos são peores que os soldados tredos, por que destemem os homens e os juizos humanos, e os supplicios que os homens inventaram. O que elles sómente receiam é o fogo eterno, uma pena á qual se foge mediante a confissão. Ageitado o ensejo, roubam-vos, atraiçoam-vos, matam-vos, com a certeza de serem absolvidos occultamente, por uma mêa culpâ. Desgraçadamente é certo que a crença no inferno ha gerado monstros assim; a europa barbara tem milhares d'elles; ha bastantes para lá dos montes, e bem póde ser que mesmo cá; senão vejam aquelle devoto padre, cuja historia as gazetas contaram ha pouco: era um padre que matava todos os seus filhos no berço para se forrar ao incommodo de os crear; mas é provavel que os baptisasse, com o receio de que se perdessem. Eu de mim não quero chamar christãos, nem sequer homens, a taes feras. Deus nos livre de encontrar similhantes christãos em uma serra por noite de luar.

A honestidade d'estes meus devotos custa-lhes pouco; são creaturinhas que podem ver a felicidade dos outros sem sentirem cocegas de lh'a empalmar; não roubam nem matam por que a forca os embaraça, e a opinião dos homens ainda mais; pessoas, em fim, que tem mais mêdo ao crime que aos castigos correspondentes. Taes são os meus devotos. Devotos denomino eu todos os leigos que não duvidam, nem são indifferentes, nem se esquecem de ir á missa, nem deixam de confessar-se ao menos uma vez cada anno. É verdade que eu não os incampo a ninguem como anginhos já cosinhados para a canonisação. Se elles não andassem por igrejas com tanta regularidade, não sei bem como estremal-os, quanto ao seu proceder, do bando dos indifferentes. Não são elles os derradeiros a informar-se d'onde sopra o vento, onde aquece o sol, e onde está o idolo do dia para o saudarem, nem tambem são os ultimos a apedrejar o idolo da vespera. Quantas villanias sobre-douradas e quantas villanias bem nuas e patentes lhes não attrahem as barretadas, e os cumprimenteiros sorrisos! Como elles se curvam deante do que desprezam! Que impio acatamento prestam á força, e até, com medo de se enganarem, ás apparencias da força! Que vulgares mexericos, que vulgares ambiçõezinhas, que exemplarissimas ingratidões!

Não os accuseis de hypocritas, que elles são sinceros, não fazem momices, vão ás procissões com a melhor boa fé, assistem ás festas do Mez de Maria, tem rosario, agnus-Dei, e penduram no pescoço medalhinhas de cinco reis carregadas de indulgencias. E, assim mesmo apezar da sua boa fé em medalhas, é bonito vêl-os, em sua casa, evitar o escandalo com melhor exito, e mais vigilancia que o peccado. E nem assim o evitam. Se sois curiosos, apanhai-m'os no ultimo degráo da escada, ahi por perto do altar: vereis o conego ás más com o deão; o sineiro bate na mulher; o sacristão tem má lingua; um juiz de irmandade casa a filha violentada com um velho, e dá cabo d'ella; outro, á sobre-meza, faz-se truão de chalaças de ebrio; e é de natureza tal, que a mulher por certas razões não admitte em casa creadas que não tenham edade e figura bastante canonicas, capazes de edificarem um mosteiro de bernardos; lá está um que é rico, mas economico, e d'isso estão os pobres tristemente convencidos. Ora, a esses peccados habituaes ajuntem, se quizerem, os peccados de occasião, e digam-me como se distinguem, por suas obras, o commum dos indifferentes do commum dos devotos.

Quereis subir ao primeiro degráo da escada? Luiz XI era devoto; Diana de Poitiers era devota; Brantôme devoto era; tambem era devota aquella regente de França que empregava as suas damas a seduzir, quero dizer, a converter os jovens huguenots e os velhos tambem. Todo o seculo XVII foi devoto, incluindo os cavalleiros farçolas, os bandidos, os abbades galans e os abbades demoniacos, os aváros e os glotões, os orgulhosos e os abjectos, as marquezas adulteras e os duques medianeiros, os magistrados venaes e as princezas aventureiras. Todos esses tinham bancada na egreja, iam aos sermões e discutiam ardentes sobre a materia da graça. Os amantes arrufavam-se na quaresma e faziam as pazes depois de Pascoa. Madame de Montespan, na côrte, cuidava em salvar-se, e ninguem quizesse obrigal-a a comer, á sexta feira, uma aza de borracho; o que ella então comia era salmão, lagostins, esperregado e pastelinhos de leite. Madame de Sévigné, uma das mais honestas e amaveis senhoras d'aquelle tempo, tambem devota, lia os Contos de La Fontaine, e ficava-se a rir com elles e mais a filha. O inferno era como se nada fosse n'essas coisas. Quem desgraçadamente pensava muito n'elle, enterrava-se no claustro, como Mr. de Rancé e M.elle de La Vallière; mas, pelo ordinario, havia pouco quem se debruçasse a espreitar o tal abysmo; e quem se desse a esses exames sahia impertinente, misanthropo e jansenista. Fallava-se do inferno; mas sem reflectir grande coisa; encaravam-no pela casca. O grande caso era rir, cortejar o rei, agradar a todos, inclusivè a Deus, dando-lhe a vêr com infinita habilidade, espectaculos de devoção, de jogo, de ambição e... do mais.

O tempo e as revoluções que tantas mudanças tem feito, não mudaram o coração humano. Os devotos não são tantos como d'antes, mas são da mesma estôfa, e tanto montam estes como os outros, vistos a vulto. Relaxação extrema em fidalgos e populaça; sêde ardentissima de enriquecer; sordidissimos orgulhos; amores desatinados; paixões eriçadas de remordentes espiritos e blandiciadas de prazeres! Deus me defenda de calumniar peccadores a cheirarem ao incenso das igrejas! Bourdaloue, que os conhecia, e os demais prégadores assim antigos que modernos, disseram d'elles mais mal do que eu. O que sei é que o medo não faz bons aquelles que o bem, só de per si, não convida. O pejo do peccado poderá restaurar os cahidos; mas o medo, depois do peccado, é de todo o ponto inutil.

Não esqueçamos, porém, que ha devotos quasi irreprehensiveis, os quaes, sem serem heroes nem se destinarem a tanto, cumprem, sem desfallecer, a modesta missão que lhes quadra sobre a terra. São bemfazejos em pequena escala; restringem-se a pouco mais de sua casa; quanto muito, chegam até á visinhança; e, se por vezes, a mão caridosa ultrapassa estes limites proveitosamente, de novo se retrahe ao seu limite, onde está a maior formosura e grandeza de sua missão. Estes devotos não se distinguem dos outros por grande assuidade nos templos; o que os differencêa é o serem esmoleres; e mais visivelmente se estremam por se absterem do mal. Não são rixosos nem maldizentes: tem ainda mais caridade na lingua do que nas mãos, por que ella os serve com inexhauriveis riquezas. D'aquelles peccados mortaes que a sociedade chama fraquezas, e em que diariamente as pessoas piedosas resvalam sem morrerem d'isso, fogem elles como d'um grande delicto. Amam a verdade, a ordem, a continencia, o pudor, a sobriedade, como vós amais a justiça. E, comquanto não descream do eterno fogo, a luz que os guia não esplende do inferno, vem de cima; no ceo é que elles a buscam em seu peregrinar; e assim vão alentados pela esperança e não pelo medo.

V

O grupo dos santos
 

Chegados somos aos bemfeitores dos homens, verdadeiros imitadores de Jesus, entes mortaes mais proximos da perfeição, as irmãs da caridade, os padres virtuosos, quantos se consagram a servir pobres, infermos, ignorantes; quantos sacrificam, não esterilmente, mas ás nossas precisões, seus teres, belleza, juventude, affeições domesticas, vigor, saude, esperanças e quantas venturas terrenas ahi ha. Bem sei que todos esses crêem no inferno; mas não são regidos por tal crença; nada tem que vêr o seu proceder com ella; temem-se de offender Deus, não por que Deus é vingativo, mas antes por que Deus perdôa; e esta crença verdadeiramente salutar é uma das mais affectivas maneiras de amar.

Se o temor leva ao deserto, o amor conduz aos homens; se o temor se fecha á chave para dentro de grades, o amor quer sempre abertas as portas. Quem envia ao martyrio os missionarios é o amor; quem dá mãe a orphãos, filhas aos anciãos, irmãs aos soldados feridos, mestres aos aldeãos, amigos aos penitentes, tutores aos innocentes, guias aos transviados, é o amor. Todo bem feito n'este mundo é o amor que o faz; e este amor, que transborda da alma dos santos, em si mesmo haure sua fecundidade e bemfazeja energia.

Permittam-me uma hypothese.

Dê-se que um Concilio ecumenico se ajunta ámanhã, e declara, depois de haver invocado o Espirito Santo, que o inferno não é perpetuo, e que a palavra «eternidade», applicada ao castigo dos peccadores, significa tão sómente pena de infinita duração. Que ha de seguir-se a similhante proclamação? Imaginam que a irmã da caridade se retira logo do grabato do infermo, e se engolpha nas suas delicias mundanaes? Pensam que o benedictino, sacudindo o pó dos livros, se precipita na Bolsa? Que o joven lazarista, repatriando-se de regiões remotas, venderia o cajado e o breviario para ir ao theatro? Imaginam de boa fé que as irmãs da caridade se acabariam para logo? Se pensam isto, que idêa formam dessas bonissimas almas que os anjos e os homens admiram?

Consoante ao vosso modo de as julgar, a irmã da caridade diria: Ah! Deus não é implacavel? Então fui louca em amal-o. Deus não condemna irremissivelmente os peccadores? Louca fui em servil-o. Pois que! n'aquella bemaventurada eternidade, que eu tanto anhelava, não hei de ouvir os gritos da raiva e o estridor dos dentes dos condemnados? Que é d'então dos encantos do paraiso? Meninos, procurem quem os eduque; anciãos, procurem quem os alimente. Orphãosinhos desamparados, vós pensaveis que nós eramos vossas mães e irmãs; cuidaveis que vos amavamos por causa de vosso infortunio, e por vos termos em conta de membros soffredores de Jesus Christo, nosso modêlo e nosso Deus. Desenganai-vos! desenganai-vos! Não era por amor que vos amparavamos, era por medo que vos serviamos como lividas escravas, covardemente flexiveis a todos os caprichos de um senhor imperioso. Mas agora, visto dizerem-nos que o inferno acaba, buscai quem vos ame e sirva. Cada qual por si. Acabou-se o medo; nada de mais sacrificios. Abaixo, tunicas de burel; abaixo, veos que nos escondieis volupias da terra, mas não as dôres, abaixo! A pureza não é enlevo que nos contenha; gemidos de pobres não nos engodam; queremos ter vez na taça do peccado; bebamos, que a vida é curta e o inferno ha de acabar.

Não ha conjunctura em que eu ousasse attribuir similhante linguagem ás irmãs da caridade. Nunca! ainda quando, em um nefasto dia, fosse abolido o dogma salutar da justiça divina; ainda quando pregoassem que tudo acaba no cemiterio, e que a sancção da moral está nos gosos e dôres deste mundo, as irmãs da caridade não fallariam assim. Se um concilio sahisse com aquellas decisões, regulal-o-hiam ellas.

Como é que o dogma do purgatorio, com seus flagellos de duração ignorada, sempre consoantes á natureza e circumstancias do peccado, ás luzes e costumes do peccador, — como é que este dogma tão racional, certo, mysterioso e terrivel, poderia enfraquecer a virtude, e a virtude principalmente d'aquellas almas livres, viris e modestas, nas quaes o amor tem mais dominio que o medo?

Crêde-me que é isso um demasiado aviltar a lama humana, que mostraes não conhecer; crêde-me. Se a Igreja ámanhã proclamasse a temporalidade das penas, nenhuma irmã da caridade deslisaria da sua fileira, nem um verdadeiro sacerdote abandonaria a sua grei, nem algum missionario acharia o Evangelho desataviado de excellencias que ensinar aos selvagens, nem a cruz radiaria menos, nem a palma dos martyres seria menos de invejar. Vêr-se-hia, ao invez e instantaneamente, encherem-se todas as igrejas, e justos e peccadores reunidos ao pé do altar, em um mesmo consenso de acção de graças, cantarem do fundo da alma:

Te-Deum, laudamus, in te, Domine, speravi; non confundebar in æternum.

 
FIM DA PRIMEIRA PARTE.