O Inferno (Auguste Callet)/II/I
CAPITULO PRIMEIRO
Até agora consideramos o inferno sómente em relação aos resultados moraes que a crença de sua existencia tem produzido, produz e produzirá sempre n'este mundo. Já demonstramos que esta crença, fatal a quantos se compenetram d'ella, é inerte para os demais: é inutil aos verdadeiros virtuosos, por que não tem que ver com o bem que praticam, e tambem ao mal que não fazem; é inutil aos devotos e indifferentes, por que não os estorva de commetter basta dóse de peccados mortaes; e pelo que toca aos peccados que não commettem, tal abstenção explica-se em louvor d'elles, por motivos totalmente independentes das penas infernaes; é inutil para os philosophos, visto que estes a não acceitam; é, emfim, inutil aos scelerados, por que os não impede de ser scelerados; e, de mais a mais concorre, umas vezes, a precipital-os no crime, outras a empedernil-os na perversidade.
Falta agora considerar o inferno, não em referencia á terra, mas pelo que elle é em si, qual os padres, doutores e mysticos o pintaram, isto é, nas suas relações com Deus, com os predestinados e com os reprobos. Mas, antes d'isso, cumpre-nos dizer alguma coisa das opiniões de Platão ácerca da justiça divina e do inferno. Será isto, a um tempo, entrar no assumpto, e responder aos theologos que, á mingua de razões, invocam de vontade, n'esta materia, a auctoridade de Ovidio, de Horacio, de Lucrecio, de Virgilio, de Hesiodo, de Orpheo, e d'outros escriptores de costumes sobre modo extravagantes que, a tal respeito, repetiram as idêas do antigo paganismo e nada mais.
A opinião de Platão, que elles mais acintemente allegam, deriva da mesma fonte; mas, alumiada pela indole e pura vida d'aquelle philosopho, ostenta-se mais respeitavel e seductora.
É mister, no dizer de Platão, que um castigo seja razoavel para ser justo; e para que seja razoavel, uma de duas clausulas é precisa: ou que o castigo aproveite ao castigado, ou ás testemunhas d'elle.
Partindo d'este principio, Platão não prodigalisa, á feição dos nossos theologos, as penas eternas, por quanto, a seu parecer, falta n'ellas a grande virtude das penas temporarias. São estas, em verdade, dobradamente prestadias, pois que ao mesmo tempo corrigem o culpado e admoestam os espectadores; pelo contrario, as outras não corrigem o culpado e podem apenas admoestar os vivos que as conhecem: logo são menos prestantes e universaes e completas; falta-lhes aquella bemfazeja efficacia com que os deuses folgam de dulcificar as obras da sua justiça; digamol-o em pouco: são menos divinas.
Eis-ahi porque Platão é aváro das penas eternas e perdoa ao maximo numero de peccadores, descontando-lhes os gemidos, lavando-os e purificando-os em suas proprias lagrimas, á excepção dos oppressores dos povos, de seus cumplices e louvaminheiros que expressamente exclue da lei commum. Para estes é elle durissimo; eternisa-lhes as dores; todavia, os deuses não podem ser accusados por isso de inutilmente rigorosos.
De feito, se a tyrannia é o maior dos crimes, e o unico expiavel, é porque a liberdade, que ella anniquila, é o maior bem que os deuses nos doaram, unico impossivel de substituir; é porque, na sociedade escravisada, cessam os prazeres honestos, a verdadeira gloria, sabedoria e virtudes.
Tal é o senso intimo do castigo excepcional que Platão applica aos tyrannos. Bastantemente está explicado a superioridade do terrivel castigo; mas o que não se explica é a razão da sua perpetuidade. Platão suppunha-o eterno porque não sabia, como nós, que a humanidade tem que percorrer no tempo um circulo limitado, e que este universo ha de acabar. Eternisava elle, por tanto, o supplicio dos tyrannos, por suppôr que o seu exemplo devia ser eternamente util na terra. Não ha outra maneira de lhe justificar o inferno no seu systema.
Foi, porém, esta justificação do inferno destruida por Christo, o qual nos annunciou que todo o genero humano é, como cada homem, um passageiro na terra, e que um dia virá em que esta esphera que habitamos, e estes astros que nos alumiam, se sumirão no espaço como a poeira que o vento da noite espalha. Quem utilisaria com o supplicio dos condemnados, quando as testemunhas, em vez de fracos mortaes, fossem santos impeccaveis?
O inferno dos theologos não é, pois, identico ao inferno de Platão: o de Platão devia ser util sempre; o dos theologos, por fructificar um dia, ficaria esteril para sempre. Essa esterilidade já lh'a nós presentimos. Indagamos a razão d'uns padecimentos improficuos á victima, ao juiz, a todos. O coração protesta contra tal crueldade sem intento e sem effeito. Córa a gente só de o crêr. Como que o homem se sente melhor do que essa divindade absurda, sedenta sempre de torturas, ebria sempre de ira, insensivel sempre, peior que o abutre do Prometheo, que ás vezes, ao menos, adormece sobre a preza. Só pensar n'isto gera o atheismo na alma.
Erradamente, pois, se invoca, em pró de similhantes castigos, o testemunho de Platão, que se horrorisaria d'elles. Platão não condemnava o pobre pegureiro por algum roubo desconhecido ou tentativa malograda; mas bem póde ser que elle condemnasse inflexivelmente S. Clotario, S. Constantino e S. Carlos Magno. Além de que, elle tinha, para admittir um inferno sem fim, razões que não temos; e nós, para o rejeitarmos, temos razões que elle ignorava.