O Inferno (Auguste Callet)/II/IX

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CAPITULO NONO

JUDAS ISCARIOTE
 

I

Eu escolheria d'entre os condemnados o mais desprezivel, se no inferno existisse um miseravel maior do que Judas.

Este vivia na amisade de Jesus; ninguem lhe conhecia mais de perto a innocencia; e, como elle fosse o particular distribuidor das esmolas (João, c. 13, v. 29), ninguem lhe conhecia melhor a bondade. Não obstante, vendeu-o; e, depois de o atraiçoar, voltou, ceou com elle, e, ao escurecer, guiou os soldados que o prenderam; e, como os soldados o não conhecessem, deu-lhes signal, abraçando-o. Eis aqui o crime circumstanciado. Premeditação, cubiça, villeza, tem de tudo. Judas vende o mestre e o amigo, o sabio e o justo. Vende-o sem colera, sem paixão, por bom dinheiro de contado, como venderia na feira um jumento ou um boi. Sabe que desejam matal-o; não importa! vende-o. E que será depois da Mãe de Jesus? e dos doentes que elle curava? e dos ignorantes que ensinava? Ah! que tem Judas com as lagrimas de mãe e com a ignorancia e lastimas do povo? Negociou com todas essas dores como mercadejou com a amisade, com a sabedoria, com a innocencia, com tudo que ahi ha divinal n'este mundo. Embolsou o preço; e, a fallar verdade, nem os phariseus nem elle avaliaram cara a mercancia: trinta dinheiros! dez vezes menos que a libra dos perfumes de Magdalena.

II

Um dos primeiros effeitos da perfidia de Judas foi a defecção dos apostolos. Em vez de seguirem o Mestre, falsamente accusado de sacrilego e seductor, dispersaram-se: Thiago, Simão, Thadeu, que elle chamava seus irmãos, João, o seu amigo dilecto, todos por egual covardes, não cuidaram senão em salvar-se. «Conheces este homem?» perguntaram a Pedro. — Não, — diz Pedro, o chefe, o mais corajoso de todos — não o conheço. — Renegou-o trez vezes; trez vezes mentiu; trez vezes testemunhou de falso em face dos accusadores: depois, chorou na escuridão, e calou-se. Todos deixaram injuriar, calumniar, chibatar e morrer Jesus, sem erguerem brado em sua defeza e duvidando que fosse Deus, duvidando-lhe da missão, das promessas; bem que, para grande opprobrio d'elles, certos de sua amisade, pureza de vida, e excellencia da moral. Para se reanimarem foi preciso o milagre que o pae Abrahão recusou ao rico avarento; nada menos que resuscitarem os mortos, e que propriamente Jesus saísse do sepulchro, e que elles o vissem, e conversassem e comessem em sua companhia, e que Thomé lhe tocasse as chagas. Desde então é que prégaram com inabalavel fé a divindade de Jesus.

III

O peccado dos apostolos, n'esta lamentavel historia da Paixão, é, na essencia, egual ao de Judas, bem que não tanto odioso. Faltou-lhes a todos a fé; porém, sendo a fé um dom sobrenatural, não devemos arguil-os desabridamente porque não receberam o dom. O que do seu proceder nos irrita é deixarem ir até final, sem publico protesto, a obra de Judas; é que abandonassem o innocente amigo que os outros tinham vendido; é que não dissessem a Pilato ou Herodes: «Não! este homem não é sedicioso; quer que se dê a Cezar o que é de Cezar, e a Deus o que é de Deus; paz, desinteresse, e caridade são a sua doutrinação.» Isto bem o sabiam elles, e não o disseram, e deviam têl-o dito, sem medo, e não abafarem, como fizeram, o grito da consciencia. Este é que é o crime dos apostolos, crime natural, como o de Judas.

Bem se deixa vêr que, se Judas vendeu o seu Deus, não pensava elle que vendia Deus: vendeu-o sem vêl-o, sem reconhecêl-o divino. O que elle a sabidas vendeu e quiz vender era um homem, pelo mesmo theor que os apostolos desampararam e quizeram desamparar um homem, mas o melhor e mais sabio homem, e o mais carinhoso amigo.

Vender Deus! renegar Deus! É isso crivel quando se crê em Deus? Tal crime, á força de disparatado, ficaria impune, como acto de sandice! Judas foi ingrato, ladrão, egoista, traidor doble, fallacioso, assassino; tudo isso foi e mais ainda; mas o certo é que, no intimo de seu coração, Judas não se julgava deicida.

IV

Por mais infame que haja sido, Judas não o era tanto que não comprehendesse a torpeza do seu acto. Tanto a comprehendeu que não se pôde afazer á sua villania; e, em quanto os apostolos se escondiam, foi elle — dolorosissimo acto! — confessar sua perfidia no templo, e restituir o dinheiro aos compradores, dizendo: «Vendi o sangue do innocente.» Mas ninguem se desata do seu remorso, como de um dinheiro que encrava espinhos na consciencia; e, na bôcca de um traidor, o testimunho a favor da innocencia perde muito de sua efficacia. Sentiu-o vivissimamente Judas quando, apoz confessar-se do crime, os phariseus lhe responderam: «Que se nos dá d'isso? Lá te avém.» Saíu então do templo, convicto de que não estava em sua mão sustar as consequencias do seu crime, corrido, desesperado, indo ao encontro da morte que merecêra, mas que ninguem lhe dava, para que a sua penitencia fosse maior n'este mundo.

V

Vida de opprobrio e remorsos é expiação. Judas deveria viver. Porque se matou? Se elle cresse na divindade de Jesus, não se mataria, pois que, matando-se, ía entregar-se nas mãos d'Aquelle que atraiçoára. Por que se matou? O suicidio nada remedeia, e tira da contemplação dos homens o salutar espectaculo d'um criminoso contricto. Procurava elle anniquilar-se? A anniquilação ser-lhe-hia doce refugio: o nada não é pena. Ora é certo que ninguem disse que Judas fosse atheu. Se elle descrêsse de Deus e da vida futura, como explicar-lhe os remorsos? Que é crime, quando se crê que tudo acaba comnosco? Se não cresse em Deus, Judas guardaria os trinta dinheiros. Que temia elle? Como cumplices de seu crime tinha todo Israel, os padres que o corromperam, os senadores, Pilato, Caiphás, e a côrte de Herodes, e os proprios apostolos que negaram a victima. Então por que se matou?

VI

No suicidio de Judas ha terrivel mysterio; mas tambem, n'este mysterio, ha relance luminoso, e vem a ser que Judas, depois de confessar a perfidia, na face dos tentadores, calcando o ouro recebido, vagando loucamente pelas ruas de Jerusalem, valia tanto pelo menos como o senado judaico que continuava deliberando friamente a morte do justo, como Pilato que lavava as mãos, como Herodes e sua côrte que riam de tudo, e como os covardes amigos cujo testemunho, n'aquella conjunctura, seria muito mais importante que o d'elle. Tal monstro revertido a homem, de si mesmo horrorisado, saiu da cidade, entrou aos campos por onde tantas vezes estancára com o affavel Mestre, viu-se indigno de apertar a mão d'um amigo, porque havia trahido o mais fiel de todos; viu-se indigno de piedade por que a não tivera; e, por fim, desejou acabar. Nunca tinha sentido como então, nem quando ouvia Christo, o nada das riquezas, a vaidade do mundo, o desgosto dos prazeres, o horror dos vicios que os seguem. Oh! se elle podesse retroceder, delir de sua vida aquella nodoa de sangue, sacudir o pezo que lhe abafava o coração, quão diverso do que fôra não seria! Como agora se lhe figurava formosa a innocencia! Como as tentações lhe pareciam boas de subjugar! Ah! se elle podesse quebrar as prisões de Jesus, e banhar-lhe os pés com suas lagrimas! Se podesse offerecer a vida a trôco da que o povo ía sacrificar! Com que prazer se deitaria na cruz, e ahi morreria em paz, se lhe fosse dado perdão de seu crime com tal condição!... Mas, ao longe, estrugia a grita da multidão enfuriada, bradando: «Crucifica-o!» Escutava o tropel dos cavallos, o retinir das armas, e a pancada do martello que cravava os pregos nas mãos bemfazejas do amigo que elle vendêra. Iriçaram-se-lhe os cabellos, reçumou-lhe suor glacial ao rosto, mal se tinha nas pernas como ebrio, sentia retrahir-se-lhe o chão debaixo dos pés. Oh! como Jesus padecia! Mas Judas padecia mais, porque soffria como criminoso, e não como justo. Os soffrimentos de Judas excedem todo o confronto. Não ha ahi agonia que lhes compareis. Em um dia, n'uma hora soffreu mais do que cem annos de penitencia no deserto, cem annos de vergonhas e supplicios entre os homens. A sua alma era uma fornalha em chammas. Os caminhos abrolhavam-lhe espinhos dilacerantes debaixo dos pés. Com os proprios dentes lacerava os beiços. O sangue estuára-lhe nas veias. Aquelle viver já não era vida de homem. Nem fome nem sede o espertavam do lethargo horrendo. Fulgurava-lhe um só sentimento: o horror do seu crime. O que elle levava pelos campos além era um cadaver já insensivel á dôr; e esse vil cadaver é o que elle estrangulou pendente da arvore. Fez mal. Melhor lhe fôra morrer ajoelhando, supplicando misericordia. Ah! acaso sabemos como elle morreu? Por ventura, a dôr refinada até aquelle extremo não será a mais eloquente supplica? Quem o sabe n'este mundo?

VII

Seja, porém! Prosiga elle na outra vida o medonho supplicio que tentou abreviar! Que esse incomportavel castigo redobre de hora a hora, de anno a anno, de seculo a seculo. É justo. Amen! amen!

Conte-se e publique-se em todas as linguas da terra que ha dezoito seculos Judas trahiu o Filho do homem, seu bemfeitor, seu amigo e mestre, e que o seu castigo dura ainda. Maldito seja elle e todos os seus similhantes! Maldito seja de pobres e ricos, dos filhos e das mães! Padres de Jesus Christo, levai esta nova a todas as choças e palacios; dizei-a a grandes e pequenos, aos que balanceam thuribulos, e aos que floream gladios, aos que julgam a terra e aos que são julgados! Ai dos hypocritas! ai dos ingratos! ai dos homens de duas linguas e duas caras! ai dos servos e dos irmãos tredos! ai dos que antepõem a amisade á justiça, e vendem sua alma ao sanhedrin, e contam as suas moedas em quanto o innocente é atormentado.

Dizei isto a toda a terra, padres de Jesus Christo, que não haverá ahi palavra que vos impugne.

Sim! Não ha ahi crueza de morte, e mormente voluntaria morte que expie tamanho crime. Judas soffre ha dois mil annos, e d'aqui a quatro mil soffrerá ainda, e em quanto o genero humano não terminar a sua peregrinação terrestre, viverá em supplicio recrescente de tormentos inauditos.

VIII

Entretanto, meu Deus, este mundo de provações, segundo dissestes e tudo o confirma, ha de acabar. E, quando este mundo fôr destruido e renovado, quando já não houver sol, nem berços, nem sepulchros, nem gerações de peccadores, não perdoareis então a Judas? Quando elle apparecer á vossa presença no dia do juizo, depois de tantos seculos de indescriptiveis dôres, não vos lembrareis de que elle foi vosso amigo? Dar-se-ha caso que Pedro, esquecido da sua culpa e do perdão que a disfarçou, diga ainda outra vez: «Não conheço este homem?» João, Matheus, Thomé e Thiago, voltarão o rosto indignado, como se não houvessem tambem peccado e duvidado? Não vos dirá o côro inteiro dos apostolos: «Senhor, apiedai-vos d'elle. Sem a vossa graça, o que não teriamos feito nós?»

Apiedai-vos d'elle, Senhor! — dirão todos os bemaventurados — que elle, sem o saber, foi o instrumento e a victima da salvação dos homens. Feliz culpa! dizia Santo Agostinho do peccado de Adão, feliz culpa que grangeou para o genero humano situação melhor que a do Eden. Feliz tambem, meu Deus, a culpa de Judas, pois era mister que, em cumprimento de vossos decretos, fosseis trahido por um dos vossos amigos. Horrendo, mas inevitavel crime, predicto muito antes pelos prophetas; crime salutar, introito mysterioso da paixão; crime que foi amaldiçoado e devia sêl-o, mas que hoje devemos perdoar e bemdizer, por quanto, sem tal crime, ó dôce Jesus, nem vós terieis morrido, nem o mundo estaria resgatado.

Apiedai-vos, pois, de Judas! Commiserem-vos seus remorsos, tormentos e lagrimas! Compadeça-vos a cegueira d'elle! É bem de crêr que fechais os olhos da alma aos culpados e esta milagrosa cegueira com que os affligis é já per si um castigo. Mas tambem os castigareis por peccados e erros commettidos com vossa licença, no seio d'aquellas vingadoras trevas que derramastes no seu caminho? Não, não, meu Deus, vós o dissestes. Lembrai-vos de vossas derradeiras palavras na cruz redemptora, quando pedieis a vosso Pae perdão para os algozes, para os sacerdotes que vos haviam comprado, para o amigo desleal que vos tinha vendido, para o soldado cruel que vos cuspiu na face, para o povo desvairado que vos injuriava no supplicio: «Perdoai-lhes, pae, que elles não sabem o que fazem!»

E vosso Pae, que tudo vos concede, perdoou-lhes o sacrilegio, a blasphemia, e tudo quanto em seu crime entendia com a vossa abscondita divindade; perdoou-lhes o que a justiça e caridade querem que se perdoe aos insensatos e aos cegos, e a quantos não sabem o que fazem. O que ficou sobre elles pezando é o peccado contra a humanidade, por que bem conheciam os peccadores a sua culpa no momento em que a commetteram. Meu Deus, perdoai-lhes! Pedevol-o o genero humano ensinado por vossas lições e exemplos, e resgatado por vosso sangue.