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O Inferno (Auguste Callet)/II/V

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CAPITULO QUINTO

 
SURSUM CORDA
 

I

 

Fujamos d'este lamaçal. Lavemos pés, mãos, cabeça e vestidos. Cauterisemos os beiços com um carvão acceso. Demonios, chammas impuras, espiritos malfeitores, odios, vinganças, carnificinas, ferozes alegrias, estupidos terrores, sonhos do homem primitivo adormecido em antro á ourela de lagôas turbidas, com o estomago regorgitado de carnes sanguentas, com a mão sobre a clava, e a alma ainda fremente das paixões do dia; mystagogia antiga; sapiencia idolatra; delirios renovados dos barbaros orientaes e occidentaes; confuso acervo de subtilezas methaphysicas e torpes fabulas e aspirações, sublimes e baixos erros, inferno velho e inferno novo, palacios oscillantes edificados com ruinas, Naraka, Amenthi, Tartaro e Géhenna, sumi-vos! O tempo avança; é já dia; a calhandra já cantou, vamos á serra vêr o repontar do sol. Acima, ainda mais para o alto, subamos ás espigas da montanha, onde o ar é mais sadio e o horisonte mais amplo. Azas, azas! vamos admirar o sol que regenera a vida e a fecundidade da terra, e a todo o ser a sua vera fórma, e aos homens, que desperta do somno fundo, a consciencia de si mesmos e o sentimento das realidades que o rodeam. Mais ao alto! Mais ainda! azas, azas, ó minha alma! Voemos até á origem da luz, de que este pallido sol é apenas sombra!

II

Deus é uno, com infinita variedade de attributos, cuja manifestação lhe não lesa a unidade. Conhecemol-o n'este mundo por fé unicamente, porque o não vemos qual é, e não temos d'elle, em nossos corações, senão uma imagem imperfeita, e, para assim dizer, mutilada. Por tanto, aquelle sagrado nome exprime o que sabemos realmente, mas tambem o que não sabemos, e o que saberemos de Deus, no dia derradeiro. Encerra Deus todas as perfeições, cujo complexo, de que apenas concebemos parte minima, é o mysterio que adoramos atravez d'um véo, que a morte levantará, assim para santos como para pecadores.

Sem duvida que os mais obdurados peccadores hão de vêr Deus; e hão de vêr não sómente alguns attributos seus, mas todos; não hão de vêr sómente a sua eternidade, por quanto a eternidade está em Deus, mas a eternidade não é Deus; não hão de vêr sómente a sua justiça e infinita omnipotencia, por quanto a justiça infinita e omnipotencia são em Deus, mas não constituem toda a sua essencia; não hão de vêr sómente a sua justiça, por quanto a justiça está em Deus; mas só ou unida ao poder eterno a justiça não é Deus: senão seriam tantos os deuses quantos são os attributos e virtudes distinctas na unidade divina.

Quando os peccadores virem Deus, então hão de vêr quanto ha em Deus, sua bondade, misericordia e justiça; vel-o-hão a toda a luz, d'um só lance de olhos, por que tudo o que a nossa lingua separa é inseparavel em Deus; e, se elle retrahisse dos peccadores um só resplendor de sua face, ficaria sendo o Deus abscondito que a nossa fé adora, e não o Deus visivel perante o qual toda a incredulidade se dissipa. Pelo que, ao mesmo tempo que sua justiça encher de medo as almas, a sua bondade as consolará mediante a confiança e arrependimento.

III

Grandes e pequenos, doutos e ignorantes, todos os peccadores serão castigados, cada qual á medida de suas culpas. Nenhuma será esquecida; mas, por isso mesmo, todas as virtudes serão lembradas. Ao pessimo peccador que em sua vida teve um bom sentimento, um bom desejo sequer, isto lhe será como torcida ainda fumegante a qual o sopro de Deus accenderá em flamma. O pouquinho bem que praticou lhe será contado, até ao ceitil, até ao pucaro de agua dado ao caminheiro, até ao grão de painço dado á avezinha, até ao movimento do dedo mendinho em que a creança vacillante se amparou, até ao olhar compadecido pôsto na face do attribulado. Estas são as unicas acções que elle quereria recomeçar e multiplicar n'esta vida, se lhe fosse dado aqui voltar, por que é esse o sagrado laço que o une ainda, posto que de longe, á assemblêa dos justos; e o mal que fez, esse ainda subsiste, mas só na dôr que sente de havêl-o feito, e no arrependimento com que o recorda. Prazeres torpes, revezados de inquietações amargas não os cubiça. Deplora o ceo, e não a terra. Sómente saudades do ceo pódem enternecer a lagrimas entes racionaes, desempeçados das trevas d'este mundo.

IV

Os mortos que Deus pune viram a Deus, e, a um tempo, se sentiram attrahidos para elle, e repulsos e como repuxados para longe pelo iman de seus peccados. Abriu-se o abysmo e cahiram, mas com a vista sempre fita n'aquella ineffavel luz que lhe foge, e os braços estendidos para o Deus misericordioso que os exila temporariamente por causa de suas offensas. Cahem levando comsigo a indelevel memoria d'aquella formosura e sabedoria infinitas que só instantaneamente viram, e ao baquearem-se, exclamam: «Havei piedade de mim!»

Os mortos que Deus castiga viram Deus; e para logo o amaram, que é impossivel vêl-o sem o amar. Viram-o e esqueceram a terra; viram-o, e arderam em sede inextinguivel de tornar a vêl-o e possuil-o. Verdadeiro castigo! Expiação dolorosa, mas efficaz! Ardentes lagrimas, mas salutares, que o amor derrama, e o amor enxugará.

V

Blasphemar que é? É negar Deus ou algum dos seus divinos attributos ou alguma das eternas e infinitas propriedades do seu ser.

Negar-lhe a existencia é blasphemia; negar-lhe o poder é blasphemia; negar-lhe a immensidade, a eternidade ou a sabedoria é blasphemia.

A blasphemia é somente praticavel n'estas regiões de duvida e mysterio em que Deus escassamente se deixa entrever atravez d'um veo. Mas o veo cahiu na presença dos mortos.

Os cegos viram; os paralyticos andaram; os mudos fallaram. Confessam todos que Deus existe, que é eterno e poderoso e justo. Negar-lhe a justiça como poderiam elles, se sentem até ao amago de seu ser a claridade ardente e purificante? E, se não podem negal-a, como ousariam affrontal-a? Mas, se querem que elles blasphemem, digam-nos qual das perfeições divinas elles negarão?

Ai! aos theologos aprouve que os condemnados negassem a que mais valiosa lhes seria. Os condemnados negarão a bondade de Deus; injuriando-o de máo, de cruel, de implacavel, de escarnecedor de suas agonias, de vingativo, de carrasco, e não juiz. Isto, com effeito, é que é blasphemar.

Mas estes impios discursos não os vociferam os mortos castigados por Deus; sois vós, scribas e doutores, que lh'os inventastes; e o que a isso vos levou foi o imaginardes um inferno perpetuo, e, pelo tanto, o effeito que o castigo esteril devia produzir sobre soffredores immortaes. Entrai mentalmente n'essa catacumba infecta, tomai por instantes o logar das victimas, e ousai fallar em bondade de Deus. Não acreditareis em tal. Máo grado vosso, a blasphemia vos fugirá da bôcca.

Os primeiros blasphemadores são, logo, os inventores d'aquelle imaginario supplicio. Á maneira dos idolatras, fraccionaram Deus, extremando entre justiça e bondade — attributos indistintos. De modo que essas presumidas blasphemias do inferno são sómente um ecco das que esbravejaram nas almas d'elles, ao contemplarem a sua obra.

VI

Deus é justiça e misericordia conjuncta e indivisivelmente. Nos actos da sua justiça ha sempre um fundamento de misericordia; e, nos actos em que sómente a sua misericordia realça, ha um fundamento de justiça. É offendel-o dizer que é misericordioso sem justiça para uns, e justiceiro sem misericordia para outros. Isto é falso quanto ao tempo e quanto á eternidade. É justo Deus com os justos coroando-os, por que se a salvação d'estes fosse gratuita e mera complacencia particular, favor e não recompensa, o castigo dos peccadores seria iniquo. Na gloria, pois, dos bemaventurados reina tanta justiça quanta misericordia.

Mas, se Deus, no outro mundo, é justo para os eleitos, por que não ha de ser misericordioso com os peccadores?

Mostrais-me a sua misericordia no ceo; e eu tambem lá vejo a sua justiça.

Mostrais-me a sua justiça no inferno, e eu tambem lá procuro a sua misericordia.

VII

A condemnação do vosso inferno está na necessidade logica e invisivel que lá obriga a offender e amaldiçoar Deus. É isso possivel? Deus quer ser injuriado eternamente? Não quererá antes ser adorado e abençoado por todas as creaturas? Adoram-no os santos em jubilo, e os mortos, que pune, adoram-no em penas, por que sabem que ellas hão de ter fim.

Seja-me testemunha o Evangelho.