O Inferno (Auguste Callet)/II/IV

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CAPITULO QUARTO

 
O INFERNO DOS THEOLOGOS
 
POR DUAS FACES VAMOS VER O NOSSO INFERNO; PRIMEIRA A MATERIAL, DEPOIS A MORAL
 

I

 
O inferno material
 

São puros espiritos os demonios, e tambem puros espiritos devem considerar-se os condemnados no inferno, por quanto só a alma d'elles lá desceu, e os ossos restituidos á terra se transformam continuamente em hervaçaes, plantas, fructos, mineraes, liquidos, desfigurando-se nas continuadas methamorphoses da materia.

Tanto, porém, os condemnados como os santos hão-de resuscitar no dia final e reassumir para nunca mais o deixar um corpo carnal, o mesmo corpo com o qual passaram entre os vivos.

A distincção d'uns a outros é que os eleitos hão de resurgir em corpos purificados e radiosos, e os condemnados em corpos poluidos e afeiados pela culpa. E de então ao diante não haverá sómente puros espiritos no inferno; mas sim homens como nós. É por consequencia o inferno uma localidade physica, geographica e material, visto que hão de povoal-o creaturas terrestres, dotadas de pés, mãos, bôcca, lingua, dentes, orelhas, olhos como os nossos, veias com sangue, e nervos sensiveis á dor.

Onde está situado este inferno? Alguns doutores situam-no nas entranhas da terra; outros em certo planeta que eu não sei; mas a questão nenhum concilio ainda a resolveu. A este respeito é tudo conjecturas; o mais que se affirma é que o inferno, seja onde fôr, é um mundo composto de elementos materiaes, mas não tem sol, nem lua, nem estrellas, e é mais triste e inhospito, e mais ermo de todo o germen e apparencia de bem, do que todos os pontos inhabitaveis do mundo em que peccamos.

Não se arriscam os discretos theologos a pintar, á similhança dos egypicos, indostanicos, e gregos, o immenso horror d'essa mansão; limitam-se a dar-nos como amostra o pouco que a escriptura denuncia, o lago de fogo, e o enxofre do Apocalypse, e mais os vermes de Isaias, aquelles vermes eternamente enxameando sobre as carcaças de Thophet, e os demonios atormentando os homens que perverteram, e os homens chorando e ringindo os dentes, segundo a expressão dos evangelistas.

Santo Agostinho não concede que aquellas penas physicas sejam simples imagens das penas moraes; contempla em um verdadeiro lago de enxofre vermes e serpentes verdadeiras encarniçadas sobre todas as partes dos condemnados, exacerbando com as suas mordeduras as ulcerações do fogo. Quer, conforme um verso de S. Marcos, que este estranho fogo, posto que material como o nosso, e actuando sobre corpos materiaes, os conservará como o sal conserva a carne das victimas sempre sacrificadas e sempre viventes, sentirão a dôr d'aquelle fogo que queima sem destruir, e lhes filtra aos musculos, saturando-lhes os membros, desde a medulla dos ossos e as pupillas dos olhos até as mais occultas e sensiveis fibras do seu ser.

Se elles podessem submergir-se na cratera d'um vulcão, sentir-se-hiam ahi refrigerados e consolados.

D'esta arte fallam com toda a segurança os mais timidos, os mais discretos e reservados theologos; não negam, porém, que no inferno haja outros supplicios corporaes; sómente dizem que não tem d'elles um sufficiente conhecimento, ou pelo menos tão positivo como aquelle que receberam ácerca do horrivel supplicio do fogo, e do afflictivo supplicio dos vermes. Ha no entanto theologos mais audazes e illustrados que nos dão descripções mais miudas, variadas, e completas do inferno; e, bem que não saibam em que local do espaço tal inferno esteja, consta-lhes que alguns santos o viram.

De certo que estes santos lá não foram com a lyra em punho, como Orpheo, ou com a espada na mão, á similhança de Ulysses: baixaram lá arrebatados em espirito. D'este numero é Santa Thereza.

Quem lê a relação d'esta santa cuidará que no inferno ha cidades. Pelo menos lá viu ella uma especie de viella longa e estreita como ha tantas nas cidades antigas; entrou caminhando horrorisada sobre um terreno lamacento e fetido onde rastejavam reptis monstruosos; mas foi retida em seu transito por uma parede que atravancava a viella; e n'esta parede havia um nicho onde Santa Thereza se metteu sem saber como. Disse ella que este logar lhe estava destinado, se abusasse emquanto viva das graças que Deus difundia sobre a sua cella d'Avila. E, bem que ella se anichasse com maravilhosa facilidade n'aquella guarita de pedra, não podia nem assentar-se, nem deitar-se, nem estar de pé, nem safar-se; que estas horriveis paredes, apertando-a, envolviam-na, angustiavam-na, como se fossem animadas. Parecia-lhe que a abafavam, que a estrangulavam, e ao mesmo tempo a estripavam e a faziam pedaços.

E sentia-se arder, e não havia genero de afflição que não experimentasse. Esperança de soccorro, nenhuma. Á volta d'ella tudo escuro; mas ainda assim, atravez d'essas trevas, entrevia, com grande espanto, a hedionda rua por onde tinha passado com toda a sua immunda visinhança: espectaculo que lhe era tão intoleravel como as intalladelas da prisão.

Ora isto de certo era apenas um cantinho do inferno.

Outros viajantes espirituaes foram mais obsequiados. Houve tal que viu no inferno grandes cidades a arder, Babylonia e Ninive, e até Roma, com os seus palacios e templos abrazados, e os habitantes acorrentados, mercadejando no balcão, padres misturados com meretrizes nas salas dos festins, hurrando nas suas poltronas d'onde não podiam arrancar-se, e levando aos beiços, para apagar a sede, copos que golphavam lavaredas; validos em joelhos sobre almadraques ardentes, com as mãos postas, e principes vertendo sobre elles devorante lava d'ouro fundido. Outros viram no inferno descampados sem limites, cavados e semeados por lavradores famelicos. E d'essas plantas fumegantes de suor, como nenhum fructo vingasse, os lavradores devoravam-se uns aos outros; e, depois, tantos quantos tinham sido, magros e famintos do mesmo modo, dispersavam-se em bandos pelos horisontes fóra em cata de terras mais ditosas, e eram logo substituidos por outras colonias errantes de condemnados.

Houve quem visse no inferno serranias cavadas de abysmos, de florestas gementes, poços sem agua, fontes de lagrimas, regatos de sangue, turbilhões de neve em desertos de gelo, barcos desesperados vogando em mar sem praia. Em fim lá viram quanto os pagãos tinham visto, o reflexo lugubre da terra, uma sombra incommensuravelmente augmentada de suas miserias, os seus naturaes soffrimentos eternisados, entrando n'isto masmorras, forcas, e os instrumentos de tortura que as nossas proprias mãos forjaram.

Ha com effeito lá n'essas profundezas demonios que se fazem corporeos, para mais a preceito atormentarem os homens em suas carnes. Uns tem azas de morcego, pontas, coiraças escamosas, griphos e agudissimos dentes. Temol-os visto pintados, armados de espadas, de forcados, de tenazes ardentes, de serras, de grelhas, de folles, de clavas, empregando tudo isto durante a eternidade n'uma especie de açougue e cosinha da carne humana. Ha outros transformados em leões, e viboras enormes, arrastando as prêas em solitarias cavernas.

Alguns desfiguram-se em corvos para arrancar os olhos a certos padecentes, em quanto outros se transformam em dragões volateis, e vão carregados d'almas sanguentas e lastimosas atravez de tenebrosos espaços, e as precipitam no lago de enxofre. Além se vê nuvens de gafanhotos, e de agigantados escorpiões, cuja vista arripia, cujo cheiro enoja, cujo menor contacto convulsiona. Acolá estão os monstros polycephalos abrindo vorazes fauces, sacudindo as crinas formadas de aspides, triturando os condemnados entre os seus queixos sangrentos, e vomitando-os logo mastigados, mas ainda vivos, porque são immortaes.

Estes demonios de fórma sensivel, recordando tão ao vivo os deoses do Amenthi e do Tartaro e os idolos que os phenicios, os moabitas e outros gentios visinhos da Judea adoravam, estes demonios não funccionam á toa; cada qual tem seu officio e sua tarefa: o mal que fazem no inferno corresponde ao mal que elles inspiraram e fizeram commetter n'este mundo. São os condemnados punidos em todos os sentidos e orgãos porque offenderam Deus por todos os orgãos e sentidos. Os comilões são punidos de certa maneira pelos demonios da intemperança, e d'outra maneira os calaceiros pelos demonios da preguiça, e ainda d'outra maneira os lascivos pelos demonios da sensualidade; em fim, são tantas as maneiras quantas as variedades de peccar. Dizem que elles até na fogueira terão frio, e no gelo se sentirão arder; estarão ávidos de descanso e irrequietos; sempre com fome, sempre com sede, e mil vezes mais cansados que o escravo no fim do dia, mais doentes que os moribundos, mais lacerados, mais escalavrados, mais lazaros que os martyres, e assim para todo o sempre.

Nenhum demonio se desgosta nem desgostará jámais do seu terrivel officio; n'esta parte são elles disciplinados a ponto, e fidelissimos na execução das ordens vingativas que receberam. Se não fosse isso, que seria do inferno? Se os demonios tivessem rixas entre si ou se fatigassem, os pacientes descansariam. Mas nem uns descansam, nem os outros se desavêm; e posto que sejam máos e muitissimos, os demonios harmonisam-se d'um cabo a outro do abysmo, por tanta maneira que nunca na terra se viram nações mais submissas a seus principes, exercitos mais doceis a seus generaes, communidades fradescas mais obedientes a seus prelados. Nada se sabe da ralé dos demonios, d'essa canalha de espiritos villãos que formam legiões de vampiros, de sapos, de escorpiões, de corvos, de hydras, de salamandras e outra bicharia sem nome que constituem a zoologia das regiões infernaes; mas são conhecidos de nome muitos principes que commandam aquellas legiões, entre outros Belphegor, o demonio da luxuria, Abbaddon ou Apollyon, o demonio da carnificina, Beelzebuth, o demonio dos desejos impuros, ou o principe das moscas geradoras da podridão, e Mammou, o demonio da avareza, e Moloch, e Belial, e Baalgad, e Astaroth, e outros mais, e sobre todos o chefe universal, o sombrio archanjo que no céo se chamava Lucifer, e no inferno se chama Satan.

Eis aqui, em summa, a idêa que se nos dá do inferno, observado em sua natureza physica, e nas penas corporaes que lá se padecem. Lêde os escriptos dos padres e antigos doutores, interrogae as piedosas legendas, examinae as esculpturas e paineis das nossas egrejas, attentae o ouvido no que se diz em nossos pulpitos e sabereis muitas outras coisas.

II

Reflexões sobre as penas materiaes dos condemnados
 

De qualquer modo que as figuremos, e quando mesmo por piedade ou qualquer outra razão se reduzissem só á acção do fogo, estas penas materiaes não poderiam ser eternas, porque, se a alma é immortal e póde soffrer sempre, não succede o mesmo ao seu involtorio terrestre: corpos de carne, á feição dos nossos, são de seu natural incapazes de resistir a similhantes agentes de destruição.

É um milagre a resurreição dos corpos; mas faz-se mister um segundo milagre para dar a estes corpos mortaes, já usados pelos transitorios attritos da vida, e de mais a mais aniquillados, a virtude de subsistir, sem se dissolverem, na fornalha onde metaes se evaporassem. Diga-se embora que a alma é algoz de si mesma, que Deus a não persegue, mas que a desampara pelo estado desgraçado que ella escolheu: isso ainda póde rigorosamente comprehender-se, posto que o desamparo eterno d'um ser desvairado e padecente pareça pouco conforme á bondade do Creador; porém o que se diz da alma e das penas espirituaes não póde por modo algum ser dito a respeito dos corpos e das penas corporaes; que para eternisar as penas corporaes não basta que Deus retire a sua mão; pelo contrario, é forçoso que elle a mostre, que intervenha, que opere, sem o que o corpo succumbiria.

Conjecturaram, pois, os theologos que Deus effectivamente opera, em seguida á resurreição, o segundo milagre de que fallamos. Primeiro, exhuma do sepulchro os corpos de argila que lá se haviam desfeito; tira-os taes quaes lá tinham entrado com as suas nativas infermidades e as degradações successivas da idade, da doença e do vicio, decrepitos, infesados, gotosos, cheios de precisões, sensiveis á ferroada d'uma abelha, cobertos das macerações que lhes fizeram o rossar da vida e da morte: eis o primeiro milagre. Depois, a estes corpos alquebrados, prestes a reverter ao pó d'onde surgiram, inflige uma propriedade que não tinham: a immortalidade, o mesmo dom que n'um lance de colera, ou, se o quereis, n'um lance de misericordia, elle tinha subtrahido a Adão quando o expulsou do Eden: eis o segundo milagre. Quando Adão era immortal, era invulneravel; e, quando cessou de ser invulneravel, tornou-se mortal. Á dôr seguiu-se o morrer.

A resurreição, portanto, nem nos repõe nas condições physicas do homem innocente, nem nas condições physicas do homem culpado; é uma resurreição das nossas miserias sómente; mas com sobrecarga de novas miserias, infinitamente mais horriveis; é, até certo ponto, uma verdadeira creação, e mais maliciosa que imaginação alguma ainda concebeu. Dir-se-ha que Deus reconsidera e varia, quando accrescenta aos tormentos espirituaes dos peccadores tormentos corporaes de duração infinda, e muda de repente as leis e as propriedades por elle prescriptas ás composições da materia desde a origem d'ella. Resuscita carnes doentes e corruptas, e, atando com indesatavel nó elementos que tendem a separar-se, mantém e perpetúa, contra a ordem natural, aquella podridão vivente, que é posta no fogo, não para se depurar, mas para ser conservada qual é, sensivel, padecente, ardente e immortal.

Por amor d'este milagre é Deus arvorado em um dos algozes do inferno; por que, se os condemnados só a si podem imputar seus males espirituaes, tambem não tem a quem imputar os outros senão a Deus. Já não era pouco abandonal-os, depois de mortos, á tristeza, ao remorso e a quantas agonias sente a alma que perdeu o bem supremo; mas ha ahi peor: irá Deus, no dizer dos theologos, procural-os nas trevas do seu abysmo; chamal-os-ha por instantes á luz, não para allivial-os, mas sim para vestil-os d'um corpo horrido, chammejante, immorredouro, e n'este acto os abandonará definitivamente. Mas não será isso ainda abandono, pois que céo, terra e inferno não subsistem senão por um acto permanente da divina vontade sempre activa. É força, então, que Deus os tenha sempre de sua mão, para obstar que o fogo se apague e os corpos se consumam, a fim de que esses desgraçados immortaes contribuam, com a perennidade de seu supplicio, á edificação dos predestinados.

Vem a ponto um episodio da historia da Egreja, que, máo grado nosso, nos veio á lembrança. Seja-me permittido recordarvo-lo.

III

Os martyres de Nero
 

Foi Nero um poderoso imperador. Galardoava esplendidamente os escravos que o serviam; e, ao mesmo tempo, incutia-lhes medo salutar com o seu systema de tratar inimigos. Queimando Roma a fim de a reedificar mais formosa, assacou o crime aos christãos, gente indocil que o não bajulava, e cria em justiça mais amavel que a d'elle, e por esta e outras razões desagradava á plebe idólatra. O processo foi summario; a sentença de morte, e a execução espantosas, como vai vêr-se. Embrearam-os de resina, amarraram-os a postes de ferro, cravados distantes entre si nos bellos jardins de Sallustio, onde eram celebrados então os jogos nocturnos. Era já noite, quando as portas foram abertas á multidão. Eis que sôa o clangor das trombetas, e logo os verdugos infileirados chegaram lume ás tunicas dos christãos. Callam-se as trombetas; restrugem de todos os lados gritos estridentes. A subitas, arvores, flôres, estatuas, escadozes marmoreos, tanques, repuxos, tudo resplandeceu. Chega Cezar na sua carroça, escoltado de vistosa côrte, derramando, por sobre as turbas aterradas e jubilosas do seu sorriso, ouro e perolas. Servem-se banquetes. Dançam as filhas do oriente, em quanto os tocadores de alaude e cantores confundem a dôce melodia de seus concertos com os applausos do povo fiel e os derradeiros arrancos dos christãos que vasquejavam em suas tunicas ardentes.

Pouco durou aquelle instructivo espectaculo. N'este mundo, as festas mais bisarras são curtas. Felizmente para os martyres, Nero não era Deus. Diz-se, porém: eil-os, os confessores de Christo apremiados, á volta de um Deus que dá ares de Nero, e como contemplando, á maneira do Cezar, em festa sem fim, milhares de creaturas humanas, estorcendo-se e clamando nas lavaredas, tochas ullulantes, fachos inextinguiveis, testemunho assás consolativo da superioridade do rei do céo sobre os regulos da terra.

Haja paciencia, que ainda falta o mais essencial. Aquellas penas corporaes são quasi nada. Repugnantissimas que ellas se nos figurem, são essas, ainda assim, a menos repugnante cousa que o inferno encerra.

IV

O inferno espiritual
 

Em que meditam esses pobres entes atormentados? Que sentimentos os dominam? Que fazem elles, durante as suas inexpremiveis torturas, n'esse tempo illimitado em que os segundos são seculos, e os seculos menos que segundos? Os theologos tem investigado estas cousas; e, presupposto perpetuo o inferno, não ha dous modos de resolver aquellas perguntas. Uma breve reflexão vos dará a resposta que os theologos tem dado perfeitamente conforme a todas as tradições.

Imaginai um lupanar de embriagados, um hospital de loucos, um covil de assassinos, uma caverna de ladrões, um bordel immundo; soltai ao mesmo tempo todos os moradores d'esses abominaveis logares, e tereis uma optima pintura do inferno espiritual, isto é, o estado mental dos condemnados. Novos e velhos, homens e mulheres, embaralhados todos, apostrophando, jurando, blasphemando, eternamente ebrios, eternamente vorazes, eternamente lascivos, eternamente invejosos e crueis, eternamente impios, eternamente sandeus.

Como as sombras do Tartaro, choram o nosso sol, as sombras, as frescas ribeiras, os pampanos dos nossos vinhedos, e todos os prazeres sensuaes de que ávidamente estão sequiosos e privados. Os demonios, que os castigam por seus passados prazeres, alimentam n'elles inuteis saudades, e insensatos desejos, dos quaes nada póde distrahil-os, nem sequer as dôres corporaes, e agudissimas de que são atormentados todos os seus membros. N'isto, de mais a mais, os demonios o que fazem é executar as sentenças do soberano juiz — sentença promulgada no céo, pela qual são os reprobos intellectualmente torturados; pois diz Santo Agostinho no seu Commentario aos psalmos: faz-se mister que tudo quanto deliciou os homens, quando peccaram, se converta em instrumento do Senhor quando castiga. O desejo saciado é, pois, punido com o desejo insaciavel.

Não imaginem que no inferno haja uma só alma que deplore a sua innocencia baptismal, e o céo promettido que ella perdeu, e a companhia dos anjos, e a bemaventurança dos eleitos. Os precitos fogem de Deus, não o procuram; viram-no no dia do juizo, tem-no presente sempre nos tormentos que soffrem. De certo os angustia estar tão longe d'elle; mas é angustia de raiva que não tem nada que vêr com as saudades e anceios do amor.

Não pensem que entre as alegrias cuja perda lá nos dilacera o coração, estejam os castos prazeres do lar, a pratica dos anciãos, as meiguices das creanças, a ternura dos irmãos, a dôce confiança dos amigos, as consolações do trabalho e as recompensas do estudo. Verdadeiras alegrias eram aquellas de certo para os peccadores; mas os condemnados nem as desejam, nem d'ellas se lembram; abasta-lhes a sciencia que tem; e, pelo que toca ás affeições terrestres, mortas são todas: resta-lhes o odio sómente. A mãe que está no inferno, se tem um filho no paraizo, abomina-o, e elle a ella; se o tem no inferno, abomina-o tambem e é correspondida por igual, e, se o tem vivo no mundo a choral-a, da mesma sorte o abomina. Filhos, pae, marido, irmãos e irmãs, amigos, tudo lhe é igualmente odioso.

O que os condemnados mais ardentemente desejam é coisa que se beba e se coma, e além d'isso as delicias sensuaes e a bruteza do coito carnal. São de tal sorte as suas disposições em meio de tantos soffrimentos que, se um só d'esses condemnados podesse por um momento voltar á vida, escandalisaria um alcouce. Entretanto, confessam a justiça da condemnação que os fere; mas é para amaldiçoal-a; e, bem que não sejam atheus, por que tal não podem ser em similhante lugar, são mais scelerados, ignobeis, impudentes e perversos do que poderia sêl-o uma nação de atheus. Uma nação de atheus, não sendo composta de immortaes, temer-se-hia do nada como d'um objecto de medo ou esperança, e tiraria d'ahi certas regras de proceder que bastariam a tornal-a menos miseravel e brutal; mas no inferno não ha que temer nem que esperar. Ha ahi um retouçar-se na dôr, em horrendos sonhos, que exulceram os appetites sem os satisfazer. Ahi é tudo obscenidade, egoismo, opprobrio, hediondez, a humanidade disforme, depravadissima, impudentissima, sem piedade, sem consciencia.

A blasphemia é a unica distincção que separa os condemnados das feras assanhadas, e que os levanta algum tanto acima dos porcos, dos lobos, dos macacos, dos toiros, dos bodes e dos reptis. É logo a blasphemia o unico symptoma de razão que se lhes deixa, a sua unica e ultima grandeza! Os irracionaes nem quando soffrem blasphemam: a blasphemia é um acto intellectual que n'este mundo degrada, e no inferno exalta. Um condemnado que louvasse a Deus seria um santo, cujo supplicio cedo ou tarde acabaria; mas, sendo interminavel o supplicio d'elle e impossiveis os santos n'este abysmo, o condemnado que não blasphemasse seria um bruto infecto.

É portanto de justiça que os façam blasphemar; d'isso inferimos que elles tem alma; e d'esse modo a mostram na unica maneira que podem; e, se não podem satisfazer a vil concupiscencia que os devora, desforram-se saboreando a pleno peito o agro prazer de insultar o Deus que os pune por tão singular maneira.

V

Continuação do inferno espiritual
 

Havendo só o inferno, já se vê que n'esta infame companhia os theologos misturam, como iguaes, qualquer homem honrado que morra na incredulidade dos mysterios. Isto lhe basta para ser condemnado. E com esse vae tambem a viuva pobre, que, em vez de ir á egreja no domingo, remenda os fatinhos das suas creanças: tambem não é preciso mais para ser condemnada.

Tambem lá vão, á conta de não jejuarem, nossas mães e irmãs, mulheres e filhos: pois não é bastante razão para ir ao inferno quem come um bocado de pão com certo prazer?

Este inferno, povoado de patifes incorrigiveis, é uma escóla: ninguem ahi se corrige, mas aprende cada qual a conhecer-se, e já não é pouco. Quem quer que ahi desce, logo que ahi está, é igual aos devassos, aos parricidas e aos traidores. Quem ahi se vê tão diverso do que se imaginava n'este mundo, aterra-se de si proprio. O bom que cada qual tinha em si quando vivia, com a vida se desvaneceu; e o mal que era apenas uma imperceptivel mancha, lavrou como a gangrena, de tal arte que alma e corpo é tudo uma chaga.

Que o homem se perdesse por um pomo ou por um imperio, por um beijo ou por um homicidio, o resultado é o mesmo: ninguem é condemnado com attenuantes. Não procureis no inferno um companheiro menos corrompido do que os outros, que se respeite ou que seja respeitavel por qualquer motivo; é coisa que lá não ha; ninguem conserva ahi vislumbre das qualidades que na terra se respeitam. Ou vades para a direita ou para a esquerda, para cima ou para baixo, girai em todas as direcções d'esse abysmo, que não achareis germen, relampago, sombra de virtude. Aquelles sabios cujas vigilias opulentaram os homens, e não deixaram dinheiro com que os enterrassem; aquelles philosophos estoicos, legisladores, magistrados, guerreiros illustres, e soldados obscuros mortos nas fronteiras; aquelles rigidos protestantes que psalmodeavam nas lavaredas, aquellas esposas extremosas, e as noivas cuja sepultura é juncada de rosas brancas — todos esses que não morreram em graça — de qualquer modo que pensassem e procedessem n'este mundo, os seus costumes e pensamentos são forçosamente os do outro. Os que lhe sabem a historia, e os amaram e lamentam, não hão de reconhecel-os. Eil-os preza de todos os vicios, paixões, e desejos dos condemnados. Grandes homens, sabios heroes, martyres, mães veneradas, donzellas castas, artistas sobrios e modestos, eil-os em côro de impios, fallando como ebrios, cynicos e assassinos. Abandonou-os Deus todos a um tempo, a um tempo os pune todos; o mesmo ferro lhes abrasa os corpos e a mesma febre lhes alanceia as almas.

Ahi está o inferno espiritual.

VI

Da immortalidade das penas espirituais do inferno.
 

É pois o inferno um máo logar, trescalando ao vicio e ao crime. Os demonios, guardas d'este máo logar, e professos na corrupção, usam do imperio que sobre os hospedes lhes é permittido, corrompendo-os incessantemente e sem lucta nem obstaculo.

É propriedade d'elles a alma dos condemnados. Deus, entregando-lh'a para que elles façam d'ella o que poderem, não lh'a disputa e bastantemente sabe o que elles farão.

Se as adições espirituaes dos condemnados fossem sómente crueis, seria isso bastante para nos auctorisar a duvidar da eternidade d'ellas; mas, além de crueis, impuras, é um direito, é até um dever negal-as. É certo que a natureza algumas vezes inflige ao homem esses impuros soffrimentos; mas são transitorios: uns morrem, alguns curam-se, e outros endoidecem: é outro genero de morte. Mas no inferno os furores sensuaes, os appetites phreneticos não matam nem remedeiam, não são venenos nem balsamos, são penas sem fructo e sem fim. «Que condemnação, diz S. Bernardo, a da vontade amarrada á precisão de crêr o mal e não crêr o bem; por tal modo que de qualquer maneira que se mova, é sempre criminosa e miseravelmente! Não ha de gozar jámais os prazeres culpaveis que deseja; e as privações que ella não quer é as que ella ha de ter por toda a eternidade.»

Crêr o mal e não crêr o bem, é logo o resultado d'aquella condemnação. Por sentença do juiz, e de que juiz! é que lá eternamente se anceiam impudicos prazeres, ao mesmo passo que o espirito soffre a privação dos sentidos. Montesquieu, que, a fallar verdade, não era padre da Igreja nem monge, formava outra idêa da natureza moral das penas destinadas a servir de sancção aos accordãos da justiça da terra propriamente. Lêde no Espirito das leis certo capitulo intitulado: Da violação do pudôr, no castigo dos crimes. Assim começa o capitulo: «Ha regras de pudôr observadas em quasi todas as nações do mundo: absurdo seria violal-as no castigo dos crimes, o qual deve sempre ter em vista o restabelecimento da ordem.»

Ainda que Montesquieu m'o não dissesse, a cousa é evidente por si. Satrapas em delirio, Cezares devassos, tyrannos corruptissimos, póde ser que alguma vez enviassem uma rapariga desobediente mas honesta a um bordel, e que, ajuntando calculadamente a indecencia ao castigo, convertessem a excitação dos sentidos em supplicio legal, deshonrando a lei para deshonrar o inimigo. Em todos os paizes civilisados castiga-se para restabelecer a ordem material e a moral quanto póde ser.

Cuida-se em esquivar o culpado ás seducções que o perderam; impedem-no de ser nocivo a si e aos outros; privam-no de satisfazer as paixões, não com o intento de lh'as irritar, mas de enfraquecel-as; sequestram-no da companhia das pessoas de bem, não para que as odeie, mas para que as chore; deseja-se que a sua maior afllicção consista em havel-as offendido, e que o arrependimento o rehabilite para tornar ao seio d'ellas; protegem-no contra a injuria; enviam-lhe a visita de caridade que o instrue, consola e ás vezes restaura. Estas conversões são raras certamente; quasi todas as nossas prisões são infectas; ahi a soledade corrompe; e a promiscuidade é contagiosa. Sabem-no os legisladores, e os juizes tambem. Não se diz, porém, que assim o querem juizes e legisladores? E, na verdade, querem-no assim!? Que se nos depara ahi senão o stygma da imperfeição das nossas obras, e a pequenez de recursos em comparação dos desejos? Mas nem por isso nos sentimos descrer dos intimos anhelos que nos incitam a buscar nas penas meio de restaurar a ordem perturbada, onde quer que seja, e até na alma do criminoso. O que a mesma imperfeição nos aconselha é que prosigam sem descanso no intento, que será completamente realisado no mundo em que a justiça é perfeita, e o poder do principe igual á sua justiça.

Não nos mostrem, pois, no inferno, uma galé immensa, repleta de impudentes scelerados, porque vos será perguntado se Deus não póde, mais que os homens, vencer corações rebeldes, ou se mais lhe praz exercitar sua omnipotencia a perpetuar um feio espectaculo que nós, philosophos e christãos, bem quizeramos que fosse banido.

Esta concepção do inferno, tão ignobil quanto atroz, data visivelmente de tempos barbaros, em que a vida physica afogava a moral, e a justiça não transparecia aos olhos propriamente do sabio senão atravez da nuvem sanguinosa da vingança.

Punir eternamente o vicio com o vicio, a immoralidade com a immoralidade! que projecto! e, na execução d'elle, que prodigio! Pois não basta justiçar o homem no corpo? Será preciso que o aváro, durante a tortura, arda de saudades dos thesouros que tantos cuidados lhe custaram e tantas dôres grangearam? Ha de o comilão, deitado sobre grelhas em brasa estar a pensar sempre na cosinha e na garrafeira? O voluptuoso, comido de chammas e de bichos, ha de estar sempre a lagrimar pelas parceiras? Acham isto possivel? Sendo assim, no inferno sabe-se melhor do que na terra o que valem riquezas, prazeres, divisas, veneras, medalhas, sceptro e arminhos. Ahi, ser-se-ha, de facto, blasphemo, e intencionalmente devasso, adultero, usurario, despota, valido, mas tudo isto sobre brasas? Havemos de confessar que o local não é dos melhores para taes desejos, e que só por milagre, em tal sitio e por muito tempo, possa haver similhantes delirios. Ora ahi vedes que se attribue a Deus o milagre de fixar a alma dos condemnados sobre impuras imagens, immobilisando-as em appetites que o offendem. É o peccado eternisado, e eternisado por Deus. Não cabe a responsabilidade d'isso aos condemnados. Não os accuseis; lamentai-os; que esses infelizes não são viciosos de vontade propria: é a lei que os obriga.

VII

Ultimas considerações ácerca do inferno theologico
 

Affirmam os theologos que a liberdade é um mero accidente da nossa vida mortal, e que, além da campa, se perde, tomando-nol-a Deus que nol-a dera, e quebrando entre nossas mãos, no momento da morte, aquelle instrumento de nossas provações. Os justos são esbulhados d'ella para permanecerem justos, e os máos tambem para ficarem máos. Diz-se que Satan prevaricou por que era livre; e, depois da queda de Satan, no céo não houve mais creaturas livres, nem tão pouco no inferno, onde o proprio archanjo está acorrentado ao peccado.

Não são, por isso, livres os condemnados. Pensam, amam, desejam; mas não lhes é concedido meditar, amar e querer senão maldades. Soffrem e sabem o porquê; mas não podem aproveitar-se do que sabem e do que soffrem. Conhecem os seus crimes; porém, não se arrependem, porque o arrependimento é um bem, e o bem não podem elles sentil-o. Se peccam sempre, é que a tanto são obrigados por sentença. Conservam razão e sentidos; mas consciencia não a tem, não discernem entre justo e injusto; não são senhores de seus actos; soffrem avassalados pelos sentidos, apezar da razão.

Esta escravidão absoluta, irremediavel e eterna, explica superabundantemente a immoralidade e o odioso de suas penas. Pois se de todo em todo lhes é impossivel a conversão, inutil e deshumano é o castigo corporal que os tortura.

Se não fosse a perpetuidade d'esta escravidão, seriam intelligiveis a fome, a sede, o lago de sulphur, a cama d'espinhos, o cavalete, a roda, os tractos a fogo e ferro. Vá d'exemplo: eis aqui um criminoso impenitente, que ha folgado com os soffrimentos alheios e calcado todas as leis da terra. Morre. Acabou-se tudo para elle? Não. Que vá, n'outro mundo, saber á sua custa o que é dôr, e que piedade merecem os que soffrem. Deus é bastante poderoso para o castigar a ponto de o fazer bradar por misericordia; é justo que o não poupe; exige-o a humanidade, com a condição de que esse peccador castigado seja ainda homem, isto é, um ser não só intelligente e sensivel, mas livre, e, por consequencia, susceptivel de emenda. Mas, se antes de o ferir, lhe tira o recurso do arrependimento; se, em vez do homem, o que temos á vista é um mero bruto sobrenatural, monstruoso, ignobil, a quem a dôr nada ensina, e a razão nada presta, máo por necessidade, torturado, sangrento, nojoso, gemente... ah! quem falla ahi de justiça? desfaçam por piedade esse monstro; basta de padecer; logo que lhe tirastes a liberdade, restituida lhe foi a innocencia.

Quando uma creança brinca á beira de um poço, e cahe apezar dos avisos da mãe, a pobre mãe não respira em quanto a não salva; corre logo sem attender á desobediencia, porque a vê mais carecida do soccorro quanto maior é o perigo; para castigo lhe basta a quéda. Que diriam os theologos, se aquella mãe, em vez de tirar do poço o filho, lhe fosse quebrar braços e pernas, e cobril-o de pedras? O que elles theologos imaginam que Deus faz, é aquillo mesmo. Aviltam-no quanto podem.