O Inferno (Auguste Callet)/II/III

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CAPITULO TERCEIRO

Opinião dos judeus ácerca da vista interior do inferno.
 

Sabido é que o Antigo Testamento é muito sobrio de revelações do inferno. Com muito custo se rebuscaram n'elle alguns versiculos tendentes a estabelecer aquella crença entre os hebreus, antes da destruição do primeiro templo. Os saduceos, que juravam sómente pela Biblia, negavam absolutamente a vida futura. Ora, bastantes sabios tinham os saduceos em conta de melhores interpretes da Biblia. Dizem elles que os judeus, durante as tristezas do captiveiro, souberam da bôcca dos magos a immortalidade da alma e a sciencia demonologica. Todavia, Abrahão era chaldeo; os filhos de Jacob haviam longo tempo estanciado no Egypto; — isto dá a crer que os seus descendentes deviam possuir, antes de exilados em Babylonia, parte dos conhecimentos que os escripturistas registavam. Não exerciam os prophetas um ensino mystico, e não conservava o povo tantas tradições grosseiras contemporaneas de Moysés e talvez anteriores? As passagens respigadas na escriptura e nomeadamente em Isaias, relativas ao inferno, seriam inexplicaveis, se não se lhe referissem; mas seriam egualmente inexplicaveis se o povo não tivesse, para intendel-as, mais luz da que lhe dão essas passagens. Estes trechos não encerram doutrina secreta dos prophetas, respeito á vida futura; contém mais referencias que revelações á crença vulgar e formalissima do inferno.

O nome «Géhenna» que lá dão á paragem das expiações futuras, não era estrangeiro; era o nome de um vale ao poente de Jerusalem, onde, desde a origem de sua historia, iam os hebreus adorar Molock, e sacrificar-lhe no fogo victimas humanas, e, ás vezes, seus proprios filhos. N'este sitio, tambem denominado Trophet, ou «logar horrendo», eram lançados os cadaveres dos justiçados e os despojos dos animaes. Este valle maldito, sagrado pela superstição aos deuses sanguinarios, juncado de carnes putridas e ossadas alvejantes, assombrado de larvas sinistras, resonante de gemidos e rugidos, converteu-se para os moradores da cidade santa, não já em verdadeiro inferno, mas no symbolo exterior e synonymo de inferno. No inferno verdadeiro, ardiam Moloch e os seus idolatras na mesma fogueira; os máos eram roidos pelos vermes; e estes vermes eram immorredouros como as suas prêas: — idêas positivamente exprimidas por Isaias, cap. LXVI, ultimo verso.

É egualmente certo que os rabbinos e tambem o povo, tão pouco iniciados até então andavam na mystica philosophia, que, se alguma vez discutiam, davam azo a que os prophetas se rissem ou indignassem; porém, depois que os rabbinos e o povo se recolheram do captiveiro, as suas noções eram mais amplas, e talvez as mesmas que se escondiam nas escólas do Carmelo e de Galgala.

Vamos vêr quaes são as noções não contidas no Antigo Testamento, mas traçadas manifestamente no Novo, as quaes, quando S. Paulo, S. Mathias, S. João e outros apostolos escreviam, já se haviam derramado na Judea, quinhentos ou mais annos antes.

Era dividido o Scheol, ou mundo futuro, em duas regiões, que comprehendiam o paraiso e a géhenna. A géhenna, objecto d'este estudo, era contada no numero das sete creações anteriores ao nosso universo. Á similhança do Amenthi egypcio e do Naraka indiatico, era formada de diversos circulos, mas só tinha sete, correspondendo aos sete dias do Genesis, e aos sete ceos ou sete circulos do paraiso. Havia géhenna superior e géhenna inferior. A superior abrangia os seis primeiros circulos: era uma especie de purgatorio onde baixavam, depois da morte, os peccadores dignos de perdão: uns ficavam no sexto, outros no quinto, outros no quarto circulo, outros no primeiro, conforme a gravidade ou leveza dos seus peccados. Trezentos e sessenta e cinco degráos, correspondentes aos trezentos e sessenta e cinco peccados assignalados pelos doutores, formavam escaleiras d'um circulo a outro, e em cada circulo era mister passar trezentos e sessenta e cinco dias. Porém, os grandes criminosos, abatidos sob o gravame de suas culpas, atravessavam, sem poder parar e com a rapidez de pedra arrojada por funda, os seis primeiros circulos da spiral, e cahiam no setimo, no fundo abysmo, na géhenna inferior, d'onde não ha mais sahir. Á frente de suas legiões ahi os recebia Samael, e então lhes começava o perpetuo supplicio, o insulto dos diabos, a saudade da vida, o fogo interno e externo, o tormento da sêde, e a miragem cruelissima que scintilla aos olhos dos peregrinos agonisantes no deserto[1].

Taes eram, em resumo, as opiniões da synagoga ácerca do inferno. Entretanto os essenios, seita monastica celibataria que vivia em commum para espiritualmente se reproduzir, professavam outra. O inferno d'elles, coisa notavel, similhava ao dos monges thibetanos; os soffrimentos ahi eram calor e frio, e todas as intemperies das estações em climas deseguaes.

Agora vejamos o inferno dos nossos theologos.

  1. O inferno mahometano é copia do judaico, mas copia singularmente alterada. O anjo Trakek é quem lá governa. Ha lá chuva de peçonha. Chama-se Géhenna e divide-se em sete circulos. Porém, exceptuado o primeiro circulo, reservado exclusivamente para os musulmanos, e o ultimo, destinado aos hypocritas, cada qual dos outros é pertencente a cada uma das religiões diversas que precederam o islamismo. Estes hereticos estão portanto em andares sobrepostos, quasi por ordem de sua antiguidade: os christãos no segundo, os judeus no terceiro, os sabeos no quarto, os guebros no quinto, os idolatras no sexto. D'estes seis ultimos ninguem sahe: ahi é o verdadeiro inferno; mas o primeiro, o circulo de honra dos crentes, é purgatorio, no dizer dos doutores.