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O Japão/IV

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Eliminaram ii kammon, mas o grande fato estava consumado, bem ou mal os tratados concluídos, e o japão aberto aos estrangeiros.

Em breve, à semelhança da América do Norte, os Estados europeus entravam de mandar os seus representantes diplomáticos, e atrás destes surgiam logo, de focinho arregaçado e palpitante, os primeiros furões comercias, os farejadores de negócios virgens de exploração, os avançados de Ashaverus que aí já vinha se arrastando azafamado de saco vazio às costas; enquanto do arquipélago muitos indígenas curiosos, estalando por gosto o ocidental fruto até aí proibido pelas "Cem Leis", muniam-se de ouro e tomavam as pressas o primeiro barco a sair para a China, com medo de que, uma vez morto o Regente, não fosse de novo trancada a autorização de viajar pelo estrangeiro. Esta leva tão espontânea, quase toda de gente moça e rica, na melhor parte inteligente e ávida de aprender coisas novas; haveria no futuro de influir também nos acontecimentos políticos do país.

Quanto ao que neste ia por dentro, agora a grande questão pública era apurar se valiam ou não valiam os tratados apenas com a assinatura do Shogun. O Imperador abanava as mãos e sacudia os ombros, declarando a quem lhe ia falar em credenciais e exequatur que não lhe constava haver nenhum compromisso formal entre o seu império e qualquer Potência estrangeira; e que de sua parte evidenciassem ao novo Regente a necessidade de desenganar semelhantes importunos antes de ser preciso lançar mão dos meios extremos. Ao mesmo tempo decreta a retirada de todo o forasteiro que se ache no território sem clara e positiva autorização do Micado, e delega a Mito essa incumbência, repetindo-lhe numa carta escrita de seu próprio punho, a frase da vassoura e da poeira com que ele havia ressuscitado do outro mundo para acudir ao momento crítico.

Visionário! Agora já não era uma simples esquadra que flutuava nas águas japonesas, era uma formidável armada constituída pelo contingente marítimo das principais potências do mundo. Dir-se-ia um congresso universal nas costas do Japão, porque, além das bandeiras que de tão longe vinham por defender os seus tratados, outras novas iam chegando desejosas de entrar também em fala com a sedutora esfinge do Extremo Oriente.

E os radicais elementos patrióticos do altaneiro Sul coração do Império, sequiosos por descarregar em alguém ou alguma coisa a raiva de cruel despeito em que ardiam, nada podendo fazer contra o verdadeiro objeto do seu impotente desespero, voltaram-se contra a instituição a que pertencera o causador de tio irreparável desastre nacional; tomando porém o Shogunato para alvo dos golpes que precisavam descarregar, forçoso era opor-lhe em campo de combate a bandeira de outro poder, pelo qual se batessem e pelo qual, no momento da vitória, substituíssem o do vencido, resolveram então, depois de muito bem discutir o caso, adotar o unitarismo do Trono como ideal político. Mito, consultado, aplaudiu-os e deu-lhes de conselho que procurassem pôr à sua frente os príncipes do extremo sul.

Foi desse modo que se formou, para logo se desenvolver maravilhosamente, o partido popular do Imperador, coisa que até aí nunca tinha existido no movimento político do país. Ora, como o pobre Soberano, no seu empírico patriotismo, punha antes de tudo a preocupação de expulsar os estrangeiros, o novo partido, por cair-lhe em graça, fez o seu lema com o grito de guerra "Honra ao Micado! Fora os bárbaros!", apesar de compreender perfeitamente a impossibilidade de levar a efeito nessa ocasião tão adorado sonho.

Assim pois vinha à luz o partido do Imperador já com um plano de mistificação urdido contra o seu próprio chefe, disposto a servir-se da mesma maromba que caíra das mãos fracas de Yeçada e que servira Ii Kammon para equilibrar os seus primeiros passos no governo, pois como esses iria dizendo ao Micado que se constituía e fortificava só com o fim de bater os estrangeiros, quando a sua real intenção era, pelo menos antes de cuidar doutra coisa, combater o Shogunato.

Os daimos do sul, ligando-se a esse elemento popular, não calculavam o alcance que contra eles próprios poderia ter a campanha empreendida, não previam que a unificação do poder do trono iria absorver também o dos principados; e contavam ingenuamente que, abolido o Shogunato, o Império voltaria sem dúvida ao regime feudal de antes de Yoritomo, quando os príncipes governavam ao lado do Imperador e não estavam sujeitos i alçada do Shogun. Quanto ao que pensava a Nobreza e Povo com respeito aos estrangeiros, era opinião corrente que qualquer ação decisiva seria impossível contra eles enquanto existissem a Corte e as forças shogunais para defendê-los dentro do país, desde porém que o Imperador concentrasse na mão todo o poder e comandasse diretamente os daimos, claro estava que a questão seria prontamente resolvida.

Eis aqui em que estado se achava o país nas vésperas da sua grande revolução. A terrível guerra civil que se ia abrir, isto é, a luta de parte dos príncipes e parte do povo contra a instituição do Shogunato ou contra a dinastia dos Tokugawas, era pois conseqüência direta dos atos de Ii Kammon e não tinham raízes em nenhum fator político precedente à chegada do Comodoro Perry, como pretendem os ocidentais nos seus livros sobre o Japão.

Alçando-se o partido do Imperador até a esfera dos príncipes do sul, que eram muito unidos e poderosos, converteu-se em força disciplinada capaz de fazer frente à do Shogun, contra a qual ninguém até aí se atreveria a levantar o braço. Para ter o leitor idéia justa da importância dessa campanha, convém lembrar-lhe quão extensa permanecia então a autoridade shogunal. Além das suas inveteradíssimas tradições, mantidas por enorme família e filtradas durante dois séculos e meio ininterruptamente até os íntimos refolhos da alma da nação, era mais que considerável a força material de que dispunha, graças à maravilhosa posição por Ieiás escolhida para sede do seu poder. O grande homem havia, nem só aproveitado admiravelmente as condições topográficas do Império, como a dos elementos militares que encontrou disseminados por todas as províncias, cujos castelos fortificados se acharam sempre nas mãos de príncipes por muitos laços jungidos à família Tokugawa e à instituição agora ameaçada. A zona Tokugawal propriamente dita era a enorme bacia de Kuanto na parte leste da grande ilha central do Japão, compreendendo oito províncias cercadas de montanhas abruptas que lhes serviam de natural defesa, com os seus despenhadeiros inacessíveis, não deixando ao inimigo outro ponto estratégico mais que a cidade de Hokone na província de Izo, entre as duas bacias de Suruga e de Sagami, lugar este precisamente onde Ieiás estabelecera as barreiras dos seus vastos domínios territoriais e em que lhe era fácil verificar uma a uma as pessoas que neles penetravam. Nessas oito províncias de Kuanto residiam os oitenta mil hattamotos, vassalos diretos dos Tokugawas, os quais por sua vez, como nobres, tinham nos samurais inferiores os seus vassalos próprios. Toda essa gente se levantaria em massa ao primeiro apelo do chefe suserano.

Yedo, capital do Shogun e centro das suas operações militares, está no fundo de um golfo, cuja boca estreita era defendida de um dos lados pela fortaleza de Futsu e do outro pela de Kannonzaki, e tinha como tem, as costas guardadas por uma anfractuosa cordilheira de montanhas que só dão uma garganta praticável, a de Akonê. Em volta, para além das penedias e quebradas, todos os príncipes fortificados, menos o de Mito em Hitachi e Chimoosa, eram simpáticos à causa dos Tokugawas; e para o norte até Hakodate em Yezo, e para o sudoeste, e na ilha de Sikok, até certo ponto da ilha de Kiuciu ao sul, não havia um daimo inimigo dela, podendo por conseguinte as forças do Shogun moverem-se por toda a parte, certas de que só poderiam encontrar auxílio e proteção. Os únicos pontos do Império que escaparam à imensa rede estendida por Ieiás eram, além de Hitachi e Chimoosa a noroeste, o extremo sul da ilha de Kiuciu, onde se acham as províncias de Ocumi e Satzuma, e o extremo oeste de Hondo em que existe a de Nagato. E foi precisamente destes pontos que rebentou a guerra.

Havia assumido a regência do Shogunato Ando Tsusima, como ministro sucessivo do príncipe de Hikone. É um comparsa sem feitio próprio, com quem não vale a pena gastar muitas palavras em descrevê-lo; sumir-se-á daqui a pouco nos bastidores, substituído pelo dono legítimo do papel, Iyemochi, que reclama o seu cargo e entra a exercê-lo antes mesmo da maioridade comum, no Japão fixada aos vinte anos; comum, disse eu, porque a dos membros da família imperial é privilegiadamente contada dos dezoito anos em diante, e a dos príncipes Tokugawas era a partir dos quinze.

Como esperavam todos, Ando Tsusima, galgando o poder, declarou logo sustentar os atos e a norma política do seu antecessor, mas ao mesmo tempo, para fazer crer que não persistiam divergências entre o Shogunato e o trono micadoal, abriu mão do príncipe de Mito, a quem Ii Kammon havia condenado ao exílio perpétuo e a quem o Imperador agora por último delegava a expulsão dos estrangeiros; e faz melhor: consegue a aliança do seu jovem chefe Iyemochi com uma princesa ainda mais jovem, irmã legitima do Micado; pomposo casamento que se realizou em 15 de dezembro de 1860.

Nada disto porém impediu que continuasse cavado o abismo entre as duas Cortes, como não impediu que se desse, para mais agravá-lo, o seguinte revoltante fato: precisando Mito recompor uma parte desmantelada das trincheiras do seu castelo e estando com toda a gente ocupada, mandou chamar de fora alguns pedreiros; apresentaram-se oito sujeitos com o traje característico daquele ofício e armados de picaretas, martelos e alavancas (no Japão cada artífice trazia sempre o seu uniforme próprio). Confiou-lhes o príncipe o trabalho e foi em pessoa mostrar o que havia de fazer. Os oito operários desceram com ele ao fundo das fortificações e lá, vibrando as ferramentas que levavam, o trucidaram e mais a dois pajens que o acompanhavam. Aos gritos destes últimos, acudiram as sentinelas, mas antes já os assassinos tinham galgado os fossos e mergulhado nas valas sem deixar rastros de si. Eram os oito samurais que em Yedo sobre o cadáver de Ii Kammon haviam jurado vingar-lhe a morte.

Semelhante crime, tão vil e traiçoeiro, tão contrário aos usos cavaleirescos do japonês do tempo, achou enorme repercussão na alma generosa do povo, a quem sem dúvida não desagradava um homem que só tinha coração para amar o seu imperador e odiar os estrangeiros; pelo menos todas as classes armadas, até mesmo as hostes do Shogun, viam em Mito a legítima e briosa expressão do velho sentimento nacional. A nódoa daquela covardia chegou para todos os samurais que foram de Ii Kammon; alguns rasgaram o ventre sentindo-se desonrados; e, sabendo-se que Iyemochi ao ouvir falar do monstruoso crime, tivera um mau sorriso e nenhuma providência dera para castigar os criminosos, nobreza e povo começaram a ver nele um Tokugawa degenerado e um dinasta perverso, apesar da sua extrema juventude e natural donaire que o faziam simpático aos olhos da nação. O Imperador, desde esse fato, começou a desdenhá-lo.

Com a morte do seu idolatrado chefe, os nativistas de Hitachi e Chimoosa sentem-se desamparados, ali tão cerca de Yedo, valhacoito do estrangeirismo, e tão longe do extremo sul, onde palpitava o coração da pátria. O sucessor natural de Mito era uma criança e no horizonte político da nação não havia ainda então apontado o vulto juvenil e petulante de Mori Daízen, príncipe de Nagato, parente do assassinado, e que foi quem o secundou no ardor da convicção e na audácia franca de sustentá-lo pelas armas.

À falta de sinceridade e firmeza nos chefes nativistas, ganhava terreno a causa dos estrangeiros, fortalecida agora pela veemência do novo Shogun; herdeiro de muito ódio e muita sede de vingança contra os inimigos da sua dinastia. Mas, enquanto com mil disfarces, e às pressas se levantavam em Yedo, no Coten Yama, terreno de propriedade particular dos Tokugawas, os edifícios destinados às legações ocidentais, ia minando o pais nas mais fundas camadas até aí indiferentes à agitação política, um surdo mal estar, uma angustiosa desesperança no futuro, um desses perigosos descontentamentos do povo, que são já principio de raiva e revolta contra os que governam. Entretanto, nem uma só parcela de tal repugnância pública visava a pessoa do Micado, porque o pobre povo, na sua instintiva vidência, compreendia, adivinhava, que contra os invasores da pátria, só havia agora em campo duas vontades sinceras — a dele próprio e a do Imperador, dois utopistas, dois ignorantes da vida nova, dois ludibriados pelas ambições dos outros, desses outros que só faziam política de intriga, tratando cada qual do seu particular interesse. O Shogun, a Corte Shogunal, a Corte Imperial, os príncipes do Sul, os príncipes do Norte, todos disputavam entre si o maior quinhão de domínio público sem cogitar nenhum deles da ferida que fazia gemer a pátria apunhalada.

Mas esse contínuo gemido sem socorro pode transformar-se em uivo de tempestade feroz; aquele surdo e recalcado desespero pode de súbito fazer-se aspiração nacional e rebentar com fúria, devorando todos os poderes constituídos para só deixar firme e de pé as duas expressões sinceras da nação — O Micado e o povo. Foi isto o que não souberam ver, o Shogun, nem os senhores feudais, nem a Corte do Imperador, nem o seu próprio partido. É fácil enganar diplomatas estrangeiros, mal conhecedores do verdadeiro mecanismo político do país que os engana; é fácil mistificar um monarca espiritual, sofismar-lhe as ordens e torcer-lhe a vontade ao sabor dos ministros que ele supõe governar; mas iludir um povo ferido no seu patriotismo, isso deixa de ser difícil para ser impossível e só pode ter conseqüências desastrosas para o temerário que o surpreender. E foi isso justamente o que aconteceu. Muitos soldados começam logo a abandonar entristecidos os seus nobres chefes, a quem de corpo e alma obedeciam, para se incorporarem à ventura, sem patentes nem garantias, aos grupos sediciosos que se vão formando entre os samurais do sul e os roninos de todo o Império. O recente partido do Imperador estala em pedaços, e cada cisão é mais uma nuvem sinistra que vai bandear-se com a tempestade iminente. Em breve de Hitachi e Chimoosa, as duas províncias viúvas do único príncipe com que contava o povo, surgem multidões armadas que chegam até às portas da capital do Imperador, soltando o mesmo grito de guerra do partido despedaçado, mas agora não como simples embuste para agradar ao chefe e sim fazendo dele o sincero programa do seu ideal político. "Honra ao Micado! Fora os bárbaros!" é agora um ardente grito d'alma e há de ecoar por todos os recantos do país até a explosão da mina.

E começam os saques e as pilhagens, porque toda essa gente que grita, de mãos arrancadas para o céu e olhos desvairados pelo ódio, já não trabalha nem ganha com que comer. O terror invade os campos abundantes e os centros populosos por onde voa essa multidão devastadora, mas ninguém, por medo ou espontânea cumplicidade, não se atreve a denunciar um deles. E das mãos do lavrador e do operário arrancam as ferramentas para as transformar em armas de combate.

Todavia, essa gente, que os alheios historiadores do Japão tratam com tão negro e desabrido rancor; essa gente que exerce a pilhagem para não morrer de fome, nada mais quer do que a deixem morrer gloriosamente defendendo a pátria ferida e sem socorro, a tenda em que vivem honrada e feliz e que agora, tão mesquinha! parece abandonada dos seus divinos príncipes e dos seus humanos deuses. Essa alucinada farândola, que lá vai, legião de espectros! — a correr, uivando através dos campos e das cidades, de província em província, de castelo em castelo, anda doida, como seu Imperador, à procura de uma espada que a conduza contra os malditos abutres que lhe invadem o ninho paterno. É morto porém o grande Mito, o homem que partiu o coração em duas conchas, para encher uma de amor nativo e com ela dar de beber à sua raça, e a outra de ódio envenenado reservada às que viessem lá de fora banquetear-se no inviolável e sagrado arquipélago de Amateras; é morto o grande Mito, e os príncipes que aí restam de pé, nem parecem descenderem dos preclaros daimos dos tempos heróicos — Satzuma negou-se a comandar o bando desamparado; negaram-se outros; negaram-se todos.

Então, como as primeiras bolhas de uma efervescência subterrânea, irrompem por aqui e por ali, em plena rua das duas capitais e das cidades imediatas, represálias cruéis já ensopadas em sangue: no dia 14 de janeiro de 1862 assassinam em Yedo a golpes de machado o Secretário da Legação norte-americana, Heusken, então interinamente encarregado de negócios, e que acabava de representar papel saliente nas pretensões internacionais do seu país; em 15 de julho do mesmo ano, o templo cedido pelo Shogun à Inglaterra para ai fazer funcionar provisoriamente a sua Legação, é atacado durante a noite e são estranguladas as duas sentinelas inglesas que o guardavam e detruídos todos os móveis, escudo d'armas, bandeiras, livros e papéis que havia dentro; em seguida é uma tentativa de morte contra Ando Tsusima, que escapou gravemente ferido e inutilizado para o resto da vida, tendo de abandonar por vez o Governo no qual persistia em atividade como ajudante d'ordens de Iyemochi; depois foi uma descarga de arcabuzes contra um grupo de cinco estrangeiros que passeavam no Tokaido e o assassínio do inglês Richardson; logo adiante o incêndio da nova Legação da Inglaterra, cujo edifício se acabava de construir no parque de Goten Yama em Kioto; e outros, e outros desforços se sucederam, e outros e outros terão de vir, e as provocações por parte dos nacionais se irão multiplicando cada vez mais cruas e destemidas. O bando impetuoso avulta e enrobustece de dia para dia; já não é a humilde farândola que suplicava um braço armado, é agora um indômito vulcão que rola de norte a sul, de leste a oeste, deixando atrás de si o arquipélago aceso na cólera por ele desencadeada; é um baluarte ambulante que à nação inteira se impõe pelo desespero da causa que o agita; é uma força tempestuosa, desordenada e cega, que depois de varrer a necrópole dos Tokugawa em Nikko, decepando as centenas de ídolos de granito celebrados dos shoguns passados, vai à Corte Imperial tomar-lhe contas pela infame lentidão e covarde cautela que estão pondo seus membros em cumprir as ordens do Chefe do Estado, e vai depois ao castelo do próprio Imperador para pedir-lhe que se não deixe ludibriar por mais tempo, que abandone a sua túnica celestial, envergue as armas dos seus antepassados de antes de Yoritomo e venha cá fora à rua, entre o seu povo, repelir à frente dele os bárbaros atrevidos.

O soberano não aceitou o alvitre, mas atendeu comovido aos que reclamavam; chegou a mandar, contra todas as fórmulas da etiqueta micadoal, descer as portas do chiro, abrir as portas do sagrado recinto e mostrar-se à multidão, envolto espectralmente da cabeça aos pés, num enorme véu todo negro, que lhe não deixava transparecer o menor vislumbre das suas formas de homem.

A multidão prosternou-se com um gemido de súplica, emborcando por terra, braços estendidos, rosto colado ao chão. E aquela imóvel sombra divina, daquele mistério todo negro, uma voz saiu e ressoou, amiga e humana, no meio do religioso silêncio, como um balbuciar de bênçãos enviadas pelo céu. A boca do santo falou pela segunda vez, para dizer:

— O espírito dos meus avós penetrou vossas entranhas e é convosco! A vossa vontade é a vontade do meu coração, e ela se fará verdade, se os Deuses a quem pertenço me não tomarem antes para junto de nossa mãe formosa e cheia de luz. Em nome de Amateras vos digo que tomeis ao vosso lar pelo caminho da satisfação: vou remeter ao Shogun ordem terminante para repelir os bárbaros. Ide vós, e que os olhos de Izananmi vos acompanhem pela estrada!

Cerrou-se o reposteiro do santuário e desapareceu o divino espectro. A multidão ergueu-se com um suspiro de consolo, e foi feliz e reconfortada de esperança que retirou do sagrado reduto, bradando o seu grito de guerra contra os estrangeiros e em honra do Micado.

Este, cumprindo o que acabava de prometer, expediu logo ao Shogun por cinco kugês uma ordem escrita de seu próprio punho, na qual, descobrindo-se de novo, fazia já sentir bem ao vivo a sua ascendência monárquica. Os emissários partiram a galope para Yedo e o bando de nativistas atirou-se a correr na mesma direção.

Eis o que dizia a carta do Imperador:

Desde a primeira vinda dos tais americanos, Eu Micado, dei ordem para varrê-los do meu Império. Não fui atendido. Meu coração vive agitado dia e noite, porque até hoje nada se decidiu com respeito à expulsão dos bárbaros. Entre as forças regulares do Estado e as forças vivas da Nação não existe a menor coerência; de sorte que, em vez de guerra com o inimigo exterior por mim determinada, é a guerra civil que ameaça agora devorar e país. Para evitar esta tão grande calamidade e outras que depois ainda sobrevenham, pois a desgraça é má e medrosa e nunca se apresenta desacompanhada, recomendo ao Shogun que delibere positivamente sobre a expulsão dos invasores, e leve quanto antes esta minha irrevogável ordem ao conhecimento de todos os príncipes fortes do Império. O Shogun, na qualidade de Comandante em Chefe dessas forças, há de achar meios estratégicos de pôr em execução as minhas ordens. Tal é o seu dever e tal é a minha vontade de Imperador.

"Vigésimo oitavo dia do quinto mês" (25 de junho de 1862).

Os nativistas não tardaram a surgir em Yedo, reclamando a execução da ordem imperial e declarando ao Shogun que se achavam prontos a expulsar os bárbaros, se lhes desse ele elementos para a luta. Por única resposta, Iyemochi, que se havia prevenido, mandou destroçá-los pelos seus oitenta mil hattamotos.

Seguiu-se uma infernal tragédia, porque os visionários tentaram resistir e assaltar o castelo e foram completamente esmagados, deixando mais de vinte mil mortos no campo da sua heróica temeridade. Os que conseguiram escapar à rápida carnificina despejaram-se como demônios pelas ruas de Yedo, a lançar fogo em quarteirões inteiros da vastíssima capital. Mas naquele mesmo decreto do Imperador estava implicitamente imposta a anistia dos implicados nos sucessos contra Ii Kammon, e o Shogun, para não desobedecer de frente ao Soberano, teve que desencadear por suas próprias mãos os príncipes inimigos do Shogunato, Owari, Echízen, Uwajima e os outros postos em liberdade vão apresentar-se logo ao Micado e passam, por ordem deste, a exercer altos cargos na Corte Imperial, ou são restabelecidos na posição oficial que dantes ocupavam; por outro lado, o Monarca resolve punir com a supressão parcial nas rendas os daimos que s~ tinham posto ao lado de Ii Kammon.

Como se vê, já em fatos se traduzem os sonhos do divino fantasma e a situação política começa a definir-se. Os príncipes de Satzuma e de Tosa, acompanhados pelo de Nagato, o jovem e ardente Mori que até então não tinha aparecido na cena política, vão também apresentar-se ao Imperador e oferecer-lhe os seus serviços na defesa do Trono. Esses três príncipes formavam o mais poderoso núcleo de resistência entre todos os daimos do Império. Komei recebeu-os nadando em júbilo e entregou-lhes logo a guarda e segurança da sua capital, agora a regurgitar de população com o enxurro fugitivo dos litorais; gente fraca e desarmada que, no momento do perigo, ia abrigar-se estarrecida de medo à protetora sombra do filho dos deuses. Volvia esse povo, como no principio da sua formação étnica a agremiar-se em torno do centro espiritual da sua raça.

Para a sagrada Kioto voltavam-se todas as vistas, e os fidalgos não ligados diretamente ao Shogun por interesses dinásticos de família, cargo público ou solidariedade política, entraram de abandonar Yedo que era nessa época, como ainda é hoje, a maior e mais importante cidade do Japão; nos rastros da nobreza seguem também os artistas e os obreiros, e afinal os mercadores, com a tenda às costas, arribam por sua vez. É o abandono palpável da capital do homem mau. O restante da população levanta-se em massa, e da noite para o dia a incomensurável Yedo despovoa-se de todo, não ficando lá senão os Tokugawas, os hattamotos, e a Corte de Iyemochi com as suas duas câmaras, e os seus samurais e funcionários permanentes

Por essa ocasião, a 15 de abril de 1863, o Ministro plenipotenciário da Inglaterra, em termos arrogantes, reclama uma indenização de cem mil libras esterlinas pelo assassínio de Richardson, desculpas formais pedidas pelo Governo Japonês ao Governo daquela Potência, e a execução dos criminosos diante de uma força naval da Marinha Britânica que iria à terra só para esse fim; e mais vinte e cinco mil libras pelos feridos em diversas ocasiões, e mais dez mil pelas duas sentinelas mortas no ataque à legação provisória, limitando em vinte dias o prazo para uma resposta categórica e declarando que, no caso de recusa ou negligência por parte do Governo Japonês, passaria a questão às mãos do Comandante em Chefe das forças navais de Sua Majestade Britânica nas águas do Extremo Oriente, o Almirante Kuper, para que tomasse este as medidas coercivas que lhe parecessem acertadas.

Bárbaros lhe chamavam os filhos do país, e com razão, porque bárbaro não é só o que comete barbarias, é também todo aquele que comete barbaridades.