O Jesuíta (José de Alencar)/I

Wikisource, a biblioteca livre

CENA PRIMEIRA[editar]

CONDE DE BOBADELA e MIGUEL CORREIA

CONDE – Então?

CORREIA – Saiu.

CONDE – Com quem falastes?

CORREIA – Com a sua caseira.

CONDE – Quando volta? Perguntastes?

CORREIA – Não sabe.

CONDE – Impossível...

CORREIA – Insisti, porém nada pude colher.

CONDE – Desconfiou talvez.

CORREIA – Não creio. Disse-lhe, como me ordenou V. Ex., que se tratava de um doente.

CONDE – Não importa: ele há de tornar. É preciso que hoje mesmo o tenha em meu poder.

CORREIA – Como! É intenção de V. Ex. prendê-lo?

CONDE – Não interroga senão quem tem o direito de saber, Miguel Correia. Conhecereis minhas intenções, quando vos der as minhas ordens.

CORREIA – Perdão, Sr. Conde; sei o que devo a meu superior e o que me devo a mim mesmo; não tive propósito de interrogar a V. Ex.; foi simples admiração.

CONDE – E em que vos admira a prisão desse homem? Dizei-o!...

CORREIA – Permite o Sr. Governador que eu seja franco?

CONDE – Ordeno, se é preciso.

CORREIA – Não ignora V. Ex. que o doutor Samuel é estimado de todos; não há miséria ou infortúnio nesta cidade à que ele não leve um alívio ou um consolo. A sua ciência é tão profunda, quanto sua bolsa é rasa; ao passo que uma serve ao rico, a outra pertence aos pobres.

CONDE – E que concluis de tudo isto?

CORREIA – Que a prisão desse homem, com ser uma injustiça, pode tornar-se um perigo. O povo o defenderá; os padres sobretudo o sustentarão.

CONDE – E eu o acusarei contra o povo, contra os jesuítas, contra todos. Não se dirá que um aventureiro zombou do conde de Bobadela e lutou impunemente contra a coroa de Portugal.

CORREIA – Que diz, Sr. Governador?

CONDE – Digo que este velho não é o que pensais; mas um perigoso conspirador. Há muito que o suspeitava; mas só hoje tenho a arma, que o deve ferir. (Mostra-lhe um pergaminho.) Reconheceis?

CORREIA – O selo do marquês de Pombal?!

CONDE – Sim, daquele que devia ser rei, se não fosse ministro de D. José I (Estêvão entra.)

CORREIA – Ah!... É o pupilo do doutor Samuel.

CONDE – Não quero que nos veja. Voltemos ao paço; tomai uma guarda de vinte homens e ocultai-vos nas vizinhanças. Ao meio-dia estarei aqui; tenho despachos que escrever para as capitanias do sul.

CENA II[editar]

INÊS, JOSÉ BASÍLIO e ESTÊVÃO

INÊS (ao descer encontra-se com José Basílio.) – Ai!... Não gosto destas graças, Sr. estudante!

JOSÉ BASÍLIO – Não é graça, não, Inês; é. negócio muita sério. Tu me deste um abraço, devo pagá-lo.

INÊS – Fui eu que o dei!... Forte desaforo!

JOSÉ BASÍLIO – Bem sei que as mulheres não costumam confessar estas coisas; por isso podes desculpar-te comigo.

INÊS – Não tem vergonha! Um rapaz que traz este santo hábito!

JOSÉ BASÍLIO – Pois é mesmo por isso. Este santo hábito é uma capa de nossas mazelas. (Descem à esquerda.)

INÊS – E de todas as travessuras que o senhor faz aí à sorrelfa. Ah! se o Reitor o ouvisse!

JOSÉ BASÍLIO – Que tinha isso?... A nossa regra proíbe com penas muito severas amar uma mulher, uma, entendes, Inês? Isto quer dizer que devemos amar a todas.

INÊS – Que heresia, santo Deus! E é um tonsurado quem diz semelhante coisa!

JOSÉ BASÍLIO – Não sou eu quem o diz, filha; é o mandamento: “Amar ao nosso próximo como a nós mesmos.” Tu és meu próximo, Inês; e eu estou tão próximo de ti que... (Ameaça beijá-la.)

INÊS – Sr. estudante!... Não se engrace; olhe que eu conto a frei Pedro!

JOSÉ BASÍLIO – Está bem; não vai a zangar, filha. Falemos de cousas urgentes. Onde encontrarei o doutor Samuel?

INÊS – Pergunta a quem não lhe sabe responder. Ainda há pouco procuraram por ele para ver um doente, e não lhe pude valer.

JOSÉ BASÍLIO – Como há de ser? Precisava falar-lhe sem demora.

INÊS – Há alguma coisa lá pelo convento? O que aconteceu?

JOSÉ BASÍLIO – Está tudo em uma balbúrdia, que ninguém se entende. Chegou-nos um capitão espanhol, uma espécie de ferrabrás que pôs toda a casa em alvoroto: e o padre Reitor mandou-me a toda a pressa entregar esta carta ao doutor Samuel.

INÊS – Que será, bom Deus? Talvez alguma das do Sr. Governador contra os santos padres de Jesus.

JOSÉ BASÍLIO – Decididamente não me dizes onde o acharei?

INÊS – Ora!... Aquilo é homem que nunca se sabe onde anda.

JOSÉ BASÍLIO – O verdadeiro é esperar. — Chega-te, filha.

INÊS – Já começa com as suas brincadeiras!

JOSÉ BASÍLIO – Não; agora trata-se de um objeto muito grave.

INÊS – O que é? Vamos a ver.

JOSÉ BASÍLIO – Com o barulho que havia lá pelo convento frei Bandurra, sabes, o nosso despenseiro, esqueceu-se do refeitório.

INÊS – E que tem isso?

JOSÉ BASÍLIO – Tem, que sinto uma fome de sexta-feira; ainda estou com a boca com que dormi.

INÊS – Entendo! Quer que vá aprontar-lhe o almoço?

JOSÉ BASÍLIO – Benta palavra! Vai, filha, vai. Não te esqueça um daqueles franguinhos recheados como sabes preparar.

INÊS – Só pensa em comer e vadiar.

JOSÉ BASÍLIO – Não gastes o tempo com palavras. Se queres, vou ajudar-te.

INÊS – Muito obrigada! Dispenso.

JOSÉ BASÍLIO – Pois então enquanto espero, vou fazer-te um soneto, para pagar o almoço.

INÊS – Como aquela cantiga?

JOSÉ BASÍLIO – Sim, mas avia-te!

INÊS – Arre lá com tanta pressa!

JOSÉ BASÍLIO – Ah! onde anda Estêvão?

INÊS – Há de estar lá no seu canto costumado, às voltas com os livros.


CENA III[editar]

JOSÉ BASÍLIO e ESTÊVÃO

JOSÉ BASÍLIO – Em que pensas, Estêvão?

ESTÊVÃO – José Basílio!... Oh! estimei que viesses.

JOSÉ BASÍLIO – Tens alguma coisa que dizer-me?

ESTÊVÃO – Sim, e uma coisa bem importante para nós ambos.

JOSÉ BASÍLIO (a rir.) – Vamos a isso, apesar de que ainda não almocei, e as emoções em jejum causam certo desarranjo.

ESTÊVÃO – Não gracejes, José Basílio. O momento não é para isto. Quando souberes...

JOSÉ BASÍLIO – Desculpa!... Este meu gênio!... Sou incorrigível! Mas não faças caso; sabes que sob esta aparência frívola, bate o coração de um amigo.

ESTÊVÃO – E de um bom e sincero amigo, a quem posso confiar-me.

JOSÉ BASÍLIO – Fala! O que tens para dizer-me?

ESTÊVÃO – Uma palavra, uma só; mas uma triste palavra. Vou dizer-te adeus!

JOSÉ BASÍLIO – Tu partes?

ESTÊVÃO – Estou decidido.

JOSÉ BASÍLIO – Quando?

ESTÊVÃO – Amanhã.

JOSÉ BASÍLIO – Para onde?

ESTÊVÃO – Não sei.

JOSÉ BASÍLIO – Mas é um projeto louco!

ESTÊVÃO – É uma resolução inabalável.

JOSÉ BASÍLIO – Pensaste bem no passo que vais dar?

ESTÊVÃO – Pensei em tudo; e decidi quebrar de uma vez esta cadeia que me prende. Amanhã deixarei esta terra.

JOSÉ BASÍLIO – E que destino levas?

ESTÊVÃO – Vou para onde me lançar a sorte. O lugar pouco importa, com tanto que seja livre!

JOSÉ BASÍLIO – Mas, Estêvão, reflete no futuro que te espera. Só e sem recursos, sem parentes.

ESTÊVÃO – Deus deitou-me órfão e enjeitado neste mundo.

JOSÉ BASÍLIO – Porém deu-te um protetor e amigo que velou sobre a tua infância. A habitação do doutor Samuel é para ti a casa paterna; tu não podes, não deves fugir dela.

ESTÊVÃO – Fugir!... Estás enganado, José Basílio, se pensas que pretendo partir às ocultas como um criminoso.

JOSÉ BASÍLIO – O doutor Samuel consentirá?

ESTÊVÃO – Sou um homem; tenho o direito de dirigir-me pela minha vontade. Ainda não fiz voto de obediência.

JOSÉ BASÍLIO – Assim, não há razão que te faça mudar de propósito; nem a dor daquele que te serve de pai; nem o pedido de um amigo?

ESTÊVÃO – Devo partir.

JOSÉ BASÍLIO – Neste caso, não me resta senão dizer-te que a todo o tempo acharás sob esta grosseira estamenha o mesmo amigo que hoje abandonas.

ESTÊVÃO – José Basílio!... Não me acuses! Não me julgues ingrato!

JOSÉ BASÍLIO – Lamento-te; não tenho o direito de acusar, Estêvão.

ESTÊVÃO – Vou abrir-te minha alma. Ouve e julga-me. Sabes o respeito e a admiração que voto ao homem que me recolheu como um filho, quando meus pais me atiraram à rua como um fardo inútil. Ele tem sido para mim, mais do que um amigo ou protetor, mais do que uma família: Também o que eu sentia não era amor, era um culto. Sua vontade era a minha lei; quando há dois anos comunicou-me seu desejo de que eu entrasse na companhia de Jesus logo que terminassem os meus estudos; recebi essa nova com a mesma satisfação que tinha sempre que podia cumprir uma ordem sua.

JOSÉ BASÍLIO – E eu alegrei-me com a esperança de que a minha cela ia receber a outra metade de minha alma que andava erradia pelo mundo.

ESTÊVÃO – À mim também sorriu esta esperança. Mas então... Perdoa-me, José Basílio! Então o coração não havia despertado; o horizonte da vida não se abrira: ignorava ainda que acima da religião, do respeito filial, da amizade, há um outro sentimento mais forte e mais profundo que domina o homem e o possui todo e tanto que a existência se resume nele.

JOSÉ BASÍLIO – O amor?

ESTÊVÃO – Sim, o amor. Como eu o senti não sei dizer-te: Vi uma menina, vi-a um instante, porém esse instante foi uma revolução em minha vida; a alma elevou-se da terra; e eu engrandeci-me com este sentimento novo. Sonhei glórias, poder...

JOSÉ BASÍLIO – Oh! compreendo tudo agora! É este amor que te obriga à uma resolução desesperada.

ESTÊVÃO – É este amor que me faz ambicioso, e que me dá sede de liberdade!... Quero merecê-la! (D. Juan aparece.)

JOSÉ BASÍLIO – Alguém nos escuta!

ESTÊVÃO – Um soldado!... Por estes lugares!

JOSÉ BASÍLIO – Parece-me que já vi esta figura de mata-mouro.

ESTÊVÃO – Vê se consegues afastá-lo; preciso estar só aqui. Depois falar-te-ei...

JOSÉ BASÍLIO – Onde nos encontraremos?

ESTÊVÃO – Na portaria da Ajuda.

JOSÉ BASÍLIO – Não te demores.


CENA IV[editar]

JOSÉ BASÍLIO e D. JUAN

D. JUAN – Bom-dia, senhor roupeta!

JOSÉ BASÍLIO – Deus o salve, senhor gibão rafado!

D. JUAN – Hein!... Que é isso lá?

JOSÉ BASÍLIO – Perdão! Pelo tratamento de v. m. julguei que era uso agora apelidar-se a gente pelo vestuário.

D. JUAN – Pois para que não se adiante, saiba que tem a honra de falar ao insigne capitão D. Juan Fuerte de Alcalá, fidalgo espanhol, atualmente ao serviço d’El-Rei D. José I, nosso senhor, que Deus guarde. (Tira o chapéu.)

JOSÉ BASÍLIO – Servo de v. m. José Basílio da Gama, noviço estudante na companhia dos Padres de Jesus que tem a sua colegiada no morro do Castelo desta cidade de São Sebastião. (Tira o chapéu.)

D. JUAN – Conheço. Conheço a tal colegiada! De lá venho agora.

JOSÉ BASÍLIO – Assim me parecia; lembrava-me tê-lo deixado quando saí.

D. JUAN – E se não tomasse a boa resolução de pôr-me ao fresco, ainda lá estaria à esta hora olhando para as paredes à espera que os malditos frades se decidissem a dar uma palavra. Com a breca! É uma casa de mudos!

JOSÉ BASÍLIO – Que lhe sucedeu então?

D. JUAN – Ora !... Chego, pergunto pelo Reitor, levam-me a um velho carola; exponho-lhe o caso em termos claros; o reverendo escreve uma carta, levanta-se e até agora o espero. Dirijo-me a uns barbaças que andavam como baratas de um lado para outro, e por toda a resposta levam o dedo à boca. Pelas chagas de Cristo! Era de mais. Puxo da espada; a fradaria barafusta por um corredor, e eu ganho a ladeira.

JOSÉ BASÍLIO (rindo.) – Ora, deixe estar, senhor capitão, que para outra vez não lhe há de acontecer o mesmo. Lá estarei, e conversaremos à larga.

D. JUAN – Para outra vez! Pois não! Tinha que ver si eu voltasse à semelhante casa.

JOSÉ BASÍLIO – Mas o negócio de que ia tratar?

D. JUAN – Que se arranjem! Se quiserem, procurem-me; o negócio é deles.

JOSÉ BASÍLIO – Entretanto, segundo ouvi, foi isso que o trouxe ao Rio de Janeiro?

D. JUAN – Histórias! Uma bela manhã passeava pelo cais do Sudré quando deram-me tentações de viajar. Eu cá sou da escola de César; um navio levantava a ancora: decidi, embarquei, e cheguei.

JOSÉ BASÍLIO – Ontem à noite no galeão São Martinho?

D. JUAN – Justamente.

JOSÉ BASÍLIO – Mas para decidir-se assim à uma viagem tão precipitada devia ter uma razão forte.

D. JUAN – Eu lhe digo. Estava em Lisboa muito a meu cômodo; porém a minha bolsa, que entrara na capital da Lusitânia bem recheada, ficara reduzida a cinco patacas em prata. Ora, eu sigo um sistema; quando não tenho dinheiro viajo.

JOSÉ BASÍLIO – É inteiramente o contrário do que os outros costumam.

D. JUAN – Não duvido; dou-me perfeitamente com o meu sistema; tenho percorrido as quatro partes do mundo; na Europa passei por um príncipe viajando incógnito; na Ásia por um pachá de três caudas; na África pelo novo profeta.

JOSÉ BASÍLIO – Na América, passará pelo que é!...

D. JUAN – Aqui pretendo casar-me com uma caboclinha, filha de algum cacique que traga-me em dote uma mina de ouro e um alqueire de diamantes. E quem me há de arranjar isto, é lá o seu Reitor.

JOSÉ BASÍLIO – Ah! Já pretende voltar ao convento?

D. JUAN – Pois não!... Ele virá ter comigo.

JOSÉ BASÍLIO – Esta é mais curiosa!

D. JUAN – Veremos! O que eu lhe disse hoje lhe dará a curiosidade de saber o resto.

JOSÉ BASÍLIO – Pelo que parece, é cousa muito importante!

D. JUAN – Não; são duas palavras, mas aposto que S. Ex. o senhor conde de Bobadela, daria por elas de olhos fechados a soma de mil cruzados.

JOSÉ BASÍLIO – Sim!... E por que não lhos pediu ainda?

D. JUAN – Por quê?... Porque os frades podem dar o dobro; se não quiserem, então vou ao Governador. Quando se arrependerem será tarde. Até à vista. (Afasta-se.)

JOSÉ BASÍLIO – Senhor capitão?

D. JUAN – Que temos?

JOSÉ BASÍLIO – Escute por mercê.

D. JUAN – Vá lá, mas depressa; que eu estou demorado por estes sítios.

JOSÉ BASÍLIO – O senhor ignora decerto que vim do convento trazer uma carta.

D. JUAN – A tal carta do Reitor?

JOSÉ BASÍLIO – Essa mesma; ele escreveu ao doutor Samuel.

D. JUAN – Quem é esse doutor Samuel?

JOSÉ BASÍLIO – É um medico italiano, homem de muito saber e virtudes a quem o padre Reitor costuma consultar.

D. JUAN – Ah! E onde se encontra esse homem precioso?

JOSÉ BASÍLIO – Olhe; ali está a casa.

D. JUAN – Bom; vou já falar-lhe.

JOSÉ BASÍLIO – Com licença! Saiu, mas não pode tardar; também estou à sua espera.

D. JUAN – Hein!... Tudo isto me parece uma zombaria... Mas eu acabo a história, indo daqui direito ao Governador. Adeus, senhor roupeta. Diga ao Padre-mestre que breve lhe darei notícias minhas. (Estêvão entra pela direita e aproxima-se de José Basílio, que não o vê. D. Juan vai sair pela esquerda.)


CENA V[editar]

JOSÉ BASÍLIO, D. JUAN e ESTÊVÃO

JOSÉ BASÍLIO – Ouça, capitão, não se vá!

ESTÊVÃO (a José Basílio.) – Como! Em vez de afastá-lo, queres demorá-lo!

JOSÉ BASÍLIO – É verdade; tinha-me esquecido do que me pediste.

D. JUAN (a Estêvão.) – Olá, senhor moço!... Nesta terra é uso não saudar os outros?

ESTÊVÃO – Nesta terra cada qual segue o seu caminho sem dizer impertinências a quem não conhece.

D. JUAN – Pelas chagas de Cristo!... Tens a língua muito longa, meu rapaz, mas não tanto quanto a folha desta espada. (Desembainha.)

JOSÉ BASÍLIO – Que é isto, capitão? Quer brigar a esta hora?

ESTÊVÃO – Guarde a sua espada para melhor ocasião, quando estivermos sós; e então prometo-lhe que não a tirará debalde.

D. JUAN – Quando e onde quiser. Às suas ordens. (Vai sair.)

JOSÉ BASÍLIO – Escute! Escute! Tenho um negócio a comunicar-lhe! (D. Juan para.)

ESTÊVÃO (baixo a José Basílio.) – Não sei que interesse tens em demorar este homem, apesar do que te pedi! Preciso estar só aqui.

JOSÉ BASÍLIO (a Estêvão.) – Não te amofines; vou arranjar isto. Não sabes em que arriosca estou metido.

ESTÊVÃO – Como assim?

JOSÉ BASÍLIO – Este homem tem um segredo importante para a Ordem.

D. JUAN – Então, senhor noviço; acha que também deve fazer-me esperar?

JOSÉ BASÍLIO – É um instante!

ESTÊVÃO – Deixa-o ir.

JOSÉ BASÍLIO – Não é possível. Vai ao Governador.

ESTÊVÃO – Então, queres retê-lo?

JOSÉ BASÍLIO – Há um meio de conciliar tudo.

D. JUAN (desce.) – Que negócio é esse que tem a comunicar-me?...

JOSÉ BASÍLIO – Uma cousa importante!... (a Estêvão.) Lá se vai o almoço!

D. JUAN – Pois desembuche de uma vez!

JOSÉ BASÍLIO (a Estêvão.) – Não há remédio!

D. JUAN – Então, fala ou não?...

JOSÉ BASÍLIO – Agora... Capitão, sem preâmbulos, convido-o a almoçar comigo.

D. JUAN (rindo.) – Sério?

JOSÉ BASÍLIO – Infelizmente, é muito sério.

D. JUAN – Toque, e vamos a isso! (Afasta-se.)

JOSÉ BASÍLIO (a Estêvão.) – Vês a enormidade do sacrifício que te faço? Na história de Castor e Pollux não há exemplo de outro tão sublime.

ESTÊVÃO (sorrindo.) – É que tu não imitas; aperfeiçoas os modelos. (Saem José Basílio e D. Juan.)

CENA VI[editar]

ESTÊVÃO e CONSTANÇA

ESTÊVÃO – Enfim, ela não pode tardar!

CONSTANÇA – Ah!... Não sabe quanto custou-me chegar até aqui!... A todo o momento cuidava que me viam, que me seguiam... Foi uma imprudência vir a este sítio!... Ainda estou toda trêmula... Não vê?...

ESTÊVÃO – Este sítio é deserto a esta hora, e além disto, não está quase em sua casa, Constança?

CONSTANÇA – Por isso mesmo; era melhor que o esperasse.

ESTÊVÃO – Não; precisava falar-lhe sem testemunhas; tenho tanto que dizer-lhe, e vou passar tanto tempo sem vê-la!

CONSTANÇA – Sem ver-me!... E por quê?... Já não lhe causam prazer nossos alegres serões, a conversar com minha boa mãe, que todas as noites nos abençoa?

ESTÊVÃO – Não me lembre essas doces reminiscências, Constança, que me tira a coragem de confessar-lhe tudo! É para vivermos juntos, sempre; para nunca mais nos separarmos, que vou deixá-la.

CONSTANÇA – Meu Deus. Quer deixar-me, Estêvão? Oh! compreendo!... Já não me ama, e como sabe que para mim perdê-lo seria morrer, consola-me com essa tênue esperança de um futuro que não se deve realizar!

ESTÊVÃO – Ofende-me cruelmente com essa suspeita injusta!... Se fosse possível que um dia deixasse de amá-la, tenho bastante lealdade para confessá-lo e pedir meu perdão. Mas creio que isto não é possível, e que mil vidas que tivesse não saciariam esse prazer de adorá-la, de rever a minha alma, em seus olhos...

CONSTANÇA – E vai deixar-me!... E vai partir!...

ESTÊVÃO – Sim! Porque a amo, porque sua inocência é para mim tão sagrada, tão pura, que eu temo ofendê-la com uma afeição criminosa.

CONSTANÇA – Não sei o que quer dizer, Estêvão! Para mim a felicidade é vê-lo e amá-lo; a seu lado nada receio, e sinto-me tão tranquila como aos pés do altar.

ESTÊVÃO – E tem razão! Meu amor a respeita, mas ele me domina, e Deus sabe as lutas silenciosas de meu coração, a força de vontade que é preciso para resistir aos impulsos deste sentimento poderoso!

CONSTANÇA – Por que não me ama como eu lhe amo, sem temor e inquietação?

ESTÊVÃO – Sua candidez não compreende isto. Porque é minha noiva à face de Deus, Constança; mas não é ainda minha esposa para o mundo.

CONSTANÇA – Não lhe dei eu a minha alma?

ESTÊVÃO – Deu-me sua alma, Constança, e é por isso que eu respeito em sua virtude a minha felicidade futura. Parto; voltarei para pedir-lhe um bem que me pertence.

CONSTANÇA – E há necessidade de partir, quando a ventura está tão perto de nós? Hoje é o amigo de meu coração; não pode amanhã ser meu...

ESTÊVÃO – Diga, diga esse nome! Quero ouvi-lo de sua boca!... Diga... seu...

CONSTANÇA – Meu marido!

ESTÊVÃO – Seu marido! Ah! se os seus lábios, pronunciando esta palavra a santificassem como a voz do ministro do Senhor!... Mas bem sabe, Constança, que não é possível!

CONSTANÇA – Por que diz isto?

ESTÊVÃO – Sua vontade não é livre como seu coração. Esse protetor desconhecido e poderoso que a vê às ocultas consentirá que seja minha esposa?!

CONSTANÇA – Ele é bom! Faz todas as minhas vontades.

ESTÊVÃO – É uma esperança que a ilude. Interessa-se por seu futuro; é talvez seu parente e a destina a algum fidalgo.

CONSTANÇA – Não! Eu lhe confessarei que o amo; que esse amor é a minha felicidade!

ESTÊVÃO – Lembrese, Constança, que sou enjeitado; não recebi de meus pais nem a herança que o mendigo deixa a seu filho, um nome.

CONSTANÇA – E que me importa isto?... No mundo não existe outro homem para mim; não conheço a ninguém mais. Nobreza, cabedais, não valem para mim o seu coração.

ESTÊVÃO – Obrigado, Constança, obrigado! Eu a encontro como a sonhei! Mas é preciso que me eleve à altura de seu amor, e o conseguirei. A sociedade deserdou-me; minha família renegou-me; mas Deus me deu coragem para lutar com o meu destino e vencê-lo. Tranquilize-se, não me esperará muito tempo.

CONSTANÇA – Como! Ainda está resolvido a partir?

ESTÊVÃO – É forçoso!

CONSTANÇA – Oh!... eu lho peço!... Vai matar-me!

ESTÊVÃO – Então não me estima!

CONSTANÇA – Não diga isto, Estêvão.

ESTÊVÃO – Se me estima, deve ter a coragem do sacrifício. Cuida que também a mim não custa esta separação?

CONSTANÇA – Sim, sim!... Eu terei coragem, já que é preciso.

ESTÊVÃO – Agora, antes de nos separarmos, uma última graça.

CONSTANÇA – O que, meu amigo?

ESTÊVÃO (ajoelhando-se.) – Abençoe-me; Deus falará por seus lábios; e sua palavra cairá sobre mim como a unção divina.

CONSTANÇA (beijando-o na fronte.) – Adeus! (Samuel aparece no fundo.)

ESTÊVÃO (erguendo-se.) – Ah! Tu me santificaste, Constança. Sou outro homem; sinto-me com forças de fazer impossíveis. Levo tua alma neste beijo; eu a restituirei depondo a teus pés minha vida inteira. (Abraça-a.)


CENA VII[editar]

CONSTANÇA, ESTÊVÃO e SAMUEL

SAMUEL – Tua vida, meu filho, já não te pertence.

CONSTANÇA – Ah!...

ESTÊVÃO – Senhor!...

SAMUEL – Por que vos assustais, Constança? Minha presença não deve inquietar-vos. Um pai é sempre bem-vindo quando se trata da felicidade de seu filho. A afeição que tenho a Estêvão envolve todos que lhe são caros, como vós, Constança.

CONSTANÇA – Ah! se fosse verdade o que dizeis!... Mas vossas palavras há pouco eram tão severas! Pareceram-me uma repreensão!

SAMUEL – Eram apenas um conselho de amigo. Minha voz lembrava a Estêvão que ele não pode dar-vos, e que vós não podeis aceitar, a sua vida.

CONSTANÇA – Por que, meu Deus? Não mereço eu o seu amor?

ESTÊVÃO – Calai-vos, senhor!... Ides despedaçar-lhe a alma. Puni-me, porém respeitai-a.

SAMUEL – Se uma mulher neste mundo pudesse ligar sua vida à existência de Estêvão, essa devíeis ser vós, Constança; vós que sois bela como sua alma, pura como o seu coração. Mas isto é impossível! Ele já quebrou os laços que o prendiam à sociedade; um abismo vos separa; um abismo profundo, que nenhum poder da terra pode suprimir.

ESTÊVÃO – Que quereis dizer, senhor? Explicai-vos!

CONSTANÇA – Sim!... Falai!... Por piedade! Meu espírito se perde!... Quero compreender... não posso! Quero duvidar...

SAMUEL – Não duvideis! Enquanto é tempo salvai-vos; salvai a ele que se perde, salvai-me a mim, que vivo dele e por ele.

CONSTANÇA – Salvar-me. Salvar-vos, e de quê?

SAMUEL – A vós, de um sacrilégio; a ele, de um perjúrio; e a mim de uma perda irreparável.

ESTÊVÃO – Senhor!... Senhor!... Vós me enlouqueceis!

CONSTANÇA – E me torturais nesta incerteza horrível! Não sabeis como eu o amo!

SAMUEL – Amastes a Estêvão, minha filha; mas não podeis amar um frade.

CONSTANÇA – Ah!...

ESTÊVÃO – Mentis, senhor!

SAMUEL – Meu filho!

ESTÊVÃO – Perdão, perdão!... Foi um desvario, uma alucinação! Vossos lábios são o altar da verdade e da ciência! Mas a razão me abandona! Eu frade!... Quando, meu Deus?... quando professei?... Fiz votos algum dia?... E dizeis que eu sou... Não!... não!... Vosso espírito se ilude... ou perdi a memória do passado... a recordação do que fui e do que sou.

SAMUEL – Ergue-te, Estêvão, e abraça-me. Sou eu que preciso do teu perdão; és tu que me deves absolver da grande falta que cometi; talvez de um crime!

ESTÊVÃO – De um crime!

SAMUEL – Ignoras que muitas vezes os homens chamam crime as grandes abnegações que eles não compreendem!

ESTÊVÃO – Vejo em tudo isto um mistério que me confunde.

SAMUEL – E que vou revelar-te. Mas esta menina não deve ouvir-nos; basta o fel que já lhe verti no coração. (Aproximando-se de Constança) Sofreis muito, minha filha?

CONSTANÇA – Oh! horrivelmente!

SAMUEL – Há um consolo supremo para as grandes dores.

CONSTANÇA – As lágrimas.

SAMUEL – O céu!

CONSTANÇA – O céu! É verdade!... Chegar-me para Deus é ainda aproximar-me dele.

SAMUEL – Senti-vos com força de ir até vossa casa?

CONSTANÇA – A igreja está aberta. Far-me-á bem rezar agora.

SAMUEL – Ide, minha filha, e perdoai o mal que vos acabo de fazer.

CONSTANÇA – Antes de partir... É a ultima vez... Ele ainda é meu irmão.

SAMUEL – Entendo. Desejais dizer-lhe adeus? Tendes razão.

CONSTANÇA – Consentis?

SAMUEL – Por que o negaria?... (remonta.)


CENA VIII[editar]

ESTÊVÃO e CONSTANÇA.

CONSTANÇA – Não me quer dizer, adeus; Estêvão?

ESTÊVÃO – Constança!... Depois, do que se acaba de passar?... Não me despreza então?... Não me olha como um ente vil e infame?

CONSTANÇA – Somos irmãos pela desgraça e pelo coração.

ESTÊVÃO – Que bem me fazem suas palavras! Sinto que não estou louco, porque ainda a amo! Sinto que vivo porque sua voz ainda faz estremecer as fibras do meu corpo. Adeus, adeus, Constança.

CONSTANÇA – Para sempre?

ESTÊVÃO – Não!... Qualquer que seja esse cruel destino que pesa sobre mim, qualquer que seja o mistério que me envolve; só tenho consciência de uma cousa: sou livre, dei-lhe minha existência: feliz ou desgraçada, ela pertence-lhe. Espere-me, pois, espere-me sempre!... Se eu não puder viver em seus braços, juro que virei morrer a seus pés!

CONSTANÇA – Morreremos juntos!... A morte é o único bem que não se pode roubar ao desgraçado!

ESTÊVÃO – Adeus!... Ame-me!

CONSTANÇA – Vou esperá-lo, Estêvão!


CENA IX[editar]

SAMUEL e ESTÊVÃO.

SAMUEL (só.) – Meu Deus. Se o que eu acabo de fazer, é uma desgraça, perdoai-me! Se é um crime, puni-me!

ESTÊVÃO – Estamos sós. Não me oculteis nada, senhor; tenho coragem para encarar com a minha sorte, qualquer que ela seja!

SAMUEL – Chegou o momento de revelar-te um fato que decidiu de tua vida, meu filho; ele era necessário; tenho consciência de que praticando-o cumpri o dever que a Providência me impôs quando te confiou à minha afeição. Procedi como pai e como amigo; tu me julgarás.

ESTÊVÃO – Eu vos escuto.

SAMUEL – Lembras-te do dia em que me prometeste abraçar a vida religiosa e entrar no convento dos jesuítas?

ESTÊVÃO – É verdade que vos fiz então essa promessa; porém não previ que me seria impossível cumpri-la. Amo, senhor! Este sentimento espontâneo, irresistível, que Deus criou em minha alma, essa lei fatal da natureza que faz pulsar o coração do homem, tem mais força do que uma simples promessa.

SAMUEL – Mas essa promessa, feita nas minhas mãos, é um juramento; é mais do que um juramento: é um voto!... Naquele momento tu professaste, Estêvão!

ESTÊVÃO – Eu!...

SAMUEL – É esta a falta de que me acuso e que me deves perdoar. Era preciso que vivesses exclusivamente para a religião, e eu sacrifiquei à ela tua vida. Nas palavras que pronunciei então, e que não compreendeste, aceitei os teus votos, e te sagrei em nome do Senhor. Tu és jesuíta!...

ESTÊVÃO – Jesuíta!... Escarneceis de Deus, senhor! Quem sois vós? E que poder tendes para assim decidir com uma simples palavra, do destino dos homens?

SAMUEL – Quem sou eu?... Não sei, Estêvão; talvez um fanático, um insensato, que corre atrás de uma sombra; talvez o autor de uma grande revolução e o arquiteto obscuro de uma obra gloriosa. O futuro responderá. Cristo, o enviado de Deus, foi crucificado; Galileu, o mártir da ciência, queimado por herege; Colombo, o inventor do novo mundo, escarnecido por charlatão. Como eles a posteridade dirá o que sou: se um apóstolo, se um louco.

ESTÊVÃO – Enfim, senhor, já ouvi o que desejava saber. Dispusestes da minha vida; era o vosso direito, porque até hoje me alimentastes com o vosso pão.

SAMUEL – Estêvão!... Não sabes quanto é duro o que me acabas de dizer!

ESTÊVÃO – Confesso a verdade; era o vosso direito. Chegou o tempo, porém, de reassumir a minha liberdade. Renego os votos que fiz sem consciência; hoje mesmo deixarei para sempre vossa casa.

SAMUEL – Não! É impossível! Tu és meu filho!... Sim! Que importa que a tua carne não seja a minha carne? Que o meu sangue não gire em tuas veias? Que eu não tenha criado o teu corpo? Tu és o filho do meu espírito!... A tua razão, fui eu que a bafejei, que a embalei no berço da ciência, que a iluminei com os raios de minha inteligência. Durante vinte anos verti no teu seio, parcela por parcela, centelha por centelha, toda a minha alma. E agora, que nada me resta, queres abandonar-me?

ESTÊVÃO – Sei que tenho para convosco uma dívida sagrada! Mas não me dissestes um dia que todo o homem pertence ao seu futuro? Meu futuro é o amor; ele nos separa.

SAMUEL – Não, Estêvão, Deus nos uniu; nem o mundo, nem as suas paixões, podem separar-nos. Meu filho, escuta-me. Quando uma noite, há vinte anos, a mão desconhecida de um mercenário te depôs na minha porta, e à luz da alâmpada que tinha alumiado a minha vigília vi-te estendendo-me os braços a sorrir, senti-me renascer! Recebi-te como um anjo do Senhor, que vinha proferir a palavra do profeta e bradar-me: — Avante!... Sim, nessa noite, pela primeira vez, a dúvida entrara em meu espírito e entorpecera-me a coragem. Obreiro infatigável de um monumento gigantesco que demanda séculos para a sua realização, eu tinha feito o que era possível ao homem. Mas que momento não é a vida da criatura na rotação do mundo? Que valem anos para as grandes revoluções que marcam uma época? Sentia-me velho, via o túmulo abrir-se diante de mim. Não temia a morte! Daria com prazer à terra um despojo inútil. Mas a alma?... A ideia?... A só lembrança de que ela ia de novo voltar ao nada, donde eu a havia arrancado, era uma tortura imensa, horrível! Foi nesse momento que te recebi em meus braços. Reanimei-me... Pareceu-me que Deus dava-me o teu corpo infantil para que eu inoculasse nele a minha alma, quando o meu de velho e cansado já não pudesse carregá-la. Cumpri a vontade de Deus. Não te eduquei, não; revivi, ressuscitei-me em ti. Eu sou o passado, tu és o futuro; mas ambos formamos uma só vida, um só pensamento.

ESTÊVÃO – Mas não o meu coração!... Oh!... por que mo não arrancastes?... Então este amor não se apoderaria dele, e não usurparia os vossos direitos de pai: eu poderia ser a imagem do que fostes, a sombra da vossa grande inteligência!... Agora!... É tarde!... Exigi de mim todos os sacrifícios... Meu amor, não; esse não posso dar-vos... É dela!...

SAMUEL (pausa.) – Pois bem! Já que assim é preciso... (Com esforço.) faça-se a tua vontade, meu filho: ama essa mulher!

ESTÊVÃO (pasmo.) – Como!... Vós mesmo... Quereis!...

SAMUEL – Quero tudo, contanto que não me abandones nunca.

ESTÊVÃO – Oh! reunir em uma só adoração as duas grandes afeições de minha vida, é a ventura suprema!... Parece-me um sonho!

SAMUEL – E o que é a existência?

ESTÊVÃO – Mas... Essa promessa feita em vossas mãos?

SAMUEL – Tranquiliza-te. O poder que cria não seria poder se não destruísse.

ESTÊVÃO – Assim?

SAMUEL – És livre!

ESTÊVÃO – Ah! Permitis que dê esta boa notícia a Constança?

SAMUEL – Podes ir vê-la. Não me oponho.

ESTÊVÃO – Obrigado!

SAMUEL – Depois vem ter comigo; quero hoje mesmo confiar-te o segredo de minha vida.

ESTÊVÃO – Sim, meu pai!


CENA X[editar]

SAMUEL (só.) – Rude combate!... Senti que minha coragem vacilava! Não; ainda que devesse profanar a pureza dessa menina!... Ainda que fosse necessário sacrificar a sua vida. Sim a sua vida! O que é a criatura neste mundo senão o instrumento de uma ideia?... Ele amará!... Mas compreenderá, enfim qual amor é digno do filho desta terra virgem! (Absorto.) Brasil!... Minha pátria!... Quantos anos ainda serão precisos para inscrever teu nome, hoje obscuro, no quadro das grandes nações?... Quanto tempo ainda serás uma colônia entregue à cobiça de aventureiros, e destinada a alimentar com as tuas riquezas o fausto e o luxo de tronos vacilantes? (Pausa; arrebatado pela inspiração.) Antigas e decrépitas monarquias da velha Europa!... Um dia compreendereis que Deus quando semeou com profusão nas entranhas desta terra o ouro e o diamante, foi porque reservou este solo para ser calcado por um povo livre e inteligente!...