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O Jesuíta (José de Alencar)/II

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Sala em casa do Dr. Samuel; paredes brancas a cal com florões de pintura a fresco; no fundo alpendre sobre o qual abrem duas janelas e uma porta; à direita e à esquerda portas. Mobília de jacarandá torneado: cadeiras, papeleiras e dois bufetes no proscênio.


CENA PRIMEIRA

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INÊS, DANIEL e MENDIGOS.

(A cena está cheia de mendigos. Inês com uma vassoura querendo varrer a casa.)

INÊS – Ora já viram uma cousa assim?... Mete-se esta súcia de esfarrapados em casa, que não há meio de livrar-se a gente de uma semelhante praga!... Vamos lá, desentulhem o beco, senão... A vassoura fez-se mesmo para varrer o cisco. (Empurra-os debalde.)

UM MENDIGO – O doutor?

TODOS OS MENDIGOS – O doutor?

INÊS (arremedando-os.) – Doutor! doutor!... Ele mesmo é que tem a culpa de aturá-los. (A Daniel que entra) Não me livrarás desta corja de malandros, tu que és outro que tal?

DANIEL – Vai lá dentro, que voltando não os acharás.

INÊS – Ora que partes. (Sai.)

DANIEL (aos mendigos.) – Irmãos, cheguem-se todos e ouçam, que estes segredos não se dizem em voz alta. O governador trama contra o doutor Samuel; esta manhã seu ajudante aqui veio talvez para prendê-lo: a escolta ficou oculta na cerca do convento. Trouxe cada um seu punhal?

MENDIGOS (à uma.) – Ei-lo!

DANIEL – Enquanto a mão puder brandir este punhal, o inimigo não se aproximará do doutor Samuel.

MENDIGOS – Não!

DANIEL – Nosso corpo será a muralha de sua casa.

MENDIGOS – Sim!

DANIEL – Vão; deitem-se pelo terreiro. Foi para isto que os chamei aqui. (Saem os mendigos.)


CENA II

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DANIEL e INÊS.

(Daniel encosta-se à porta da varanda. Inês entra com a vassoura.)

INÊS – Já sumiram-se? Ora graças!

DANIEL – Onde está o doutor?

INÊS – No gabinete. (Cantando e varrendo.)

Varre, varre, rapariga,
Que o dia já vem raiando;
Olha que teu amo briga,
Se te pilha vadiando.

Tem andado esta casa hoje numa desordem!... Ainda não tive tempo para nada, e é já meio sol... Ai! Ai!...

Traz a casa asseadinha,
Tudo limpo em seu lugar;
Fogo aceso na cozinha
Mesa posta p'ra almoçar.

Aquele rapaz José Basílio tem ideias! Havia de inventar esta cantiga. Mas é que o Sr. Estêvão diz que ele dá para a trova... Há de ser galante, um padre trovista!

Varre, varre, rapariga,
Que o dia já vem raiando...

DANIEL – O doutor ainda estará no gabinete?

INÊS – Se ele fechou-se com o capitão espanhol! Mas que tens tu? Estás com cara de judeu!

DANIEL – Ninguém sabe o que nos trará o dia de hoje, Inês.

INÊS – Arreda com os maus agouros! (Vendo Garcia no alpendre) Quem será?


===CENA III===

INÊS, DANIEL e GARCIA.

GARCIA (para fora.) – Olá amigo! Dê água ao tordilho, e ponha-o à soga!... Onde o vê está com dez léguas no costado. Caramba!

INÊS – Jesus!... Que figura!

GARCIA – O Senhor esteja nesta casa. Adeus muchacha! Deus o salve, amigo!

INÊS – Sua serva. (À Daniel.) Que quererá ele?

DANIEL – Pergunta-lhe.

GARCIA – É aqui a pousada do doutor Samuel?

INÊS – Pousada! É aqui que ele mora, mas agora não está em casa.

GARCIA (deitando os arreios a um canto.) – Esperarei por ele!

INÊS – Não volta tão cedo.

GARCIA – Não faz mal.

INÊS (à Daniel.) – É caboclo e basta. Birrento como esta casta de gente. (À Garcia.) Mas o amo não vem hoje.

GARCIA – Virá amanhã.

INÊS – Nem amanhã, nem depois, nem toda esta semana!

GARCIA – É o mesmo; esperarei até que venha.

INÊS – E se não vier nunca?

GARCIA – Caramba! Espero sempre!

INÊS – Pois espere! (Garcia tira a faca para preparar a palha de um cigarro.) Ai! Virgem Santíssima!

GARCIA – Que dengues são esses, muchacha?

INÊS (com medo.) – Meu Deus!... Que vai ele fazer?

GARCIA – Nunca viu um homem preparar o cigarro? (Passa a palha à boca, tira o fumo do bolso e o desfaz na palma da mão.)

INÊS – Ah!... Já sei!... É essa erva fedorenta que se fuma!

GARCIA – Erva fedorenta!... O tabaco?... Não sabe o que diz, muchacha. Uma fumaça de cigarro, uma cuia de mate, um beijo de moça, e o meu tordilho por junto, é tudo que há de melhor neste mundo.

INÊS (à Daniel.) – Que gentio asselvajado, senhor Deus!... Tu sabes donde vem, Daniel?

DANIEL – Deixa-me!

INÊS – Iche! Que cousa aborrecida!

GARCIA – Bom; o tordilho tem pasto para muitos dias. Tratemos cá do patrício. (Arranja no fundo à direita uma cama com a xerga e o cochonilho.) Não vai a matar.

INÊS – Que faz aí?

GARCIA – O que vê; estou me preparando para esperar o homem. Caramba! Uma semana não se passa como um dia.

INÊS – Viu-se já cousa semelhante?... Parece que está nas suas quintas... Mas olhe... o amo não tarda a chegar.

GARCIA – Melhor!...

INÊS – Portanto não precisa espalhar pela casa toda essa trapalhada!

GARCIA (deitando-se.) – Preciso descansar, muchacha; há três noites que durmo a cavalo. (Fazendo um gesto.) Até logo.

INÊS – Está direito!... Dá-se uma sem cerimônia como esta? O amo que se entenda com este herege. (Batem na grade.) Há de ser o padre Reitor.

CENA IV

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INÊS, DANIEL, GARCIA, FREI PEDRO e JOSÉ BASÍLIO.

(Quando Inês abre a porta entram Fr. Pedro, e José Basílio com uma pequena bolsa de dinheiro.)

FR. PEDRO (descendo.) – Chegaremos, a tempo?

JOSÉ BASÍLIO (idem.) – Ainda não é meio-dia.

FR. PEDRO – Estais bem certo que o doutor Samuel fixou esta hora?

JOSÉ BASÍLIO – Repetiu duas vezes.

FR. PEDRO – Deitai esta bolsa sobre aquele bufete; e avisai-o de minha chegada.

INÊS (beijando a manga do hábito.) – Com licença de vossa reverendíssima. O Sr. doutor me recomendou que quando chegasse o reverendo padre Reitor, lhe pedisse para ter a bondade de esperar.

FR. PEDRO – Bem, filha: (Passeia no alpendre.)

JOSÉ BASÍLIO (baixo a Inês.) – Donde saiu aquele bugre?

INÊS (idem.) – Sei lá! Apareceu aqui de repente, e foi logo tomando conta da casa.

JOSÉ BASÍLIO (idem.) – E o doutor já o viu?

INÊS (idem.) – Não. (Sai.)


CENA V

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FR. PEDRO, JOSÉ BASÍLIO, GARCIA, DANIEL e ESTÊVÃO.

JOSÉ BASÍLIO – Ainda estás decidido a partir?

ESTÊVÃO – Não, é impossível agora.

JOSÉ BASÍLIO – Por quê?

ESTÊVÃO – Depois que te deixei houve uma revolução na minha vida.

JOSÉ BASÍLIO – O que se passou então?

ESTÊVÃO – É um segredo que não me pertence, José Basílio.

JOSÉ BASÍLIO – Então, guarda-o meu amigo.

FR. PEDRO (no alpendre.) – José Basílio!

JOSÉ BASÍLIO – Padre Reitor.

FR. PEDRO – Tornai ao convento, e preveni que não se inquietem com a minha ausência.

JOSÉ BASÍLIO (à Estêvão.) – Está dito! Hoje não faço outra cousa senão ir e vir. Ah! Quando Deus me dará uma vida tranquila e a liberdade para escrever o que tenho aqui!... (levando a mão à fronte.)

ESTÊVÃO – Tu também sonhas com a liberdade?

JOSÉ BASÍLIO – E quem pode viver sem ela? Adeus.

CENA VI

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SAMUEL, FR. PEDRO, DANIEL e GARCIA dormindo.

SAMUEL – Já viste Constança, meu filho?

ESTÊVÃO – Agora mesmo a deixei; ela vos ama como eu.

SAMUEL – Bem!

ESTÊVÃO – Não dissestes que desejáveis falar-me?

SAMUEL – Sim; quero confiar-te a missão que Deus te destinou; porém antes, deixa-me ouvir estes homens que me esperam. Sabes o que eles representam, Estêvão?

ESTÊVÃO – Como posso eu sabê-lo, senhor?

SAMUEL – É verdade, ainda ignoras! Estes homens são os três instrumentos poderosos que Deus colocou em minha mão para a realização de um grande pensamento. Ei-los... Um velho frade, um pobre cigano, um índio adormecido. Quem diria, vendo estas três criaturas aqui, reunidas neste momento pelo acaso, que elas são as pedras angulares de um majestoso edifício, novo capitólio do alto do qual uma nação poderosa dará leis ao mundo!... Ei-los!... A religião, a miséria, a raça!... E tu, Estêvão, tu serás a inteligência que há de dirigi-las, o espírito que as deve animar, a vontade que as governará até que chegue o momento!...

ESTÊVÃO – Entendo as vossas palavras, senhor; mas o seu alcance escapa à minha inteligência.

SAMUEL – Aquele hábito, meu filho, quer dizer vinte mil jesuítas espalhados pela terra e dominando a consciência do universo; aquele cigano significa um povo numeroso, proscrito, sem pátria, disposto a morrer por aquele que lhe prometer um abrigo neste mundo onde é estrangeiro; aquele índio simboliza a raça indômita e selvagem da América, pronta a reconquistar a liberdade perdida. Compreendes agora?

ESTÊVÃO – Oh!... Compreendo! Mas como esse poder imenso acha-se em vossas mãos, senhor?

SAMUEL – Volta em meia hora; eu to direi.

CENA VII

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SAMUEL, FR. PEDRO, DANIEL, GARCIA e INÊS.

(Inês entra, acorda Garcia, e fecha as janelas, Daniel chega-se apressadamente a Samuel.)

DANIEL – Vossa vida corre perigo neste momento!

SAMUEL – Por quê?

DANIEL – Vi soldados escondidos na cerca do convento da Ajuda.

SAMUEL – Que tem isso?

DANIEL – O governador esta manhã rondou as vizinhanças de vossa casa.

SAMUEL – Ah! Já tardava!... Espreita o que se passa fora, e previne-me a tempo.

DANIEL – Podeis ficar tranquilo. Alguns de meus irmãos velam em torno, disfarçados em mendigos; e enquanto o último de nós conservar um pulso para brandir o punhal, ninguém se aproximará de vossa pessoa.

SAMUEL – Bem; confio em tua dedicação. (Dirigindo-se à varanda.) Vinde padre Reitor. (À Garcia.) E vós amigo, ide continuar o sono interrompido.

GARCIA (à puridade.) – Venho das Missões.

SAMUEL (idem.) – Sei. Há quanto tempo deixastes o Paraguai?

GARCIA – Há um mês; andei dia e noite.

SAMUEL – Ide; careceis de repouso; depois falaremos. (Fecha a porta.)


CENA VIII

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SAMUEL e FR. PEDRO.

SAMUEL – Recebi vossa carta, padre Reitor, e agradeço-vos a prova de confiança que me dais consultando-me em objeto tão grave.

FR. PEDRO – Não tendes que agradecer-me, doutor Samuel. Nisto cumpro uma ordem do Geral da companhia de Jesus ao Reitor da casa do Rio de Janeiro que manda-me ouvir-vos nas coisas importantes da comunidade.

SAMUEL – Já me falastes desta ordem; mas, em todo o caso, é sempre uma deferência de vossa parte.

FR. PEDRO – Não; é um dever; e cumpro-o com satisfação pela amizade que vos consagro.

SAMUEL – Tratemos do que importa. Esse aventureiro tem realmente um segredo, mas faz dele uma mercancia. Pareceu-me conveniente comprá-lo; e por isso vos mandei aviso.

FR. PEDRO – E virá ele?... Disse-me José Basílio que esta manhã, antes de chegardes, ameaçou de ir ao Governador.

SAMUEL – Soube disto; mas não era preciso. O homem que traz um segredo de importância, é uma carta que deve ser entregue em mão própria; e que, depois de lida, inutiliza-se, quando convém. (Levanta-se.) O aventureiro está neste gabinete à vossa disposição; podeis interrogá-lo quando quiserdes.

FR. PEDRO – Conseguistes retê-lo aqui tranquilo durante todo este tempo?... Exerceis uma influência irresistível sobre quantos vos cercam, doutor Samuel!

SAMUEL – Não há homem que não tenha o seu calcanhar de Aquiles. O espanhol gosta do vinho; e sabeis, frei Pedro, quanto é fácil que esse companheiro de prazer nos faça seu escravo.

FR. PEDRO – Ah! usastes deste meio?

SAMUEL – É tão vulgar!... (na porta.) Capitão!...


CENA XI

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SAMUEL, FR. PEDRO e D. JUAN.

D. JUAN – Ora, finalmente!... Vamos acabar com isto?

SAMUEL – Frei Pedro da Luz, reitor do colégio da Companhia, está pronto a ouvir-vos.

D. JUAN – Maldito vinho!... Ainda sinto a cabeça andar-me às voltas! (Samuel senta-se à mesa.)

FR. PEDRO – Sr. Capitão, impusestes como condição da revelação do segredo de que sois sabedor, a soma de mil cruzados; aqui estão sobre esta mesa, eles vos pertencem, se, como dizeis, o que tendes a comunicar-me for em verdade importante.

D. JUAN – Julgareis por vós mesmo. Vou contar-vos o que se passou até o momento em que vi aquilo que eu tenho por um segredo de grande alcance para vossa Ordem. Se entenderdes que vale a pena, muito bem, digo-vos a última palavra, já se sabe, com a mão sobre a bolsa; se não, meia volta à direita: cada um seu rumo.

FR. PEDRO – Aceito; podeis começar. (Sentam-se. Samuel finge escrever.)

D. JUAN – Sabeis que o galeão em que vim saiu de Lisboa repentinamente e com um prego do próprio punho do ministro?

FR. PEDRO – Não; ignorava esta circunstância. (Samuel escreve.)

D. JUAN – Pois ela deu-se. Ao mesmo tempo saíram dois outros navios que nos deixaram no terceiro dia. Foi então que soubemos que o nosso destino era o Rio de Janeiro. A bordo do São Martinho só havia dois passageiros; este seu criado, que embarcou sem saber onde o levavam; e um rapazito, oficial mecânico na aparência.

SAMUEL – Por que dizeis na aparência?

D. JUAN – Porque realmente era um noviço da companhia de Jesus disfarçado em aprendiz.

FR. PEDRO (vivamente.) – E o descobriram?

D. JUAN (sorrindo.) – No fim da viagem apenas. O Sargento-mor teve denúncia de um marujo que o viu às ocultas agarrado com a sagrada escritura.

SAMUEL (à meia voz.) – Imprudente! (D. Juan volta-se.)

FR. PEDRO – Como! Só por isso?

D. JUAN – Achais que é pouco?... Um aprendiz de vinte anos letrado?...

FR. PEDRO – E o que sucedeu depois daquela denúncia? Deveis sabê-lo.

D. JUAN – Sucedeu que o Sargento-mor em pessoa saiu às onze horas da noite de sua câmara e veio bater à porta do beliche do rapaz, que era vizinho ao meu. Curioso de saber o que ia passar, abri com o punhal uma fresta no tabique, e olhei.

FR. PEDRO – Então?

D. JUAN – O rapaz mal ouviu a voz do Sargento-mor, que batia à porta, ergueu-se de um salto! Tirou do seio um relicário, rasgou-o com os dentes, e sacou uma tira de pergaminho, que aproximou da candeia. À luz que o reduzia a cinzas, vi escrito em letras de fogo...

FR. PEDRO – Acabai!

D. JUAN – Vi... vi... Nada; com jesuíta não há que fiar.

FR. PEDRO – O que vistes? Dizei!

D. JUAN – Cuidei que o padre Reitor tinha entendido. Chegamos ao ponto capital. O que eu vi naquele momento é o segredo. Quereis ou não dar o preço convencionado?

FR. PEDRO – Tomai!... tomai!... E conclui de uma vez!

D. JUAN – Isto agora é outro cantar. Atendei. Vi no pergaminho, como vos estou vendo, o seguinte: na primeira linha três letras iniciais um —M—, um — T —, um — P —. Depois esta data: — Quatorze de novembro — e assinado: — G. M.

SAMUEL – Gabriel Malagrida!

D. JUAN – Justo!

FR. PEDRO – Quatorze de novembro!... Que pode ser isto?... E não vistes nada mais?

D. JUAN – Nada... Ah!...Vi ainda o Sargento-mor deitar a porta dentro e apoderar-se do rapaz.

FR. PEDRO – Que é feito dele? Está aqui no Rio de Janeiro?

D. JUAN – Não sei. O mar e a noite guardam um segredo que não me pertence.

FR. PEDRO – É incompreensível!

D. JUAN – A falar a verdade não está muito claro, mas que o negócio é importante não resta dúvida! Basta ver que traças não empregaram os padres em Lisboa para arranjarem a ordem de passagem do noviço, rubricada pelo próprio ministro. Ou me engano, ou é alguma notícia de empenho que eles vos mandavam.

FR. PEDRO – De que serve essa notícia, se não posso entendê-la? se não sei o que ela significa?

D. JUAN – Isso lá não me pertence. Disse o que vi, adivinhai o resto.

FR. PEDRO – Como, meu Deus, como decifrar semelhante enigma? Mas. Quem sabe?... Talvez esquecêsseis alguma cousa!... Talvez houvesse no papel alguma palavra!...

D. JUAN – Não tenho a honra de pertencer à companhia de Jesus, porém, possuo excelente vista e não sou dos mais pecos. (Tirando a espada com a bainha.) Quanto vi aqui está na bainha da minha espada, onde o risquei com a ponta do punhal naquele mesmo instante. (Samuel ergue-se e olha por cima do ombro do espanhol, enquanto Fr. Pedro examina a bainha da espada.)

FR. PEDRO – Não há dúvida: M. T. P.

D. JUAN – Tive o cuidado... Podia esquecer-me; e eu adivinhei logo que isto bem apurado, deixaria alguma coisa. (Batendo na cinta.) Cá está, e por sinal que ainda não as contei. (Tira a bolsa e conta as moedas.)

FR. PEDRO – Podeis verificar; achareis a soma convencionada.

D. JUAN – Está exato. E agora creio que já não sou preciso aqui?

FR. PEDRO – Quereis retirar-vos?

D. JUAN – Se me dais licença.

FR. PEDRO – Onde poderei mandar pelo senhor capitão?

D. JUAN – Em toda a parte; o que quer dizer que em parte alguma.

FR. PEDRO – Se carecer falar-vos?

D. JUAN – Com a mesma condição? (Batendo na bolsa.)

FR. PEDRO – Certamente.

D. JUAN – Ah! neste caso me encontrareis sempre às vossas ordens no jogo da bola de Bento Esteves, à rua do Alecrim. É lá que me aboletei.

FR. PEDRO – Bem.

D. JUAN (cortejando.) – Seu venerador, padre mestre! Senhor doutor... (Dirigese à porta que depois de sua saída é fechada por Fr. Pedro.)

SAMUEL (refletindo.) – Sim!... Gabriel Malagrida depositou naquele pergaminho o seu pensamento. Ah! se eu tivesse diante de meus olhos, em vez deste papel, as letras misteriosas que ele traçou, talvez uma centelha de seu espírito me iluminasse!


CENA X

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SAMUEL e FR. PEDRO.

FR. PEDRO – Ouvistes? (Samuel faz um sinal afirmativo.) Compreendeis o que significa isto?

SAMUEL – Não!... Interrogo este papel, e nada me responde. Será possível, meu Deus?!... Será possível que a vontade do homem, a quem deste a força de governar o mundo, não possa arrancar destes caracteres mudos a verdade que eles ocultam? Será possível que o pensamento, esse raio de tua luz divina, que esclarece o universo, não possa descobrir a ideia envolta nestas três letras? (Reflete.)

FR. PEDRO – Oh!... é escusado! Isto excede os limites da sabedoria humana.

SAMUEL – Não, frei Pedro! Deus fez a inteligência onipotente como ele, porque a inteligência não é senão o reflexo da sua razão suprema!.... E este reflexo eu o sinto aqui! Oh! eu o quero... Eu o saberei!

FR. PEDRO – Não vos fatigueis, meu amigo; depois, quando estivermos mais calmos, refletiremos.

SAMUEL – Acaso me enganaria? A luz que me abria os vastos horizontes do pensamento extinguiu-se de repente, deixando meu espirito em trevas!... Perdestes as asas com que devassavas o mundo, minha inteligência?... (Com desânimo.) Deus puniu-te em teu orgulho!

FR. PEDRO – Repito-vos, Samuel, é inútil.

SAMUEL – Mas... o meu cérebro ainda trabalha!... Sim... Eu ainda penso!... O caos fermenta... lembro-me... (com os olhos no papel.) Uma ideia... a Bíblia... Daniel... Babilônia!... (Levanta-se com expressão de júbilo.) Ah!

FR. PEDRO – O que tendes?... O que é?...

SAMUEL – Quatorze de novembro! Eu leio agora neste papel como se a mão do anjo do Senhor gravasse aí em letras de fogo a palavra do profeta; como se a voz possante do Apocalipse me bradasse ao ouvido a sentença do juízo final!... Quatorze de novembro! Compreendeis, frei Pedro?

FR. PEDRO – Não! Não posso compreender-vos, meu amigo!

SAMUEL – Pois não vedes ali o dia da ruína, o dies irœ da destruição, o dia da proscrição dos jesuítas no reino do Brasil? Nestas três letras, não ledes o Mané, Tecel, Pharés, que a mão de Deus gravou sobre os muros de Babilônia, e que a vingança de um homem vai escrever nas paredes de vosso convento?

FR. PEDRO – Que dizeis, Samuel!... Os jesuítas expulsos do Brasil?... Não o creio! É um delírio da vossa imaginação.

SAMUEL – É a verdade! Oh! um momento o meu espírito debateu-se nas trevas; duvidei de mim! Mas Deus iluminou-me, rompeu-se o véu, e tudo me aparece agora claro. Fecho os olhos e vejo... (como enxergando uma visão.) Ei-lo! O busto severo do ministro onipotente que medita a sua obra de destruição. Uma auréola de triunfo resplandece em sua larga fronte. Ele sorri e estende a mão! A mão poderosa que ergueu a nova Lisboa das ruínas do terremoto, que lutou contra a Inglaterra e curvou Portugal a seus pés!... Traça algumas linhas: é a sentença da proscrição; é a condenação dos jesuítas. O rei assinou, só falta executá-la!...

FR. PEDRO – Meu Deus!

SAMUEL – Cuidais que o marquês de Pombal vai entregar essa missão a agentes subalternos, como se fosse uma lei vulgar? Não! No orgulho de seu poder esse homem tem a pretensão de imprimir a seus atos a força irresistível, rápida e fatal que Deus deu aos elementos: quer ferir como o raio, como a peste; quer que no mesmo instante, a mil léguas de distância, a sua vontade se realize como um decreto da Providência.

FR. PEDRO (abatido.) – Julgais então que no mesmo dia...

SAMUEL – No mesmo dia e à mesma hora! A quatorze de novembro os jesuítas serão presos em todo o Brasil.

FR. PEDRO – Mas, doutor Samuel, explicai-me como tivestes semelhante ideia?

SAMUEL – Não posso agora descrever a elaboração do meu espírito para chegar à certeza moral. Não se descreve o caos, não se descrevem as lutas da natureza em convulsões: assim também não se descreve a gestação do pensamento quando suscita do nada o átomo que depois se torna uma ideia. Porém, se quereis saber o que leio nestas palavras truncadas, vou explicar-vos.

FR. PEDRO – Sim, esclarecei-me, por que o meu espírito se perde.

SAMUEL – Gabriel Malagrida soube o segredo da extinção dos jesuítas, e quis prevenir-vos para que salvásseis da confiscação o vosso tesouro.

FR. PEDRO – Que tesouro?

SAMUEL – O que possui a Ordem na sua casa do Castelo.

FR. PEDRO – Mas eu ignoro onde se acha.

SAMUEL – É um segredo que alguém deve saber. Não conheceis o governo do Instituto?

FR. PEDRO – É verdade.

SAMUEL – Antes de promulgar a lei, o ministro manda ao Brasil ordem para que a execução tenha lugar no mesmo dia. Então Gabriel obtém uma passagem e faz partir o noviço que trazia um relicário com as letras que só vós podíeis compreender. Para esclarecer o vosso espírito, mostrou a esse menino o versete de Daniel que ele devia indicar-vos quando chegasse. Finalmente, por excesso de prudência, recomendou-lhe que, no caso de perigo, rompesse o relicário, decorasse as palavras do pergaminho, e destruísse as provas materiais que o podiam comprometer. Eis a razão por que esse menino lia a Bíblia; eis a razão por que ele desapareceu; eis a razão por que partem de Lisboa ao mesmo tempo três navios cujos destinos se ignora. Duvidais ainda?

FR. PEDRO – Não! Não duvido! Admiro-vos, doutor Samuel! Porém, que devo fazer? Aconselhai-nos; mais do que nunca precisamos de vossa experiência.

SAMUEL – Tranquilizai-vos; estamos a 29 de Outubro, temos ainda quinze dias. Daqui até lá muitos acontecimentos podem sobrevir, que mudem a face das coisas. Voltai ao convento. Sobretudo, nem uma palavra, nem um gesto que revele o segredo.

FR. PEDRO – Não era preciso recomendar-me. Entrego em vossas mãos nossa causa; só vós nos podeis salvar. Quando nos veremos?

SAMUEL – Breve. (Sai frei Pedro.)


CENA XI

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SAMUEL e DANIEL.

SAMUEL (só.) – Tu ousaste, Sebastião de Carvalho?... E tiveste razão! Trocadas as posições, eu ministro de Portugal, faria o mesmo, e abateria de um golpe o poder colossal que te ameaçava! Mas ainda não venceste, não! Podes rasgar o hábito e matar o frade, mas o homem do futuro viverá! Oh! ainda não venceste, não! (Daniel aparece no fundo.) Que há?

DANIEL – Por ora, nada; mas é bom acautelar-vos.

SAMUEL – Não te inquietes. Que tens feito? Como vai o teu plano?

DANIEL – Bem; neste momento existem no país, pelo menos, vinte mil dos nossos irmãos; outros tantos já deixaram a Boêmia e se encaminham à Espanha, donde contam passar ao Brasil.

SAMUEL – E nesta cidade, quantos?

DANIEL – Cinco mil espalhados pelos arredores, mas prontos ao menor sinal.

SAMUEL – Assim, se eu quisesse...

DANIEL – Podíeis contar com vinte mil homens dispostos a conquistar uma pátria. Basta um ano para reuni-los no lugar que determinardes. Dizei uma palavra!

SAMUEL – Não; ainda não é tempo; ainda não chegou o momento em que esta terra deve abrir o seio de mãe, onde vossos irmãos vagabundos descansarão da longa peregrinação que têm feito pelo mundo. Eu vos prometi uma pátria. Juro que a tereis, uma bela e nobre pátria. Filhos da Ásia, achareis nela o sol do Oriente com todo o seu esplendor, a natureza em sua pompa, a vida cheia de força, de poesia e de liberdade! Mas esperai!

DANIEL – Esperaremos. Quem tem esperado séculos, não conta alguns anos que faltam ainda...

SAMUEL – Sois atualmente vinte mil. É pouco para este imenso território em que a Providência vos concede um asilo; continuai a imigração, reuni aqui todas as tribos que vivem esparsas pela Europa, chamai todos os vossos irmãos; e quando fordes cem mil, duzentos mil, então...

DANIEL – Não tardará muito esse dia. Em menos de cinco anos não haverá em toda a Europa um só filho da Boêmia. Nossa raça proscrita, dispersa, se refugiará neste canto do mundo, que será para ela a terra da redenção. Só pedimos um solo onde plantar nossa tenda. (Entra apressadamente um mendigo que fala ao ouvido de Daniel.)

SAMUEL – Contai comigo.

DANIEL – O governador dirige-se para aqui. Este irmão o viu.

SAMUEL – Deixai-o vir. Ainda não chegou o momento de nos encontrarmos face à face; ele, o poder da velha Europa; eu, a alma da jovem América. (saem.)


CENA XII

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INÊS e CONSTANÇA.

INÊS (para fora.) – Entrai, entrai; não há ninguém.

CONSTANÇA – Faço mal! O doutor pode ver-me!

INÊS – Ele está recolhido; não sai agora.

CONSTANÇA – Quem é este homem que me viu entrar?

INÊS – É um pobre cigano, Daniel. Não vos conhece.

CONSTANÇA – E aqueles soldados que passavam não me terão visto?

INÊS – Ainda estavam tão longe!


CENA XIII

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ESTÊVÃO e CONSTANÇA.

ESTÊVÃO – Constança, aqui?

CONSTANÇA – Sim, meu amigo; corri sem saber o que fazia!... Queria dar-lhe uma alegre nova e saí na esperança de vê-lo; Inês obrigou-me a entrar. Fiz mal?

ESTÊVÃO – Não; aqui junto de mim pode estar tranquila; será respeitada. Que nova é essa que vinha anunciar-me? (Inês sai.)

CONSTANÇA – Não vê como sou feliz?!

ESTÊVÃO – Por quê? A não ser a felicidade de poder amá-la, e que para mim é imensa, qual outra nos pode vir?

CONSTANÇA – A de não nos separarmos mais nunca, Estêvão! Ele consente.

ESTÊVÃO (surpreso.) – Ele quem? Seu protetor!

CONSTANÇA – Sim! Eu bem lhe disse que ele era bom, que me queria. Depois que me deixou, Estêvão, fiquei tão contente por saber que fora apenas um mau sonho quanto se tinha passado!... Fiquei tão contente que chegando ele, cobrei ânimo e contei-lhe tudo...

ESTÊVÃO – Tudo? Disse-lhe que nos amávamos? Fez mal, Constança.

(Daniel entra precipitado, para no meio da cena e passa à direita sem que o percebam.)

CONSTANÇA (com arrufo.) – Fiz muito bem!... (Sorrindo.) Ele me escutou; depois sorriu. — “Tu o amas muito?”, perguntou-me. — “Como ao senhor”, respondi-lhe. Então sentou-me em seus joelhos e disse-me: — “Estou certo que o teu coração não escolheria um homem que o não merecesse. Se esse homem for digno de ti, como suponho, confiarei dele a tua ventura.”

ESTÊVÃO – Ah!... E chama a isso felicidade, minha Constança. Como seu amor se ilude! Julga-me digno de si, mas seu protetor, que vê com os olhos da razão, lhe falará outra linguagem, quando souber quem sou. (Daniel volta e sai.) CONSTANÇA – Por que não me deixa acabar? Disse-lhe que Estêvão é pobre; e sabe o que ele respondeu-me?

ESTÊVÃO – Adivinho.

CONSTANÇA – Não é o que pensa, não! Respondeu que a riqueza não vale uma alma nobre; que esta só Deus a dá e pode tirar; enquanto que a outra o homem a adquire com o seu trabalho e pode perdê-la a todo instante.

ESTÊVÃO – Respondeu-lhe isto, Constança?

CONSTANÇA – Respondeu-me, sim. Ele quer vê-lo e conhecê-lo.

ESTÊVÃO – A mim? Para quê?...

CONSTANÇA – Oh! não recuse!... Eu lho peço. Ele prometeu-me que o protegeria, e lhe faria seguir uma bela carreira.

(O Conde de Bobadela aparece no fundo.)

ESTÊVÃO – Qual é essa carreira? Não o disse?

CONSTANÇA – Espere! Não me interrompa. Prometeu-me também... são suas palavras: “Quando esse mancebo for um cavalheiro brioso e valente, eu mesmo lhe darei tua mão”... Olhe que não sou eu quem fala. “lhe darei tua mão como primeira recompensa de seu valor.”

ESTÊVÃO – Constança!... Não faça-me crer na ventura, para sofrer depois um cruel desengano. Sua memória a ilude!

(O alpendre enche-se de soldados com Miguel Correia, que entra à direita sem fazer rumor.)

CONSTANÇA – Ainda ouço suas palavras, ainda escuto a sua voz grave e doce.

(O Conde de Bobadela adianta-se.)

ESTÊVÃO – Quem sabe?... É talvez uma promessa vaga, feita unicamente para não contrariá-la.


CENA XIV

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CONDE DE BOBADELA, ESTÊVÃO e CONSTANÇA.

CONDE – A promessa que fiz a esta menina, eu a renovo e confirmo.

CONSTANÇA – Ouve?! É ele, Estêvão.

ESTÊVÃO – Ele!... O Sr. governador!...

CONDE – Acaso este título me roubará o de vosso amigo, que desejo?

ESTÊVÃO – Perdão, senhor; mas... a admiração... o respeito...

CONDE – Interesso-me por seu futuro, Estêvão. A razão já deve saber. (Aponta para Constança.) Os olhos que falam à sua alma têm grande poder sobre o meu coração. Ama esta menina?

ESTÊVÃO – Como amaria minha mãe se a conhecesse. Mas receio não ser digno dela!

CONSTANÇA (baixo ao Conde.) – Não lho disse? Ele é nobre e modesto.

CONDE (a Estêvão.) – Este sentimento o honra, mas não deve desanimar; é preciso que mereça aquela que ama.

ESTÊVÃO – É o meu mais ardente desejo, senhor!

CONDE – É moço; leio em sua fisionomia inteligência e coragem. Se lhe falta um passado, tem diante de si um longo futuro. Faça-o tão belo que ele possa reparar os erros de seus pais e encher de orgulho a mulher que Deus lhe der por companheira.

ESTÊVÃO – O que é preciso fazer para isto? Estou pronto! Apontai-me o caminho!

CONDE – O caminho!... Não o vê diante de seus olhos? Nos sonhos da sua imaginação juvenil não brilha uma estrela que o atrai e o fascina?

ESTÊVÃO (eletrizado.) – Sim!... sim!... A glória!...

CONSTANÇA (a meia voz.) – Eu pensava que era o amor!

(O Conde que tem remontado para observar o interior, volta.)

CONDE (a Estêvão.) – É mais que a glória, Estêvão; é o dever. O homem pertence à sua pátria e ao rei: uma é sua mãe o outro seu senhor na terra. Quem tem estes dois bens supremos não deve lamentar uma vil e mesquinha abastança. Siga os exemplos que lhe dão tantos cavalheiros portugueses. Conquiste por seu valor e heroísmo aquilo que a fortuna lhe negou. Crie um passado nobre e ilustre; encha sua existência de feitos brilhantes. Falta-lhe um nome!... Pois bem; já que seus pais se esqueceram de escrevê-lo sobre um assento de batismo grave-o com a ponta de sua espada nos muros duma praça tomada de assalto, ou num campo de batalha.

ESTÊVÃO – Oh!... Juro que o farei, senhor! Mas a espada!... (Com desânimo.) Não a tenho?

CONDE – Tome esta; é uma espada leal, que nunca saiu da bainha senão para a defesa duma causa justa. Quero depositá-la em suas mãos; restituir-me-á quando seu valor conquistar uma mais ilustre.

ESTÊVÃO (com efusão.) – Ah! (Beija a espada.) Não sei o que se passa em mim!... Tocando a guarda desta valente espada o meu braço se anima com um vigor invencível.

CONSTANÇA (docemente e à puridade.) – Não vá agora amá-la mais do que a mim, à sua espada!

ESTÊVÃO – Não tenha ciúmes, Constança! Eu não a quero senão para um dia oferecer-lha como o tributo do meu amor.

CONDE – Muito bem, mancebo. Procure-me amanhã em palácio; dir-lhe-ei então para que o destino.

ESTÊVÃO – E eu desde já afianço que saberei corresponder à confiança de V. Ex. suas palavras fizeram de mim um homem; seu exemplo fará o resto.

(O governador remonta)

CONSTANÇA – Veja que eu tinha mais confiança em nosso amor?

ESTÊVÃO – Porque é um anjo, minha Constança; um anjo a quem Deus deu o poder de inspirar nobres pensamentos.

(Entra Miguel Correia)

CONDE – Então?

CORREIA – Nada, Sr. General.

CONDE – Procurastes tudo?

CORREIA – Corri toda a casa e só encontrei a caseira, um índio que evadiu-se, e estes mendigos.

CONDE – Interrogai-os; eles devem saber.

(A cena enche-se de soldados.)

CONSTANÇA (voltando-se assustada.) – O que se passa aqui?... Que querem estes homens?

ESTÊVÃO (surpreso.) – É verdade! Cometeu-se porventura algum crime aqui?

CONDE – Não, Estêvão, mas a causa de nosso rei exige um grande serviço neste momento; é chegada a ocasião de estrear a carreira que lhe destino.

ESTÊVÃO – Falai, senhor!

CONDE – Sabeis onde está o doutor Samuel?

ESTÊVÃO – É a ele que procuram?

CONDE – Responda-me, Estêvão; responda-me a verdade.

ESTÊVÃO – Nunca menti, senhor.

CONDE – Faço-lhe esta justiça; mas a necessidade, a afeição...

ESTÊVÃO – Não há razão que me obrigue a cometer semelhante vileza.

CONDE – Sabe onde se acha neste momento o doutor Samuel?

ESTÊVÃO – Sim, senhor Conde!

CONDE – Com toda a certeza?

ESTÊVÃO – Creio que sim.

CONDE – Bem! Diga-me o lugar! Guie-me. Esse homem é o maior inimigo da vossa pátria e do vosso rei!

ESTÊVÃO – Senhor, Conde! deste-me uma espada para que eu defendesse uma causa justa e não para que a trouxesse como o preço de uma infâmia. Esse homem é meu pai; Deus mo deu em troca do outro que a natureza negou-me; eu o amo, respeito e admiro. Bem vedes que é impossível o que exigis.

CONDE (irado.) – Rebelde!

CONSTANÇA (ao Conde.) – Não se zangue com ele, eu lho suplico!

CONDE (a Constança.) – Tranquiliza-te! (à Estêvão) A sua ação imprudente é de um mancebo de brio; e eu não posso condená-la. Somente advirto-o que a companhia desse homem torna-se perigosa neste momento.

ESTÊVÃO – É justamente por isso que devo acompanhá-lo e partilhar a sua sorte, qualquer que ela seja. Não me aprova, Constança?

CONSTANÇA – Eu?... Eu quero a sua felicidade.

CONDE (à Correia.) – É uma natureza altiva e um nobre coração! Farei deste menino alguma coisa! (à Estêvão) Vamos, senhor, acompanhe sua noiva.

ESTÊVÃO – Ah! será possível?... Julgava ter perdido a estima de V. Ex.

CONDE – Ao contrário; ganhou a minha amizade.

CONSTANÇA – Vem, Estêvão! (Saem Estêvão e Constança.)


CENA XV

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CONDE, CORREIA e SOLDADOS.

CONDE – Tenho, enfim, o meio de apoderar-me dele!

CORREIA – Como! Este mancebo?...

CONDE – Sim! É o único de quem ele confia o segredo de sua vida criminosa! (entram os soldados.)

OFICIAL – Procuramos tudo e debalde!

CORREIA – Teve aviso, naturalmente.

CONDE – Oh!... ainda me escapará desta vez! Há dous anos que procuro este homem, e quando julgo tê-lo em minha mão, se desvanece como uma sombra! (Pausa)

CORREIA – Que ordenais, senhor General?... Quereis que se arrase esta casa?

CONDE – Não; sei o que me resta fazer! Vinde! (Saem todos)


CENA XVI

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SAMUEL, DANIEL e CIGANOS.

(A cena fica um momento deserta; depois abre-se uma porta falsa e aparece Samuel: entram Daniel e ciganos.)

DANIEL – Estais salvo!

SAMUEL – Sim; o corpo salvou-se; mas levaram-me a alma! Sem ele, sem essa ressurreição de minha vida, o que sou eu? Uma sombra!... Meu Deus! Por que dando ao homem a inteligência e formando-o à tua imagem, lhe deixaste um coração?...