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O Mambembe/I

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Quadro 1

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Sala de um plano só em casa de dona Rita. Ao fundo, duas janelas pintadas. Porta à esquerda dando para a rua, e porta à direita dando para interior da casa.

CENA I

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MALAQUIAS, moleque, depois EDUARDO

(Ao levantar o pano, a cena está vazia. Batem à porta da esquerda.)

MALAQUIAS (Entrando da direita.) — Quem será tão cedo? Ainda não deu oito horas! ( Vai abrir a porta da esquerda.) Ah! é seu Eduardo!

EDUARDO (Entrando pela esquerda.) —Adeus, Malaquias. Quedê dona Rita? Já está levantada?

MALAQUIAS — Tá lá dentro, sim, sinhô.

EDUARDO — E dona Laudelina?

MALAQUIAS — Inda tá drumindo, sim, sínhô.

EDUARDO — Vai dizer a dona Rita que eu quero falar com ela.

MALAQUIAS — Sim, sinhô. (Puxando conversa.) Seu Eduardo onte tava bom memo!

EDUARDO — Tu assististe ao espetáculo?

MALAQUIAS — Ora, eu não falho! Siá dona Rita não me leva, mas eu fujo e vou. Fico no fundo espiando só!

EDUARDO — Gostas do teatro, hein?

MALAQUIAS — Quem é que não gosta do que é bão? Que coisa bonita quando seu Eduardo fingia que morreu quase no fim! Xi! Parecia que tava morrendo memo. Só se via o branco do olho! E dona Laudelina ajoelhada, abraçando seu Eduardo! Seu Eduardo tava morrendo, mas tava gostando, não é, seu Eduardo?

EDUARDO — Gostando, por quê? Cala-te!

MALAQUIAS — Então Malaquia não sabe que seu Eduardo gosta de dona Laudelina?

EDUARDO — E ela?... Gosta de mim?

MALAQUIAS — Eu acho que gosta... pelo meno não gosta de outro... eu sou fino; se ela tivesse outro namorado, eu via logo. Aquele moço que mora ali no chalé azu, que diz que é guarda-livro, outro dia quis se engraçá com ela e ela bateu coa jinela na cara dele: pá... eu gostei memo porque gosto de seu Eduardo, e sei que seu Eduardo gosta dela!

EDUARDO — Toma lá quinhentos réis.

MALAQUIAS — Ih! Obrigado, seu Eduardo. (Vai a sair pela direita. Entra dona Rita.)

DONA RITA — Que ficaste fazendo aqui, moleque?

MALAQUIAS — Nada, não, senhora; fui abri a porta a seu Eduardo e ia dizê a vosmecê que ele tava ai.

DONA RITA — Vai acabar de lavar a louça, mas vê lá se me quebras alguma coisa. (A Eduardo.) Não se passa um dia que este capeta não me quebra um prato... um copo... uma xícara... Vai!

MALAQUIAS — Sim, senhora. (Sai pela direita.)

CENA II

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EDUARDO, DONA RITA

DONA RITA — Bom-dia. (Aperta -lhe a mão.) O senhor madrugou! EDUARDO — Diga antes: “O senhor não dormiu”, que diz a verdade. Ah, dona Rita! Quem ama como eu amo não dorme!

DONA RITA — Pois o senhor deve estar moído! Olhe que aquele papel de Luís Fernandes não é graça! E o senhor representa ele com tanto calor!

EDUARDO — Porque o sinto, porque o vivo! O meu trabalho seria outro, se outra fosse a morgadinha...

DONA RITA (Sorrindo.) — Acredito.

EDUARDO — Mas a morgadinha é ela, é dona Laudelina, sua afilhada, sua filha de criação, que “eu amo cada vez mais com um amor ardente, louco, dilacerante, ó Cristo, ó Deus!”

DONA RITA — Esse pedacinho é da peça.

EDUARDO — É da peça, mas adapta -se perfeitamente à minha situação! “Sempre, sempre esta visão fatal a perseguir -me! No sonho, na vigília, em toda a parte a vejo, a sigo, a adoro! Como me entrou no coração este amor, que não posso arrancar sem arrancar o coração e a vida?” Tudo isto é da peça, mas vem ao pintar da faneca.

Coplas

I

Eu vivia feliz no meu cantinho,
Sem a mais leve preocupação,
Fazendo os meus galãs no teatrinho
Ou trabalhando na repartição;
Minha vida serena deslizava,
Como barquinho em bonançoso mar;
Apesar de amador, eu não amava,
Eu não amava nem queria amar.

II

Mas, de repente, vida tão serena,
Buliçosa, agitada se tornou:
Eu comecei a amar fora de cena,
E o mesmo homem de outrora já não sou.
Foi dona Laudelina que esta chama
Veio aqui dentro um dia espevitar,
Mas, conquanto amadora, ela não me ama,
Ela não me ama nem me quer amar.

DONA RITA — Acalme-se, seu Eduardo, o senhor não está em si. Vamos, sente-se nesta cadeira e me diga qual o motivo da sua visita à hora em que não costuma entrar nesta casa outro homem senão o do lixo.

(Sentam-se ambos.)

EDUARDO — Pois não adivinha o que aqui me trouxe? O meu amor! Se vim tão cedo, foi porque tinha a certeza de que dona Laudelina ainda estava recolhida ao seu quarto.

DONA RITA — Naturalmente; o papel da morgadinha também é muito fatigante, e Laudelina é uma amadora: não é uma atriz, não se sabe poupar, como bem disse ontem o Frazão.

EDUARDO — Mas a senhora também representou a morgada, e aí está fresca e bem disposta.

DONA RITA — Oh! O papel da morgada é um papel de dizer... Eu faço ele com uma perna às costas... Ah, se o senhor me visse na Nova Castro, quando meu marido era vivo e eu tinha menos quinze anos!

EDUARDO — A senhora é uma das mais distintas amadoras do Rio de Janeiro.

DONA RITA — Obrigada. O teatro foi sempre a minha paixão... o teatro particular, bem entendido, porque na nossa terra ainda há certa prevenção contra as artistas.

EDUARDO — O preconceito...

DONA RITA — Como o senhor sabe, Laudelina é órfã de pai e mãe... não tem parentes nem aderentes... veio para a minha companhia assinzinha, e fui eu que eduquei ela. Quando descobri que a pequena tinha tanta queda para o teatro, fiquei contente, e consenti, com muito prazer, que ela fizesse parte do Grêmio Dramático Familiar de Catumbi, sob condição de só entrar nas peças em que também eu entrasse. Mas lhe confesso, seu Eduardo, que tenho os meus receios de que ela pretenda seriamente abraçar a carreira teatral...

EDUARDO — Sim... aquele fogo... aquele entusiasmo... aquele talento inquietam...

DONA RITA — O senhor queixa -se de que ela não faz caso do senhor...

EDUARDO — Não! Não é disso que me queixo; sim, porque, afinal, não posso dizer que ela não faça caso de mim... Mas não é franca, de modo que não sei se sou ou não correspondido, e é esta incerteza que me acabrunha!

DONA RITA — É que Laudelina, por enquanto, só tem um namorado: o teatro; só tem uma paixão: a arte dramática. Ah! Mas eu sei o que devo fazer...

EDUARDO — Que é?

DONA RITA — Afastar-nos completamente do Grêmio Dramático Familiar de Catumbi. Se preciso for, mudar-nos-emos para outro bairro, e adeus teatrinho!

EDUARDO — Mas há teatrinho em todos os bairros!

DONA RITA — Sempre há de haver algum em que não haja. Verá então que, afastada desse divertimento, ela olhará para o senhor com outros olhos, porque, francamente, seu Eduardo, eu bem desejava que o senhor se casasse com ela.

EDUARDO — Ah!

DONA RITA — Onde poderá Laudelina encontrar melhor marido? O senhor, não é por estar em sua presença, é um moço de boa família, estima ela deveras e tem um bom emprego.

EDUARDO — Obrigado, dona Rita! As suas palavras enchem-me de esperança e alegria! Peço-lhe que advogue a minha causa. Foi só para fazer-lhe este pedido que vim à sua casa à hora do homem d o lixo.

DONA RITA — Já tenho falado a ela muitas vezes no senhor. Não posso obrigar ela, mesmo porque já é maior... mas prometo empregar toda a minha autoridade de mãe adotiva para convencê-la de que deve ser sua esposa. (Levanta-se.)

EDUARDO (Levantando-se.) — A senhora é o meu bom anjo!

Quero beijar-lhe as mãos, e de joelhos!... (Ajoelha-se diante de dona Rita.)

CENA III

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OS MESMOS, LAUDELINA

LAUDELINA (Entrando.) — “Um discípulo de Voltaire ajoelhado aos pés da cruz!”

EDUARDO (Erguendo-se.) — “A cruz é o amparo dos que padecem...”

DONA RITA — Alto lá! ... Olhem que eu não sou cruz!

LAUDELINA — “E padece? Por minha causa, não é verdade? Fui injusta, bem sei; nas frases que soltara ao vento, decerto por desfastio, quis ver uma ofensa. Era cruel, sinto-o agora. Esqueçamos isso, e sejamos amigos bons e leais, sim?” (Apertando-lhe a mão com uma risada e mudando de tom.) Como passou a noite, seu Eduardo?

EDUARDO — Em claro, pensando no meu amor!

LAUDELINA — Também eu pensando no meu triunfo! Que bela noite! Nunca me senti tão bem no papel de morgadinha! O efeito foi estrondoso! Estava na platéia o ator Frazão...

DONA RITA — Foi convidado pela diretoria.

LAUDELINA — Com que entusiasmo batia palmas! Via-se que aquilo era sincero! Depois do quarto ato foi cumprimentar-me na caixa! Deu-me um abraço, e disse-me: “Filha, tu não tens o direito de não estar no teatro; cometes um estelionato, de que é vítima a arte.”

DONA RITA — O Frazão disse-te isso?

LAUDELINA — Sim, senhora!

DONA RITA — Pois se eu ouvisse, tinha lhe dado o troco. (Outro tom.) Mas que me dizem daquela minha fala? “Por que se envergonha de chorar diante de mim? Sou mãe dela e não hei de saber o quanto custará perdê-la?”

EDUARDO (Escondendo o rosto nas mãos.) — “Ah! quanto padeço!”

DONA RITA — “Ânimo, filho, então? Quando chegar ao “acaso” da vida”...

EDUARDO (Emendando.) — “Ocaso”. A senhora sempre diz ‘acaso’, mas é “ocaso”.

DONA RITA — Ocaso? Que diabo é ocaso?

EDUARDO — É o pôr do sol... O ocaso da vida quer dizer o fim da vida.

DONA RITA — No papel está “acaso”.

LAUDELINA — Foi erro do copista, dindinha. Seu Eduardo tem razão.

DONA RITA — Enfim... (Representando.) “Quando chegar ao, acaso...”

EDUARDO e LAUDELINA — Ocaso.

DONA RITA —Já estou viciada. (Representando.) “Quando chegar ao ocaso da vida e, voltando os olhos para esta quadra tempestuosa, lhe disser a consciência que soube cumprir um dever, há de sentir uma consolação sublime, uma legítima ufania!” (Outro tom.) Muito sentimento, hein?

LAUDELINA — E então eu? (Representando.) “A nada mais se atende, não é assim? Ela que se console com a idéia do dever, das leis da sociedade, exatamente? quando acabava de calcar essas leis, para voar, num ímpeto de abnegação, para quem de joelhos lhe implorava amor?”

EDUARDO (Idem) — “Ah, não me fale assim, se não quer que eu perca a pouca razão que me resta! (Tomando as mãos de Laudelina.) Não vês que te amo mais loucamente do que nunca? Não vês que uma palavra tua me arroja de novo ao abismo?”

LAUDELINA (Idem.) — “Vejo que te importa”... (Tem uma hesitação de memória.)

DONA RITA (Sugerindo-lhe.) — ...“se eu me arrojo”...

LAUDELINA — “Que te importa, se eu me arrojo a ele contigo? (Frazão aparece à porta da esquerda.) Amas-me e hesitas ainda? Tudo mais que vale? Há aqui obstáculos que se opõem ao nosso afeto? Receias a luta? As apreensões dos teus, os desprezos dos outros? Mas tens o meu amor e isso te basta! Fujamos ambos; vamos esconder bem longe de Portugal o nosso flóreo ninho!” (Eduardo vai cingi -la de acordo com a rubrica da peça, mas Frazão que aos poucos se tem aproximado dela enlevado, empurra Eduardo.)

FRAZÃO — Saia daí, seu arara! Eu já tenho representado o papel de Luís Fernandes mais de cinqüenta vezes! (Enlaçando Laudelina.) “Ah! Caia sobre mim o desprezo do mundo, a maldição de Deus, persiga -me o remorso, espere-me o inferno, mas agora é que te juro que ninguém te arrancará dos meus braços!” (Outro tom.) Bravos, bravos, filha! Tens muito talento! Quem to diz é o Frazão!

CENA IV

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OS MESMOS, FRAZÃO

FRAZÃO (Para Eduardo.) — Desculpe se o chamei arara, meu caro amador: foi sem querer; reconheço, pelo contrário, que o senhor é um curioso de muita habilidade. Mas que esquisitice é esta? A isto é que se pode chamar amor da arte! Pois representaram a peça ontem à noite, e hoje pela manhã já estão a ensaiá-la de novo?

DONA RITA — Não, senhor, não era um ensaio... isto veio naturalmente, na conversa; mas... a que devo a honra de sua visita? FRAZÃO — Preciso falar-lhe, minha senhora. Escolhi esta hora matinal porque tenho o dia todo ocupado, visto que depois de amanhã devo partir com a companhia que estou organizando.

EDUARDO — Vejo que sou demais.

FRAZÃO — Não, demais não é; entretanto, o assunto que aqui me traz é muito reservado.

EDUARDO — Retiro-me, mesmo porque tenho que ir a uma cobrança a mando do patrão. (Indo apertar a mão de dona Rita.) Até logo, dona Rita. (Baixo.) Desconfio desta visita... não caia!...

DONA RITA — Deixe estar.

EDUARDO (Subindo e indo cumprimentar Laudelina.) —Até logo, dona Laudelina.

LAUDELINA — Até logo, seu Eduardo.

EDUARDO — Passar bem, senhor Frazão.

FRAZÃO — Adeus, jovem, e esqueça-se daquele arara... Foi sem querer.

EDUARDO — Ora! (Sai.)

CENA V

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FRAZÃO, DONA RITA, LAUDELINA

LAUDELINA — Também eu me retiro.

FRAZÃO — Não; a senhora pode ficar, porque a conversa lhe diz respeito.

DONA RITA — Sentemo-nos. (À parte.) Pois sim!

FRAZÃO — Sentemo-nos. (Sentam-se os três.) O caso é este, minha senhora... vou expor-lho em poucas palavras, porque não tenho tempo a perder. Os meus minutos estão contados. Devo cavar três contos de réis de hoje para amanhã. (Pausa.) Como a senhora sabe, a vida do ator no Rio de Janeiro é cheia de incertezas e vicissitudes. Nenhuma garantia oferece. Por isso, resolvi fazer-me, como antigamente, empresário de uma companhia ambulante, ou, para falar com toda a franqueza, de um mambembe.

AS DUAS — Mambembe?

FRAZÃO — Dar-se-á caso que não saibam o que é um mambembe? Nunca leram o Romance cômico, de Scarron?

AS DUAS — Não, senhor.

FRAZÃO — É pena, porque eu lhes diria que o mambembe é o romance cômico em ação e as senhoras ficariam sabendo o que é. Mambembe é a companhia nômade, errante, vagabunda, organizada com todos os elementos de que um empresário pobre possa lançar mão num momento dado, e que vai, de cidade em cidade, de vila em vila, de povoação em povoação, dando espetáculos aqui e ali, onde encontre um teatro ou onde possa improvisá-lo. Aqui está quem já representou em cima de um bilhar!

LAUDELINA — Deve ser uma vida dolorosa!

FRAZÃO — Enganas-te, filha. O teatro antigo principiou assim, com Téspis, que viveu no século VI antes de Cristo, e o teatro moderno tem também o seu mambembeiro no divino, no imortal Molière, que o fundou. Basta isso para amenizar na alma de um artista inteligente quanto possa haver de doloroso nesse vagabundear constante. E, a par dos incômodos e contrariedades, há o prazer do imprevisto, o esforço, a luta, a vitória! Se aqui o artista é mal recebido, ali é carinhosamente acolhido. Se aqui não sabe como tirar a mala de um hotel, empenhada para pagamento de hospedagem, mais adiante encontra todas as portas abertas diante de si. Todos os artistas do mambembe, ligados entre si pelas mesmas alegrias e pelo mesmo sofrimento, acabam por formar uma só família, onde, embora às vezes não o pareça, todos se amam uns aos outros, e vive -se, bem ou mal, mas vive-se!

LAUDELINA — E... a arte?

FRAZÃO — Tudo é relativo neste mundo, filha. O culto da arte pode existir e existe mesmo num mambembe. Os nossos primeiros artistas — João Caetano, Joaquim Augusto, Guilherme Aguiar, Xisto Bahia — todos mambembaram, e nem por isso deixaram de ser grandes luzeiros do palco.

LAUDELINA — Mas de onde vem essa palavra, mambembe?

FRAZÃO — Creio que foi inventada, mas ninguém sabe quem a inventou. É um vocábulo anônimo trazido pela tradição de boca em boca e que não figura ainda em nenhum dicionário, o que aliás não tardará muito tempo. Um dia disseram-me que, em língua mandinga, mambembe quer dizer pássaro. Como o pássaro é livre e percorre o espaço como nós percorremos a terra, é possível que a origem seja essa, mas nunca o averigüei.

CENA VI

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OS MESMOS, MALAQUIAS

MALAQUIAS — A senhora quer que e u bote o armoço na mesa?

DONA RITA — Sim; o senhor Frazão almoçará conosco...

FRAZÃO — Agradecido, minha senhora; tenho muito que fazer e ainda é cedo para almoçar

DONA RITA (A Malaquias, que em vez de se retirai ficou parado a olhar para Frazão, e a rir-se.) — Vai-te embora, moleque! Que fazes aí parado?

MALAQUIAS (Rindo, sem responder.) — Eh! eh! eh!

DONA RITA — Então?

MALAQUIAS — É seu Frazão... ele tava onte lá no teatro... Que home engraçado! (Sai.)

CENA VII

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FRAZÃO, DONA RITA, LAUDELINA

DONA RITA — Desculpe... este moleque é muito confiado... mas eu ensino ele!...

FRAZÃO — Deixe-o lá!... Isto é a popularidade, é a glória em trocos miúdos, como disse o outro.

DONA RITA — Agora diga o motivo da sua visita.

FRAZÃO — É muito simples, minha senhora. Vinha propor-lhe contratar dona Laudelina para primeira-dama da minha companhia. A minha primeira-dama, a Rosália, foi visitar, durante a nossa última excursão, uma fazenda no Capivari, e lá ficou com o fazendeiro. Já se casaram. Recebi há dias a participação do casamento.

DONA RITA — Senhor Frazão, esta menina não se destina ao teatro...

LAUDELINA — Por quê, dindinha? É uma profissão como outra qualquer!

DONA RITA — Cala -te! Pois eu havia de consentir que fosses por aí fora? Deus me livre!

FRAZÃO — Dona Laudelina nasceu para o teatro, e é pena, realmente, que não se faça atriz de profissão; entretanto, não vim aqui fazer de Mefistófoles; não tento nem seduzo ninguém. Principiei por pintar com toda a lealdade a nossa vida, com os seus altos e baixos, os seus prós e contras. Supus — desculpem-me a franqueza e não se ofendam com ela — supus que as senhoras estivessem em más condições de fortuna (Olhando em volta de si.), e lhes sorrisse a proposta de um empresário honesto e bem intencionado... Quero apenas ouvir de seus lábios, minha senhora, um “sim” ou um “não” Juro-lhe que não insistirei.

DONA RITA (Resolutamente.) — Não!

FRAZÃO (Erguendo-se.) — Bom! Vou tratar de procurar outra!

DONA RITA (Erguendo-se.) — Se eu quisesse que ela fosse atriz, não seria decerto num mambembe!

FRAZÃO — Pois deixe-me dizer, minha senhora, que o mambembe tem a vantagem de exercitar o artista. A contingência em que ele se acha de aceitar papéis de todos os gêneros e estudá-los rapidamente produz um entraînement salutar e contínuo, que não pode senão aproveitar ao seu talento. Dona Laudelina faria as suas primeiras armas lá fora e, quando se apresentasse ao público desta capital, seria uma atriz feita. Juro que dentro de um ano ela triunfaria nos palcos do Rio de Janeiro, e eu teria a glória de havê-la iniciado na arte!...

DONA RITA — Procure outra, seu Frazão; não é, minha filha?

LAUDELINA (Que se conservou sentada, muito comovida, mal podendo conter as lágrimas.) — Por meu gosto aceitava. Que futuro me espera fora do teatro? Ser costureira toda a vida? Casar com seu Eduardo, que não ganha o suficiente para viver solteiro? Encher-me de filhos e de cuidados? Se tenho realmente, como dizem, algum jeito para o teatro, não seria melhor aproveitar a minha habilidade?... (Chora. Nisto ouve-se à direita grande bulha de louça quebrada.)

DONA RITA — Lá o moleque me quebrou mais louça! Com licença! Vou ver o que foi. (Sai pela direita.)

CENA VIII

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FRAZÃO, LAUDELINA

LAUDELINA (Erguendo-se e enxugando os olhos.) — Senhor Frazão, quando tenciona partir com a sua companhia?

FRAZÃO — Depois de amanhã, se até lá arranjar, como espero, uma primeira-dama... e os três contos de réis.

LAUDELINA (Resoluta.) — Irei com o senhor.

FRAZÃO — A senhora? Mas sua madrinha...

LAUDELINA — Tenho vinte e dois anos, sou maior, sou senhora das minhas ações, posso dispor de mim como entender. FRAZÃO — Não! Não quero contrariar essa senhora que lhe tem servido de mãe. E, deixe lá, no fundo ela não deixa ter razão.

LAUDELINA — Amanhã procurá-lo-ei... Onde mora?

FRAZÃO — Numa casa de pensão. (Dando-lhe um cartão.) Aí tem a minha residência. Mas veja o que vai fazer!

LAUDELINA — Descanse. Levarei hoje todo o dia a catequizar dindinha. Ela acabará, como sempre, por me fazer a vontade. E se não fizer, adeus! Não quero sacrificar-me ao bem que lhe devo!

FRAZÃO — Estás me assustando, filha! Não vá sua madrinha dizer...

LAUDELINA — Diga o que quiser! Não sou nenhuma criança! Amanhã procurá-lo-ei, senhor Frazão. (Guarda o cartão.)

CENA IX

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FRAZÃO, LAUDELINA, DONA RITA, depois MALAQUIAS

DONA RITA — Que estás dizendo?

LAUDELINA — A verdade! Quero ser atriz!...

FRAZÃO — Isso é uma coisa que se decidirá entre as senhoras. Lavo as mãos. E não digo mais nada! A minha responsabilidade fica salva! Minhas senhoras... (Cumprimenta e sai pela esquerda.)

DONA RITA — Este homem veio te desencaminhar!...

LAUDELINA — Não, dindinha... Se não fosse ele, seria outro qualquer... seria o meu próprio instinto. Depois do almoço conversaremos... espero persuadi-la... o meu destino é esse!...

DONA RITA — O teu destino é esse! Mas sabes o que te espera?

LAUDELINA — Será o que Deus quiser.

DONA RITA — Pois olha, se fores para o tal mambembe, irei contigo! Não me separarei um momento de ti!

LAUDELINA — Terei com isso muito prazer.

DONA RITA — Que dia aziago! O moleque me quebrou mais três pratos, e agora tu... ( Vendo entrar Malaquias.) Cá está o demônio! Devias ter levado uma coça!...

MALAQUIAS — Armoço tá na mesa.

DONA RITA — Vamos almoçar.

LAUDELINA — Oh, o teatro!... A arte!... O público!... O imprevisto!... (Sai.)

DONA RITA — O diabo do tal Frazão veio pôr ela doida! ... (Sai pela direita.)

MALAQUIAS (Só, arremedando Laudelina.) — Oh, o teatro!... A arte!... O público!... Moça tá assanhada. (Sai pela direita. Mutação.)

Quadro 2

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Botequim nos fundos de um armazém de bebidas. Ao fundo, além de uma arcada, o armazém com balcão e prateleiras e duas portas largas dando para a rua. À esquerda, a entrada de um bilhar. À direita, parede com pipas e barris. Mesinhas redondas, de mármore. Bancos.

CENA I

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MONTEIRO, o CAIXEIRO, LOPES, FÁBIO, PRIMEIRO FREGUÊS, SEGUNDO FREGUÊS, FREGUESES

(Ao levantar o pano, Monteiro, em mangas de camisa, percorre as mesas: é o dono da casa. Fábio sentado a uma mesa à esquerda escreve. Lopes sentado ao fundo lê um jornal. À direita, o Primeiro e o Segundo Fregueses bebem e conversam. Os outros fregueses fazem o mesmo. Durante o quadro entram e saem fregueses no armazém ao fundo e são servidos pelo Caixeiro. Vêem-se passar transeuntes na rua.)

Pequeno Coro

Quer de noite, quer de dia
— Quem já viu fortuna assim? —
Nunca falta freguesia
Neste belo botequim!

PRIMEIRO FREGUÊS — É Monteiro!

MONTEIRO (Aproximando-se.) — Que é?

PRIMEIRO FREGUÊS (Idem.) — Quem é aquele sujeito que está escrevendo? (Aponta à esquerda.)

MONTEIRO — É o Fábio.

PRIMEIRO FREGUÊS — Que faz ele?

MONTEIRO — Nada, que eu saiba.

SEGUNDO FREGUÊS — Não lhe disse? É um vadio. Conheci-o empregado no comércio.

MONTEIRO —Sim, creio que foi... Depois fez-se poeta... andou a rabiscar nos jornais...

PRIMEIRO FREGUÊS — Que está ele escrevendo ali?

MONTEIRO (Rindo.) — Aquilo é uma revista-de-ano em que há três anos trabalha.

SEGUNDO FREGUÊS — Faz da tua casa o seu gabinete?

MONTEIRO — A esta hora é infalível àquela mesa... Pede uma garrafa de parati... Escreve durante duas horas... Quando se levanta, tem a revista mais uma cena e ele está que não se pode lamber!

SEGUNDO FREGUÊS — Coitado! Com semelhante processo de trabalho não poderá ir muito longe!

PRIMEIRO FREGUÊS — A tua casa é muito freqüentada por gente de teatro.

MONTEIRO —Pode-se dizer que não tenho outra freguesia. Isto é uma espécie de quartel-general dos nossos atores. Entre estas paredes discutem-se peças, arrasam-se empresários, amaldiçoam-se críticos, fazemse e desfazem-se companhias.

SEGUNDO FREGUÊS — Estão sempre a brigar uns com os outros.

MONTEIRO — Isso não quer dizer nada... Vocês vêem dois artistas dizerem-se horrores um do outro: parecem inimigos irreconciliáveis... mas a primeira desgraça que aconteça a um deles, abraçam-se e beijam-se. Boa gente, digo -lhes eu, boa gente, injustamente julgada.

PRIMEIRO FREGUÊS (Erguendo-se.) — Bom! são horas!

SEGUNDO FREGUÊS (Idem.) — Ainda é cedo. Vem daí jogar uma partida de pauzinho.

MONTEIRO (Apontando para a esquerda.) — Ambos os bilhares estão desocupados.

OS DOIS — Vamos lá! Quantas levas? (Saem pela esquerda e daí a pouco ouvem-se as bolas batendo umas nas outras.)

CENA II

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MONTEIRO, FÁBIO, LOPES, BROCHADO, o CAIXEIRO,

FREGUESES

MONTEIRO (Indo ao encontro de Brochado, que entra.) — É s’or Brochado! De volta! Seja bem aparecido!

BROCHADO — É verdade, cheguei hoje... (Dando-lhe uma nota.) e trago -lhe estas cinqüentas por conta de maior quantia. Desculpe não pagar tudo.

MONTEIRO — É senhor, mais deva! Pague quando puder!...

BROCHADO — Vou ver se faço um benefício... Ah, meu amigo, aquilo lá por fora está pior que no Rio de Janeiro! Mal por mal, antes aqui... Sempre se encontra crédito.

MONTEIRO — Pois olhe, aqui está uma desgraça. O público espera pelas companhias estrangeiras.

BROCHADO — E dizer que um artista do meu valor não tem trabalho na capital do seu país! Ah, meu caro Monteiro, se eu não considerasse a arte como um sacerdócio, se lhe não tivesse sacrificado toda a minha mocidade, toda a minha existência, há muito tempo teria abandonado o teatro!... Mas que quer?... Depois de ter tido no teatro a posição que tive, não hei de ir puxar uma carroça!

MONTEIRO — Na realidade, não se compreende que o senhor não esteja empregado!

BROCHADO — Onde queria você que eu me empregasse? Para trabalhar com quem? Nem eles me querem, porque lhes faço sombra, nem eu os quero, porque não me confundo. Dou ainda o meu recado. Ainda há dias, em São Paulo, levantei a platéia com uma simples poesia, a “Cerração no Mar”. Todos os espectadores ficaram de pé.

LOPES (Que deixa o seu jornal e se aproxima.) — Eu estava lá.

BROCHADO — Ah! tu estavas lá? É ou não é exato?

LOPES — Eu sou franco. Todos os espectadores se levantaram mas foi para ir -se embora.

BROCHADO — Porque esta va terminada a poesia.

LOPES — Faltavam ainda muitos versos. Tu és um bom artista, mas tens o defeito de não estudares nada novo. Desengana-te. Com essas velharias não chegas lá! Eu sou franco!

BROCHADO — Um ignorante é o que és! Sabes lá o que é bom e o que é mau! O que eu admiro é a tua audácia! Quem és tu?... que tens feito no teatro?... E conheces-me por ventura? Já me viste no Cabo Simão... na Pobre das ruínas? No Paralítico?... (Lopes encolhe os ombros e volta ao seu jornal.)

MONTEIRO — Bom! não briguem! (Afasta-se e vai ao balcão.)

BROCHADO — Pretensioso!...

FÁBIO (Que foi distraído pela discussão, levanta-se e vai a

Brochado.) — Olá, Brochado, você por aqui! Fazia -o lá pela terra dos Andradas!

BROCHADO — Terminei a minha excursão.

FÁBIO — Em que companhia estava?

BROCHADO — Em que companhia? Ora essa! Que companhia acha você aí digna de mim? Ah não, eu não me confundo, meu caro poeta! Fiz a minha excursão sozinho.

FÁBIO — Sozinho?

BROCHADO — Antes só que mal acompanhado.

FÁBIO — E o repertório?

BROCHADO — Monólogos... poesias... cenas dramáticas... Eu cá me arranjo. Quer saber qual foi um dos meus grandes sucessos? A fala do Carnioli, da Dalila!

FÁBIO — “Chorava o arco”?

BROCHADO — Essa mesma.

LOPES (Do seu lugar.) — O Furtado Coelho dizia-a muito bem.

BROCHADO — Cala -te! Não sejas tolo! O Furtado era artificial... faltava-lhe isto... (Bate no coração.) e para dizer aquilo como deve ser dito, é indispensável isto... (Idem.)

LOPES — E isto! (Bate na testa.)

BROCHADO — Deixa estar que te hei de pedir umas lições. (A Fábio.) Idiota! O Furtado não passava de um amador inteligente. Daqui a nada aquela azêmola vai dizer que o Dias Braga, o Eugênio e o Ferreira valem mais do que eu! (Voltando-se para Lopes.) Olha, tenho pena que não me visses no tio Gaspar.

LOPES — Quê! Você fez os Sinos de Corneville?

BROCHADO — Apenas a cena do castelo... reduzida a monólogo.

LOPES — Sem a armadura?

BROCHADO — Sim, sem a armadura. Onde queria você que eu fosse buscar uma armadura? Mas arranjei uns comparsas, que fizeram de fantasmas... (Sentando-se.) Não gosto de falar dos mortos, mas olha que para causar na platéia um entusiasmo indescritível, não precisei de uma cabeleira de arame, como o defunto Guilherme, que Deus perdoe.

LOPES — Deus te perdoe a ti, que tem mais que perdoar.

BROCHADO — Pode falar à vontade! Faço como o público: não te tomo a sério. (À parte.) No Ribeirão Preto não houve meio de arranjar uma cabeleira de arame! (A Fábio, que se tem sentado de novo.) Que é isso?... Que está você a escrever?... Versos?...

FÁBIO — Não. Uma revista-de-ano.

BROCHADO — É o que dá. Como se intitula?

FÁBIO — O Trouxa.

BROCHADO — O título não é mau. Para que teatro é?

FÁBIO — Sei lá! Está escrita há três anos, de modo que de vez em quando tenho que modificá-la... pôr -lhe umas coisas... tirar-lhe outras, por causa da atualidade. Estou sempre a bulir -lhe!

BROCHADO — A sua revista é como o Teatro Lírico: sempre em obras.

FÁBIO — Dizem que o Ferraz vai organizar uma companhia para o Lucinda... talvez inaugure com o Trouxa. Venha cá, sente -se aqui... quero ler-lhe umas cenas... (Brochado vai sentar-se à mesa de Fábio.)

BROCHADO — Se você pudesse encaixar aí um personagem dramático, que só dissesse monólogos... e que estivesse sempre sozinho em cena...

FÁBIO — Esse personagem pode ser o Progresso, e aparecer na cena do eixo da Avenida Central... ou noutras, que eu inventarei.

BROCHADO — Só assim eu poderia figurar numa dessas tropas fandangas.

FÁBIO — Ouça lá! (Gritando.) Ó menino, outra garrafa de parati! (A Brochado.) Você toma outra coisa?

BROCHADO — Não; parati mesmo, que o do Monteiro é bom.

FÁBIO — Traga outro cálice! (O Caixeiro, que estava no balcão, traz uma garrafa de parati e um cálice, que põe sobre a mesa de Fábio, e leva a outra garrafa, depois de se certificar, contra a luz, que ela está vazia. Fábio começa a ler a revista em voz baixa a Brochado, que está de costas para o público.)

LOPES (Vendo Monteiro.) — O Frazão marcou a reunião para o meio-dia em ponto, e já passa.

MONTEIRO — Mais um quarto de hora, menos um quarto de hora, não quer dizer nada. Ele anda atrapalhando. Ficaram de dar-lhe o cobre às onze e meia; pode ser que tenha havido qualquer demora. O dinheiro nunca é pontual. Olhe, aí vem o Vilares e a Margarida.

CENA III

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OS MESMOS, VILARES, MARGARIDA, artistas

VILARES (A Lopes.) — Já chegou o homem?

LOPES — Ainda não.

MARGARIDA — Ele arranjaria a primeira-dama que procurava?

LOPES — Duvido. Não há nenhuma disponível.

MARGARIDA — A falar a verdade, não sei para que essa primeira-dama. Não estou eu na companhia?

LOPES — Tu? (Rindo-se) Pf... Que pilhéria!

MARGARIDA — Pilhéria por quê?

VILARES — Eu sou suspeito... mas a Margarida não deixa de ter razão. Estou certo que daria conta do recado.

LOPES — É filho, pois seriamente entrou-te na cabeça que a Margarida pode fazer primeiros papéis?

VILARES — Mas por que não?

LOPES — Eu sou franco; ela...

MARGARIDA — Aqui no Rio de Janeiro não digo nada; mas no interior...

LOPES — Estás enganada: aqui no Rio de Janeiro é que o público engole tudo!

MARGARIDA — Achas então que não sirvo para nada?

LOPES — Não disse isso... tens o teu lugar no teatro... mas não podes fazer primeiros papéis. Eu sou franco!

Tercetino

LOPES — Eu não nego que és bonita,

Que és simpática também;

Nesse olhar de amor palpita,

Toda gente te quer bem;

Mas, menina, com franqueza:

Não te basta essa beleza.

VILARES — Queres tu desanimá-la?

LOPES — É sempre o que se diz a quem verdade fala!

MARGARIDA — Deixa-o dizer o que quiser...

Pois, meu amigo, no teatro,

Quando é bonita uma mulher

Pode fazer o diabo a quatro.

LOPES — Pode fazer, ninguém o nega,

Mas não é isto ser atriz!

VILARES — Deixe-a! não sejas mau colega!

LOPES — A quem verdade fala é sempre o que se diz!

MARGARIDA — Tendo alguma habilidade,

Linda boca, olhos gentis,

Cinturinha de deidade,

Pode a gente

Certamente,

Tanto aqui como em Paris

Ser no teatro um chamariz.

LOPES — Não é isto ser atriz;

Mas tu dizes a verdade...

OS TRÊS — Sim, tu dizes a verdade...

Sim, sim, sim, digo a verdade...

Tendo alguma habilidade,

Linda boca, olhos gentis, etc.

LOPES — Contenta-te com o teu lugar.

VILARES — Não digo nada porque sou suspeito.

LOPES — Por que estás com ela? Então também eu sou...

MARGARIDA — Ora essa! então tu estás comigo?

LOPES — Não estou, mas já estive. E olha que nunca te enchi a cabeça de caraminholas!

CENA IV

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OS MESMOS, FLORÊNCIO, COUTINHO, ISAURA, outros artistas que vêm chegando aos poucos, depois VIEIRA, depois FRAZÃO

FLORÊNCIO — O Frazão já apareceu?

VILARES — Não; mas não deve tardar.

ISAURA — Ele arranjou a primeira-dama?

LOPES — Não sei.

ISAURA — Se não arranjou, cá estou eu.

LOPES — Tu?!

ISAURA — Então?... à falta de outra...

LOPES (A rir.) — Pf! ... Eu sou franco: antes a Margarida.

ISAURA — Oh! a Margarida é uma principiante.

MARGARIDA — E tu és uma acabante!

LOPES — É filha, pois não vês que não podes dar senão caricatas?

FLORÊNCIO (Consultando o relógio.) — Meio-dia e meia hora... aposto que ele não arranjou o arame.

VILARES — Aí vem o pessimista!

FLORÊNCIO — Pessimista, não: filósofo; espero sempre o pior.

COUTINHO — Duvido que o Frazão venha.

TODOS — Por quê?

COUTINHO — Era quase meio -dia quando ele tomou no largo de São Francisco o bonde da Praia Formosa.

MARGARIDA — Que iria lá fazer?

COUTINHO — Sei lá!

FLORÊNCIO — Homem, se ele não aparecesse, não seria a primeira vez.

LOPES — Não seja má língua! O Frazão foi sempre homem de palavra!

FLORÊNCIO — Queres me dizer a mim quem é o Frazão?

LOPES — Ele deve-te alguma coisa?

FLORÊNCIO — Não.

LOPES — Eu sou franco. Devias ser-lhe agradecido. Estás desempregado há dois anos, e ele lembrou-se agora de ti.

FLORÊNCIO — Porque precisava.

LOPES — Querem ver que também te propões a substituir a primeira-dama? (Risadas.)

MARGARIDA — Quem sabe? Talvez esta demora seja porque ele anda atrás dela.

ISAURA — Por que não manda um telegrama à Réjane?

LOPES — Se a Réjane representasse em português, tu dirias o diabo dela! Eu sou franco. (Entra Vieira todo vestido de preto, tipo fúnebre, fisionomia triste.)

VIEIRA — Meus senhores, bom-dia.

MARGARIDA — Como o Vieira vem triste!

VIEIRA — Algum dia me viste mais alegre?

COUTINHO — Sim, mas hoje estás mais triste que de costume.

VIEIRA — É, talvez, por causa desta viagem... vou deixar família... os filhos... não posso estar longe deles. Já tenho um nó na garganta.

FLORÊNCIO — E é que o Frazão não aparece! Pois olhem, sem adiantamento eu não posso me mexer.

VILARES — Nem eu!

COUTINHO — Nem eu. Vi uma casaca num belchior da rua da Carioca, que me assenta como uma luva. O defunto tinha o meu corpo. Mas estou com medo de não a encontrar mais... Esta demora!

PRIMEIRO FREGUÊS (Aparecendo à porta do bilhar; com um taco na mão.) — Ó Monteiro, tens aí um pedaço de giz?

MONTEIRO — Lá vou. (Acode ao Primeiro Freguês.)

FLORÊNCIO — Mas, afinal, isto é um abuso! Nós não somos criados do senhor Frazão!

LOPES — Esperem! (Começam todos os artistas a falar ao mesmo tempo, uns a defender; outros a acusar a Frazão.)

MONTEIRO — Que bulha é esta? Calem-se! (Vai para a porta da rua.)

Coro

UNS — Tenham todos paciência!

O Frazão não tardará!

Sempre é muita impertinência

Dizer que ele não virá.

OUTROS — Já me falta a paciência!

O Frazão tardando está!

E demais tanta insolência!

Grosseria assim não há!

MONTEIRO (Vindo a correr do fundo.)

— Supondes que o Frazão pregou-vos uma peça

Mudai de opinião,

Porquanto a toda pressa

Aí chega o Frazão!

(Frazão aparece à porta, entra esbaforido e senta-se num banco que lhe oferecem.)

CORO — Viva o Frazão!

Viva o Frazão!

É de Palavra o maganão!

FRAZÃO (Sentado.) — Quero tomar respiração. (As mulheres abanam-no com os seus leques.)

CORO — Toma, Frazão,

Respiração!

I

FRAZÃO — Por causa do dinheiro

Que neste embrulho está,

Andei o dia inteiro

De cá pra lá!

Fui a São Diogo,

A Andaraí,

A Botafogo

E a Catumbi.

CORO — Foi a São Diogo, etc.

II

FRAZÃO — Andei toda a cidade,

Mexi, virei, corri!

Só apanhei metade

Do que pedi!

Fui às Paineiras,

Fui ao Caju,

Às Laranjeiras

E ao Cabuçu!

CORO — Foi às Paineiras, etc.

FRAZÃO (Erguendo-se.) — É verdade! Vocês não imaginam como os tempos andam bicudos!

TODOS — Imaginamos.

FRAZÃO — Foi um verdadeiro trabalho de Hércules a conquista destes miseráveis dois contos de réis! E ainda me falta outro pacote que prometeram levar-me à casa logo às cinco horas, com toda a certeza. Se não vierem, estou frito!

TODOS — Hão de vir!

FRAZÃO — Vamos a isto! (Dispõe ao centro da cena uma mesa e uma cadeira. Senta -se e tira do bolso um papel e um lápis.)

MARGARIDA (Durante esse movimento.) — Então? Já arranjou a primeira-dama?

FRAZÃO — Já.

TODOS—Já! Quem é? Quem é?...

FRAZÃO — É uma surpresa. A seu tempo saberão. Vamos aos adiantamentos. (Chamando.) Lopes!

LOPES — Pronto!

FRAZÃO (Dando-lhe dinheiro.) — Aí tens. Confere. LOPES — Está certo.

FRAZÃO — Florêncio !

FLORÊNCIO — Pronto! (Todos os artistas, de costas voltadas para o público, formam um círculo em volta da mesa em que está Frazão distribuindo o dinheiro. Entram do fundo, timidamente, dona Rita e Laudelina.)

CENA V

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OS MESMOS, DONA RITA, LAUDELINA

DONA RITA — É a primeira vez que entro nos fundos de uma venda!

LAUDELINA — Tenha paciência, dindinha, é por amor da arte... (A Monteiro, que se aproxima, solícito) Tem a bondade de me dizer se é aqui o escritório da empresa Frazão?

MONTEIRO — Não, minha senhora... isto é o meu estabelecimento, não é escritório de nenhuma empresa.

LAUDELINA — Desculpe.

MONTEIRO — Mas é aqui que o senhor Frazão trata dos seus negócios.

DONA RITA — Ele não está?

MONTEIRO — Está, sim, senhora. Está ali fazendo os adiantamentos aos artistas da companhia que hoje segue para fora. Se quiserem sentar-se e esperar um pouquinho? (Dá-lhes dois bancos; elas sentam-se agradecendo com gestos e sorrisos.) As senhoras querem tomar alguma coisa?

AS DUAS — Muito obrigada.

MONTEIRO (À parte.) — É bem boa...

LAUDELINA — Tenha a bondade de me dizer: aquele ator que ali está vestido de preto não é o Vieira?

MONTEIRO — É, sim, senhora.

DONA RITA — Quê!... aquele cômico tão engraçado... que faz rir tanto!

MONTEIRO — Em cena. Fora de cena, tem uma cara de missa de sétimo dia. Está sempre triste. (Afastando-se à parte.) Bem boa...

LAUDELINA — Como o teatro engana!

DONA RITA — Menina, eu acho melhor irmos para casa. Uma carreira artística que começa nos fundos de uma venda não pode dar bons resultados.

LAUDELINA — Aí vem a senhora! Estamos comprometidas... Fomos ontem à casa do Frazão... já mandamos as nossas bagagens para a estrada de ferro... e ficamos de vir aqui hoje, à uma hora, para recebermos o adiantamento. Agora não podemos recuar.

DONA RITA — Queira Deus que não te arrependas!

LAUDELINA — Nada me poderá suceder. Minha madrinha está a meu lado para proteger-me.

DONA RITA — Tua madrinha! E quem protege ela? Eu também sou uma fraca mulher...

FRAZÃO (Erguendo-se.) — Pronto, meus senhores! J á receberam os adiantamentos e os bilhetes de passagem. Tratem de mandar as suas bagagens para a estação, e às seis horas estejam a postos. O trem parte às seis e meia. TODOS — Sim... sim... Descanse... não haverá novidade, etc.

FRAZÃO — Até lá!

TODOS — Até lá! (Dispõem-se todos a sair.)

FRAZÃO (Vendo Laudelina.) — Ah, cá está ela!

TODOS — Quem?

FRAZÃO — A nossa primeira-dama!

TODOS — Ah!

FRAZÃO (Tomando Laudelina pela mão, apresentando-a aos artistas.)

Canto

— Meus senhores, aqui lhes apresento
Uma nova colega de talento,
Que brilhante carreira principia
E faz parte da nossa companhia!

CORO — Receba, pois, o nosso cumprimento
Esta nova colega de talento,
Que brilhante carreira principia
E faz parte da nova companhia.

LAUDELINA — Não sei como agradeça, na verdade
Tanta amabilidade!

Coplas

I

Sou uma simples curiosa,
Que se quer fazer atriz;
Por não ser pretensiosa,
Eu espero ser feliz.
Tudo ignoro por enquanto
Da bela arte de Talma,
Mas prometo estudar tanto,
Que o povinho enfim dirá:
Elle a quelque...
Quelque chose...
Elle a quelque chose là!

CORO — Elle a queque, etc.

II

LAUDELINA — O que me alenta e consola
Na carreira que me atrai,
É sair da mesma escola
De onde tanto artista sai.
Quanta moça analfabeta
Que não sabe o b, a — bá
Fez-se atriz, atriz completa
E do público ouviu já:
Elle a quelque... etc.

CORO — Elle a quelque... etc.

FRAZÃO — Bom. Agora deixem-me tratar com estas senhoras.

MARGARIDA (Saindo com Vilares.) — A primeira-dama, isto?

ISAURA (A um outro artista.) — É tão feia! Tão desajeitada!

COUTINHO — Já tem a sua idade...

LOPES (A dona Rita.) — E a senhora também é atriz?

DONA RITA — Não, senhor, sou sua madrinha e acompanho ela.

LOPES — Ah!

VIEIRA (Saindo, a Frazão.) — Vou para casa derramar algumas lágrimas no seio da família. Estas ausências matam-me! (Saem todos os artistas da companhia Frazão.)

CENA VI

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MONTEIRO, CAIXEIRO, FÁBIO, BROCHADO, FRAZÃO, DONA RITA, LAUDELINA

FRAZÃO — Então? Prontas?...

LAUDELINA — Prontas.

DONA RITA — Deixei a casa entregue a uma comadre minha e despedi o moleque. As bagagens já foram para a estação.

FRAZÃO — Aqui têm os bilhetes de passagem... e o adiantamento... (Dá-lhes os bilhetes e o dinheiro.)

LAUDELINA — O primeiro dinheiro ganho com o meu trabalho artístico! (Beija-o.)

DONA RITA — E ganho antes de trabalhar!

FRAZÃO — Está satisfeita?

LAUDELINA — Estou. Só levo um aperto no coração.

FRAZÃO — Qual é?

LAUDELINA — É seu Eduardo. Para que hei de mentir? Ele gosta de mim... não sou ingrata...

FRAZÃO — Quem é seu Eduardo?

DONA RITA — É o Luís Fernandes.

FRAZÃO — Ah! o tal que eu chamei arara...

LAUDELINA — Escrevi-lhe despedindo-me dele.

DONA RITA — Coitado! (A Frazão.) Bom, então até o trem!

FRAZÃO — Até o trem!

DONA RITA — Olhe que se minha afilhada for infeliz, não lhe perdôo, seu Frazão! Foi o senhor que desencabeçou ela!

FRAZÃO — Há de ser muito feliz!

AS DUAS — Até logo! (Saem.)

FRAZÃO — Fiquei reduzido a dezoito mil-réis.

CENA VII

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OS MESMOS, menos DONA RITA e LAUDELINA

MONTEIRO — Você é dos diabos! Onde foi desencantar aquela jóia?..

FRAZÃO — Numa sociedade particular.

MONTEIRO — É séria?

FRAZÃO — É, sim, senhor! Não esteja a arregalar os olhos, que aquilo não se faz para os seus beiços!

MONTEIRO — Nem para os seus.

FRAZÃO — Naturalmente. Serei um pai para ela. Sou um empresário moralizado.

MONTEIRO — Com que, então, custou-lhe muito a arranjar o cobre, hein? Andou pelas Paineiras, pelo Cabuçu!...

FRAZÃO — Não andei senão até à Prainha, mas suei o topete! E se o Madureira não me mandar o conto de réis que me prometeu, estou frito. Você bem me podia acudir...

MONTEIRO — É que...

FRAZÃO — Sim, já sei que dessa mata não sai coelho. Benza-o Deus! (Reparando em Brochado e Fábio, que adormeceram defronte um do outro.) Que é aquilo? O Brochado? Não sabia que ele estivesse de volta!

MONTEIRO — Chegou hoje.

FRAZÃO — Já se cansou de impingir monólogos aos paulistas?

MONTEIRO (Examinando contra a luz a garrafa de para ti) —

Adormeceram ambos, depois de esvaziar uma garrafa de parati! (Sacudindo-os.) Eh! lá, acordem...

FRAZÃO — Bom! Vou tratar da vida! (Sai pelo fundo.)

BROCHADO (Sonhando.) — Chorava o arco... chorava o madeiro... tudo chorava...

MONTEIRO — Acordem! (Erguem-se os dois esfregando os olhos.)

BROCHADO — Meu poeta, o seu Trouxa fez-me dormir: não presta!

FÁBIO (Cambaleando.) — Perdão: não foi o Trouxa, foi o parati.

(Forte da orquestra. Mutação.)

Quadro 3

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O corredor da casa de pensão em que mora Frazão. À esquerda, a porta da rua, e, à direita, a cancela com cordão de campainha.

CENA I

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EDUARDO, depois um CRIADO

EDUARDO (Entrando.) — É aqui! É aqui a casa de pensão em que mora esse maldito empresário! Recebi uma carta de Laudelina em que me participava que parte hoje no noturno com a companhia Frazão... Ainda me parece um sonho! Já pedi ao patrão licença e um adiantamento de dois a três meses... Hei de acompanhá-la por toda a parte! Não a deixarei sozinha por montes e vales, exposta sabe Deus a que perigos! Mas antes disso, quero entender-me com este homem, que odeio, porque foi ele quem lhe meteu na cabeça essa loucura! Oh! eu!... (Vai a puxar o cordão da campainha e arrepende-se.) Tenhamos calma... Que vou dizer a esse empresário?... com que direito aqui venho?... É meu coração, meu pobre coração!

Coplas

I

Piedade eu te mereço,
Ó minha doce amada!
Esta alma torturada
Está por teu amor!
As mágoas que eu padeço
São grandes, muito grandes,
Porque nem Luís Fernandes
Amava assim Leonor.

II

Oh! não me bastam cartas!
No teu caminho incerto
De ti quero estar perto,
Ó minha linda flor!
Aonde quer que partas,
Por onde quer que tu andes,
O teu Luís Fernandes
Te seguirá, Leonor!...
Coragem! (Toca a campainha.) Também eu quero fazer parte da companhia Frazão!...

CRIADO (Abrindo a cancela.) — Quem é?

EDUARDO — Mora aqui o ator Frazão?

CRIADO — Sim, senhor.

EDUARDO — Está em casa?

CRIADO — Sim, senhor, e à sua espera! Vou chamá-lo! (Sai.)

CENA II

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EDUARDO, depois FRAZÃO

EDUARDO (Só.) — À minha espera? Isso é que não! À esper a de outro será!

FRAZÃO (Entrando a correr.) — Dê cá, meu amigo, dê cá! Estava pelos cabelos! Já passa das cinco! Dê cá!

EDUARDO — Dê cá o quê!

FRAZÃO (Reparando-o.) — Desculpe... julguei que o senhor fosse portador do conto de réis do Madureira! Um conto que espero com impaciência! Mas se não me engano é o Luís Fernandes, de Catumbi!

EDUARDO — Sim, senhor! É o Luís Fernando, de Catumbi, que vem perguntar: Frazão, que fizeste da morgadinha?

FRAZÃO — A morgadinha parte esta noite comigo no noturno: está na minha companhia.

EDUARDO (Furioso.) — Na sua companhia?

FRAZÃO — Dramática... Na minha companhia dramática... Nada de trocadilhos! Descanse: a morgada vai com ela.

EDUARDO — A morgada não basta: é uma senhora. Eu, que a amo, que a adoro, que desejo que ela, só ela seja mãe dos meus futuros filhos, quero acompanhá-la também, e venho oferecer-me para galã da companhia!

FRAZÃO — Galã? Já tenho o Lopes e estou com a folha muito sobrecarregada.

EDUARDO — Mas eu não quero que o senhor me pague ordenado.

FRAZÃO — Ah! não quer? Por esse preço, convém-me. Pode ir; mas já distribuí todos os bilhetes de passagem.

EDUARDO — Também não quero que me pague a passagem. Peço apenas para fazer parte do elenco.

FRAZÃO — Pois não! E se o senhor me pudesse arranjar, pelo mesmo preço, um pai nobre que me falta...

EDUARDO — Pelo preço contente-se com um galã. E adeus! Vou preparar-me!

FRAZÃO — Adeus! Se encontrar pelo caminho um caixeiro, ou coisa que o valha, com um conto de réis na mão, diga -lhe que venha depressa!

EDUARDO — Bem. (À parte.) Vou com ela! (Sai.)

CENA III

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FRAZÃO, depois o CRIADO

FRAZÃO (Consultando o relógio.) — Cinco e vinte. Se se demora mais dez minutos, já não apanho o trem senão de tílburi! (Chamando) Ó Joaquim! Estou num formigueiro! Que maldade a do Madureira! Prometerme um conto de réis, e faltar à última hora! (Ao Criado, que entra.) Ó Joaquim, vai ali na praça buscar um tílburi! Depressa!

CRIADO — É já! (Sai.)

FRAZÃO (Só.) — E levo esta vida há trinta anos! pedindo hoje... pagando amanhã... tornando a pedir... tomando a pagar... sacando sobre o futuro... contando com o incerto... com a hipótese do ganho... com as alternativas da fortuna... sempre de boa-fé, e sempre receoso de que duvidem de mim, porque sou cômico, e ser cômico, vem condenado de longe... Mas por que persisto?... por que não fujo à tentação de andar com o meu mambembe às costas, afrontando o fado?... Perguntem às mariposas por que se queimam na luz... perguntem aos cães por que não fogem quando avistam ao longe a carrocinha da prefeitura, mas não perguntem a um empresário de teatro por que não é outra coisa senão empresário de teatro... Isto é uma fatalidade a que nos condena o nosso próprio temperamento. O jogador [é] infeliz porque joga? O fraco bebedor, por que bebe?... Também isto é um vício, e um vício terrível porque ninguém como tal o considera, e, portanto, é confessável, não é uma vergonha, é uma profissão... uma profissão... uma profissão que absorve toda a atividade... toda a energia... todas as forças, e para quê?... Qual o resultado de todo este afã? Chegar desamparado e paupérrimo a uma velhice cansada! Aí está o que é ser empresário no Brasil! Mas este conto de réis que não chega!

CRIADO (Entrando.) — O tílburi! Aí está!

FRAZÃO — Falta apenas um quarto de hora para a partida do trem. Vou pôr o chapéu e tomar o tílburi! Entrego-me à sorte, ao deus-dará! (Sai pela direita.)

CENA IV

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O CRIADO, um VELHOTE

CRIADO (Só.) —Coitado do senhor Frazão! Parece que lhe roeram a corda! (Vai saindo.)

VELHOTE (Entrando muito devagar e falando muito descansado.) — Psiu! Ó amigo!

CRIADO — Que é?

VELHOTE — Mora aqui um cômico por nome Frazão?

CRIADO — Mora, sim, senhor. É o senhor que lhe vem trazer um dinheiro?

VELHOTE — Que tem você com isso?

CRIADO — Ele está impaciente à sua espera! São quase horas do trem!

VELHOTE — Ah! Tem pressa! Pois eu não tenho nenhuma.

CRIADO — Vou chamá-lo. (Sai.)

CENA V

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O VELHOTE, depois FRAZÃO

VELHOTE (Só.) — O senhor Madureira faz mal. Emprestar um conto de réis a um cômico! Isto é gentinha a quem não se deve fiar nem um alfinete! Como sou amigo do senhor Madureira, que é um excelente patrão, demorei-me quanto pude no caminho, a ver se o tal Frazão partia sem o dinheiro! Este há de o senhor Madureira ver por um óculo!

FRAZÃO (Entrando de mala na mão e guarda-pó debaixo do braço.) — Então, o dinheiro?

VELHOTE — Cá está! (Tira um maço de notas.) Venha primeiro o recibo!

FRAZÃO —Que recibo, que nada! Mandá-lo-ei pelo correio. (Toma o dinheiro e saí correndo.)

VELHOTE — Venha cá! Venha cá! Quero o recibo! (Sai correndo. Mutação. Música na orquestra até o final do ato.)

Quadro 4

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Na plataforma da Estação Central da Estrada de Ferro.

CENA I

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A COMPANHIA FRAZÃO, amigos, o CHEFE DO TREM, depois FRAZÃO

(Ao erguer do pano, o trem que tem de levar a companhia está prestes a sair. Alguns artistas espiam pelas portinholas, inquietos por não verem chegar Frazão.)

ARTISTAS — O Frazão? O Frazão?

VOZES — Não arranjou o dinheiro!

OUTROS — Que será de nós?

CHEFE DO TREM (Apitando.) Quem tem que embarcar embarca! (Embarca. O trem põe -se em movimento. Entra Frazão a correr.)

ARTISTAS — É ele! Pára! Pára!

FRAZÃO — Pára! (Atira a mala para dentro do trem, pendura-se no [tênder] do último carro dormitório. O trem desaparece, levando Frazão pendurado, enquanto as pessoas que se acham na plataforma riem e aplaudem.)

[(Cai o pano.)]