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O Matuto/VI

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Os negros sobrestiveram espantados.

— É seu filho, seu Francisco? Perguntou Moçambique ao recem-chegado, que não era outrem que Francisco mesmo.

— É meu filho, negro do diabo.

— Então, perdôa, seu moço. Ninguem sabia. Perdôa a Moçambique.

Francisco, sentindo falta de Lourenço, e attrahido pelos primeiros latidos da canzoada, viera dar comsigo no lugar onde a sua benefica intervenção não podia chegar mais opportunamente.

Lourenço estava muito maltratado. Chegando á casa, cahiu de cama para não se levantar sinão depois de um mez. Nos primeiros dias não deram nada pela vida delle.

Este acontecimento, lastimavel por um lado, foi pelo outro providencial, e, para assim escrevermos, accentuou a obra de regeneração em que se empenharam aquellas duas almas que porfiavam para pôr no bom caminho o menino perdido e infeliz.

Preso pelas mordeduras e contusões á cama, Lourenço a quem nunca em Pasmado acontecera desastre que com este se parecesse, teve occasião de fazer irresistivel e fatalmente o juizo do seu procedimento desde o dia em que cahiu na laxidão das ruas, tabernas e ranchos. O senso intimo, até aquele momento obscurecido pela inexperiência e verdor dos annos, começou a reagir contra as camadas que o impediam de lhe mostrar as trilhas do dever e da sã doutrina.

Marcellina, habil e natural educadora, aproveitara-se do ensejo para aconselhar o menino, tomando lições do acontecimento, a não se encaminhar sinão para o trabalho e o bem.

— Que ias tu fazer, Lourenço, quando os cachorros e os negros cahiram sobre ti? Ias perder-te. Deixavas aqui pae e mãe, que olham por ti com amor e doçura; mettias-te por esse matto a dentro com risco de morreres de fome, de doença ou de mordedura de cobra.

— O que eu queria era ganhar o caminho que vai dar em minha terra—respondeu elle. O negro e a negra não me deixaram passar; mas elles hão de pagar-me este desaforo.

— E que ias ver em tua terra? Que foi que ella te deu? Máos exemplos e máos costumes. Que ias tu achar lá? A miseria, o sujo e o desprezo. No fim de contas serias recrutado e acabarias sabe Deus onde, com a farda nas costas.

— Cuida que eu tenho medo de ser soldado? Eu sou forte.

— Isso sei eu.

— E gosto de brigar e combater. Havia de vir uma guerra que eu mostraria para quanto sou.

— Assim que assentasses praça te arrependias logo da asneira feita. Pensas que o soldado tem licença para andar a toda hora por onde quer, como fazias tu antes de Francisco te trazer para o Cajueiro? Estás enganado. O soldado não tem a menor liberdade; é peior do que negro de engenho; não pode dar um passo sem ordem do seu superior. Es uma criança, Lourenço; não sabes ainda o que é o mundo. Accommoda-te com os bons e busca ser um delles. Ajuda-nos a trabalhar e a viver em nosso socego, que o trabalho por pouco que dê á gente, é sempre proveitoso e traz alegria e paz.

Quando se levantou da cama, Lourenço dava mostras de melhorado do genio trefego que foi causa da sua longa doença. Um grande fructo, quando outros se não podessem apontar, tinha produzido o recolhimento forçado do menino: Sahira-lhe de todo do entendimento a idéa de volver ao povoado donde viera. Aos olhos de Marcellina, que aprendeu sem que ninguem lhe ensinasse, a ler nas palavras e na physionomia de quem com ella tratava, os intimos pensamentos e intuitos, nenhum indicio de melhora podia parecer mais favoravel do que este. A fugida de Lourenço a Pasmado era o que ella mais receiava, e para tolher que semelhante desgraça viesse a succeder, ella liberalizava agrados e carinhos ao menino, e com espertos cuidados vigiava sobre elle a toda hora. Nada lhe recusava, mas tambem não o deixava pisar em ramo verde.

A estação veiu em seu auxilio na construcção da grande obra moral que tinha em mãos. Chegou dezembro. O tempo estava enxuto, não obstante se mostrarem os campos borrifados das chuvas-do-cajú, nome que vem a taes chuvas de serem ellas muito favoraveis a esta fructa. As larangeiras novas, que Francisco plantara de um e de outro lado da casa, curvavam-se debaixo do pezo das primicias do estio. Ao longe, para os fins do sitio, viam-se os abacaxis ostentando garbosos, dentre suas touças louçãs, o distinctivo que na ordem vegetal a todos lembrava a insignia civil da realeza.

Era a melhor estação do norte. Pobres, remediados e ricos apercebiam-se, sem excepção, cada qual conforme suas forças o ajudavam, para a festa do natal, época de folganças e divertimentos no campo, á sombra das arvores e dos rusticos alpendres.

Em toda a vasta zona assucareira da provincia os engenhos começavam a tirar sua safra; o que ficava do outro lado da mata, que sabemos—o engenho Bujary—tinha de botar dentro de uma semana.

O dia da botada não tem igual, pelo reboliço, que o caracteriza, na grande propriedade.

Ajuntam-se parentes, amigos e conhecidos para acompanharem o proprietario na sua alegria, e participarem das suas larguezas.

Francisco, a cujos bons sentimentos e qualidades devia o lugar que tinha diante do senhor do engenho, achou-se presente com Lourenço á festa rural, que offerecia ao menino novo e indizivel encanto.

Não obstante ser quasi nomada na povoação, nunca dahi sahiu este para assistir a festas semelhantes nos engenhos da freguezia pela distancia em que ficavam do lugar. De sorte que, penetrando agora com Francisco no engenho Bujary, experimentou desconhecido prazer.

Um padre veiu de proposito para dizer missa na capella e benzer a nova moenda, que se achava adornada com ramos verdes, lembrança e fineza dos negros. Depois da bençam, entregou elle ao senhor do engenho a primeira canna, que devia ser moida aquelle anno. O sargento-mór metteu-a entre os eixos da moenda, os negros açoitaram as bestas, levantaram hurrahs e vivas, varios moradores e convidados dispararam armas de fogo em signal de regozijo, enfim encetou-se a moagem.

Lourenço ficou ao principio admirado, perplexo perante aquelles acontecimentos inteiramente novos para elle; dahi a pouco, porém, já lhe faltou o tempo para beber do caldo de canna ainda quente, e mais tarde comer do mel-de-engenho sahido da tacha, subir á almanjarra e açoitar os animaes de companhia com os molecotes mais espertos.

Moços e moças formosas e elegantes, que tinham ido de Goyanna á festa, faziam agradaveis digressões pelos campos e oiteiros proximos da propriedade. Alguns jovens pescavam no açude, emquanto outros se mettiam pelos matos a colher cajús e a passarinhar.

Lourenço ouviu de noite, de sobre as palhas da canna onde se deitara ao luar, de fronte da casa-da-moenda, melancolicas e saudosas harmonias, que lançavam echos suavissimos em sua alma.

Eram as toadas com que os negros respondiam da porta da senzala, de cima da bagaceira, da almanjarra, do pateo da casa-de-purgar aos regozijos da casa-de-vivenda, onde os toques resoavam desacompanhados das altercações, a que dá lugar o demonio do jogo, então bem menos conhecido do que hoje do fazendeiro nortista.

Parece que se prepara grande guerra á canna-de-assucar no norte. Para levar a effeito este pensamento—o da destruição da planta abençoada, servem-se do de cultivar com largueza o café no interior das provincias onde até o presente se cultivou largamente a canna.

Não me leves a mal uma declaração que farei aqui, tocante á projectada revolução agricola.

Entristeço-me, meu amigo, a qualquer indicio de que á cultura da canna se trata de substituir cultura de planta diferente, seja muito embora esta da estatura e importancia do café ao qual desde pequeno me acostumei a votar grandes affeições. A razão é porque a canna-de-assucar me inspira intima e saudavel paixão, que não sei explicar, mas que tem em mim a extensão e a amplitude de uma elevada e pura estima. A meus olhos, ella não é uma planta, é um ente magico, e pittoresco. Vejo nela poesia e grandeza que irresistivelmente me levam a tributar-lhe culto do coração. Causam-me profundas alegrias seus bastos ajuntamentos, seus partidos virentes, acamados, com suas folhas, ora encurvadas, ora destendidas ao sopro dos ventos irados ou brincões. Essas folhas são como harpas giganteas, melancolicas, ternissimas, que as virações fazem vibrar docemente e que despedem harmonias eolias.

A vista da moagem produz em mim gratas alterações, e traz-me saudades da infancia, recordações veneráveis dos tempos felizes em que levando a vida entre a villa e os engenhos, entre a casa paterna e os paineis que a natureza expõe gratuitamente aos que para ella tem os seus principaes affectos e a sua primeira admiração, meu espirito adejava, como os sanhassús e os bem-tevis por sobre as folhagens, mergulhado alternativamente já em luzes, já em sombras, mas sempre enleado e passado de innocente contentamento.

Para o homem do norte o engenho de assucar é o representante de immemoriaes e gloriosas tradições. Especialmente o pernambucano nasce vendo com amigos olhos aquellas grandes propriedades que são como os seus castellos feudaes. O engenho é o solar do norte. A nobreza do paiz principiou por elle; não conheceu outro solar. Elle figura nas maiores paginas da historia daquella parte do vasto imperio. Sua importância é lendaria, historica e santa.

E querem agora que á canna-de-assucar se substitua o café! Promovem a extinção do giganteo elemento que produziu e perpetuou fortunas respeitaveis naquella grande região!

Aperfeiçoar os processos de cultura dessa planta illustre, a que Pernambuco deve brilho e grandeza imorredoura é digno do progresso. O direito sinão o dever de melhorar as condições da agricultura, do commercio, das industrias, está acima de toda duvida; mas supprimir um genero de cultura que tem por si a consagração de muitos seculos e elevou muitas gerações e opulentou a provincia, não me parece nem justo, nem acertado, nem economico.

Voz secreta e consoladora, dissipando os meus temores, segreda-me que tú, ó planta benfazeja—estandarte da independencia e da riqueza do pernambucano, seja qual fôr a conspiração tramada contra ti, não has de desapparecer das nossas planicies, dos nossos oiteiros, dos nossos valles e encostas, por onde estendes ha tres seculos tua folhagem hospitaleira.

A botada tendo cahido em um sabbado, ficou Francisco com o menino para passar o domingo.

De manhã muito cedinho, Lourenço achou-se de pé, contentando a vista no movimento que lhe offerecia a novidade. Não se fartava de ver os negros passar com feixes de lenha e de bagaço para alentarem o fogo da fornalha. Ia e vinha com elles, fazia-lhes perguntas sobre differentes coisas que observava, mas não comprehendia. Recebia as explicações com visivel prazer.

Notando que voltava aos partidos a buscar novos feixes de cannas, um carro que acabava de ser descarregado á porta do engenho, Lourenço saltou sobre a meza delle e deixou-se conduzir aos cannaviaes de assucar, coisa que para bem dizermos, só conhecia de nome.

Quando suas vistas adejaram por sobre aquelle mundo de verdura, experimentou sua alma indizível impressão de contentamento.

Eis o que o menino viu.

Formando um cordão os negros estavam alli a cortar com afiadas foicinhas de mão as cannas que outros iam despojando das folhas e atirando no campo, assim privadas da sua verde plumagem. Grandes pilhas dellas mostravam-se do meio do immenso tapete de folhas. As hastes, pouco antes graciosas, estavam agora nuas e sem elegancia. Sua formosa roupagem cobria o seu leito de morte.

Na vespera tinha sido distribuido aos negros fato novo, que elles traziam ainda sobre o corpo, visto que a festa emendara com o domingo. Com suas ceroulas e calças azues, seus chapéos de palha de pindoba, tão novos como a roupa, figuravam elles uma linha de soldados que derribava matos para assaltar fortificações inimigas.

Levando os olhos ao lado opposto ao de que vinha o córte, o menino só descobriu ahi estendido mares de folhas ondulantes. Eram os cannaviaes novos, que agitavam seus pannos de verdura ao sabor das virações campesinas.

Lourenço voltou do engenho perdido por elle. A festa tornára-o expansivo e contador de historias. Tudo o que com elle se passara, e o que vira, foi referido circumstanciadamente a Marcellina, não esquecendo o menino nem as quedas-de-corpo que pegára com outros meninos na bagaceira.

— Si meu pai tivesse um engenho, a coisa havia de ser outra—dizia ele de quando em quando no curso da narração.

— E porque não ha de ter? inquiriu Marcellina. Si tu nos ajudares, no fim de alguns annos poderemos comprar uma engenhoca, ou ao menos um torcedor. Do torcedor vai-se á engenhoca, e da engenhoca ao engenho. Tu bem vês que todos nós trabalhamos. Onde está Francisco? Foi à vila vender abacaxis. Eu, como vês, estou fazendo minhas esteiras para elle levar a quem as encommendou aqui adiante na encruzilhada. Só tu não trabalhas ainda. E queres um engenho! Sem trabalhares não has de ter nem de comer nem de vestir, quanto mais engenho.

Pensando comsigo só, Lourenço levantou-se sem dizer palavra, deu volta pelo sitio, e tornou á salinha da casa, que era a officina de Marcellina. Esta o vio arrastar um tamborete para junto della e uma rodilha de cipós para junto de si. Sentando-se no tamborete o menino cortou os cipós pelo modo e medida que Marcellina lhe ensinou, e eil-o a trabalhar pela primeira vez depois da sua chegada ao Cajueiro.

Vendo-o exercitar tão bem a sua actividade espontaneamente como tocado de celeste inspiração, Marcellina não pôde suster as lagrimas. Lourenço, a seus olhos, acabava de dar testemunho de emenda, resultado da constancia e paciencia com que ella o dirigia para o bem desde o dia de sua chegada.

Estava de feito alli uma conquista do seu esforço abençoado por Deus, inquebrantavel esteio dos crentes.