O Matuto/VII
Uma manhã encaminhou-se Lourenço á mata, armado com um facão afim de cortar sambaquís de que precisava para umas gaiolas, que lhe tinham encommendado. Este serviço elle o costumava realizar nas horas vagas.
Trabalhar já era uma lei de seu espirito. Adquirir meios de comprar um engenho foi idéa que nunca mais o abandonou, antes constituiu a sua primeira e mais forte ambição. Por isso não perdia tempo, ou antes Marcellina o não deixava perder.
Tinham já passado muitos mezes depois dos primeiros acontecimentos referidos nos capitulos anteriores. Colocado em novo centro e sujeito a novas leis, Lourenço avançava admiravelmente na requesta do bem, despertando cada dia em seus pais, por seu procedimento, novas esperanças e sendo para elles origem de ineffaveis satisfações.
A transformação era obra das mãos delles, na qual se reviam não sem justo orgulho, como na fonte limpa, outr'ora charco, se revê o que lhe tirou as immundicies.
Por isso Lourenço era já, não sómente estimado mas acariciado pelos dois consortes que o consideravam o futuro esteio da casa, de seu natural fraca, o amigo e protector delles, quando velhos, de seu natural forte.
A esse tempo não era a habitação de Francisco a unica existente na estrada do Cajueiro. Obra de tresentas braças para o sul via-se outra de melhor parecer, de paredes de pedra e coberta de telha. Pertencia a um padre que, tendo por alli aparecido não se sabia como nem porque, fôra convidado pelo sargento-mór João da Cunha para capellão do engenho. O padre Antonio escolheu aquelle local para sua residencia, desprezando uma boa morada que o senhor do engenho possuia dentro do cercado, e até a residencia que lhe ofereceu na propria casa grande. Escolhido o local e feito o predio, o padre chegou-se a João da Cunha e lhe disse que de ha muito cumpria o voto de só morar em propriedade que fosse sua, e por isso lhe pedia declarasse por quanto vendia, com os respectivos terrenos, a casa feita. O sargento-mór, que achára aquillo singular, e enxergára no ato innocente do padre um assomo de independencia e altivez, não querendo por vaidade propria da nobreza daquelles tempos ficar por baixo, declarou que lhe dava de mão beijada casa e terrenos, e disso se lavrou termo.
O novo vizinho foi recebido com alvoroço pela familia do Cajueiro. Quem era que por então não tinha em alta estima o sacerdote da religião santa do Crucificado?
Francisco, saltando de contente, para me servir da phrase do povo, dizia a Marcellina que dava mostras de sentir dobrado prazer com a nova vizinhança.
— Bemdita foi a hora em que abri meu sitio nesta estrada. Olhe lá como o Cajueiro está honrado. E d'aqui a pouco já não haverá quem não queira vir levantar sua casa aqui por perto. Basta saber-se que o capellão de Bujary quiz antes morar no Cajueiro do que no engenho, para todo o povo correr para este ponto.
— É verdade, Francisco, é verdade, respondeu Marcellina. Temos agora bem perto de nós quem nos confesse e unja em caso de morte, o que Deus tal não permitta.
— E que gloria tenho eu de se dizer que fui eu que fundei o Cajueiro! acrescentou o matuto. Si elle não prestasse, não havia de querer morar nelle o capellão do engenho. O que eu quero é que a todo tempo se saiba que fui o primeiro morador deste lugar. Seu padre Antonio já me fez esta justiça. Ainda hontem elle virou-se para mim, quando fui lá vêl-o, em sua casa nova e me disse que eu que tenho olho para conhecer lugar de bôa moradia.
Por muito tempo levaram os moradores velhos a praticar neste sentido do novo morador. Da casa passaram ao homem physico, e do homem physico ao homem moral. Nada disseram delle na ausencia que não pudesse ser dito na presença. Ainda hoje a maledicencia não é qualidade característica do povo; naquelles tempos ainda o era menos.
O que Francisco disse do padre foi que sua pallidez e sua magreza indicavam que elle perdia noites de somno no serviço de Deus; Marcellina acrescentou que seus olhos pardos e como quebrados, seus sorrisos tristes, suas palavras simples revelavam consciencia limpa, desprezo pelo mundo e bondade de coração. Francisco ajuntou que já uma vez em Olinda tinha visto um frade com o qual muito se parecia o padre Antonio, por sua estatura média, a cabeça grande, a testa larga, o rosto comprido, as faces descarnadas. Emfim Marcellina, recordando-se de uma novena na igreja do Senhor-dos-martyrios, disse que a voz fraca e branda do sacerdote que fez ahi uma pratica ao povo, era a mesma do padre Antonio.
Nem o marido nem a mulher andavam longe da verdade. O padre Antonio tinha sido frade, e foi provavelmente no tempo em que ainda o era, que se encontrou com elle o matuto. Um anno depois de secularizado, de passagem para Parahyba, aposentou-se no convento do Carmo em Goyanna, aonde o foi convidar para dirigir a novena dos Martyrios um negociante que o conhecia quando elle pertencia á recoleta do Recife. É natural que ahi o tivesse ouvido Marcellina.
Elles não estavam tambem longe da verdade no tocante ao moral do padre Antonio. Grande era a sua humildade, publica a sua piedade, notoria a sua benevolencia, de que todos davam noticia no Recife, em Olinda, e na Parahyba, donde viera para Goyanna, fazia poucos mezes. Com serem frades, gente de seu natural maldizente—estes sim—, os do Carmo de Goyanna que o conheciam, nada contavam delle que o desabonasse. Só um delles—vejam o que são frades—explicava a secularização do padre Antonio dizendo que, realizando-a, não o fizera elle com outro fim que o de desimpossibilitar-se para herdar muitos mil cruzados de uma tia solteirona que lhe votava grande affeição. O certo é que a tia morreu, e o padre foi o unico herdeiro da fortuna deixada.
O que o padre Antonio era, quaes os seus sentimentos e dotes naturaes, sua piedade, seu intimo ver-se-ha melhor pela presente narrativa.
Lourenço sentiu inclinarem-se para o sacerdote os seus affectos, e teve por elle instinctivo respeito. Por sua vez o padre Antonio, que parecia saber já a historia do rapaz, não perdia occasião de o encaminhar para a honestidade e a virtude com a satisfação que enche o coração do varão recto quando se lhe depara a quem beneficiar.
Lourenço parecia tão mudado, seus sentimentos eram tão differentes dos que trouxera da povoação para a estrada, que difficilmente o padre Antonio acreditou tivessem sido praticadas pelo rapaz as feias acções attribuidas ao menino.
— Como è possível que a gente se transforme de semelhante modo? Dizia elle uma vez a Francisco. Ainda si tivesse recebido depois desses desatinos saudavel educação....
— Pois é o que digo a seu padre—respondeu o matuto. Lourenço parecia ter o inimigo no couro. Eu nunca vi menino tão endiabrado. Agora, quanto a ensino, o que elle recebeu foi o que lhe deu minha companheira; e parece que não foi máo, porque o rapaz já está outro.
— Bom ensino foi o que lhe deu tua mulher, Francisco. As mulheres são muito proprias para isso. Quando ellas querem, ninguem tem melhores meios de endireitar as voltas de uma indole torta e defeituosa.
— Dahi a pouco, o padre como si tivera um pensamento subito, uma resolução heroica, acrescentou:
— Quero prestar a vocês um serviço, que não é preciso me agradeçam, visto que tenho o dever de proceder assim. Quero completar a obra que levaram tão adiante. Vou ensinar a Lourenço as primeiras lettras. Lourenço, que já está bom, ficará melhor. Que dizes?
— Oh, seu padre! retorquiu o matuto, cujo semblante pareceu illuminar-se do reflexo de prazer que lhe vinha do intrinseco da alma. Não tenho expressões para agradecer a vosmicê tamanho beneficio. Quem me dera ver meu filho lendo carta-de-nomes. Eu já me contentava com isso só, porque quem lê carta-de-nomes, pode chegar a lêr um livro e escrever umas regras no papel.
— Deixa o rapaz, por minha conta, Francisco. Hei de ensinar-lhe a lêr e a escrever. Não é preciso que te mostres desde já tão agradecido por um serviço que ainda não fiz, e que, si grande valor deve ter para quem o recebe, nada custa a quem o faz; antes é seu dever prestal-o. Vai para tua casa e dize lá a tua mulher que todos os dias logo cedo—comecemos segunda-feira—mande cá o rapaz a passar comigo algumas horas. Não é preciso mais.
— Seu padre...seu padre... Deus é que lhe ha de pagar esta obra de caridade.
No dia aprazado, antes do menino entrar na casa do padre para receber a primeira lição, já Marcellina tinha levado pessoalmente umas macaxeiras, uma gallinha gorda e duas duzias de ovos para almoço do illustre vizinho, e jurado, com a eloquencia dos sorrisos e das lagrimas simultaneamente, gratidão eterna e infinita áquelle que se mostrava tão bom e generoso para a obscura creatura.
— Para que isto, Marcellina? inquiriu o padre, quando ella lhe fez entrega do presente. Eu ensino de graça e não por paga. Fica sabendo que ainda sem os teus mimos, hei de fazer este serviço ao pequeno. É obra de misericordia ensinar os ignorantes. Além disso, pelo meu sagrado ministerio, tenho obrigação rigorosa de lançar nas trévas do espirito infantil a pouca luz que tiver a meu alcance. Olha. Diz-me o coração que Lourenço ainda ha de ser almotacê em Goyanna.
— Deus o queira, seu padre, Deus o queira.
— E porque não ha de querer? Lourenço já está bom. Hoje já é merecedor das bençãos do céu, e da protecção dos homens de bem.
O que Lourenço pôz por obra na manhã supramencionada viu desmentir este conceito e palavras de seu mestre.
Tendo vagado durante algum tempo em busca de sambaquis, por dentro da mata, foi elle dar em uma trilha que lhe era ainda desconhecida. Tomou por ella, e, quando menos pensava, deu comsigo em um cajueiral que se perdia de vista. De um lado apparecia uma casa de palha, e por entre o arvorêdo, em parte bastantemente destruido pelos machados dos lenheiros, foi descobrindo immensos socavões, de alguns dos quaes sahiam ainda novellões de fumo negro. O rapaz reconheceu que se achava nas carvoeiras onde tempos atraz lhe tinham ido tão mal as coisas.
De proposito, e por incessantes recommendações de Marcellina, elle tinha, desde essa fatal noite evitado digressões por aquelle lugar, tão rico de bellas paysagens e frescos e apraziveis ermos. Agora, porém, inesperada e involuntariamente achava-se de novo alli. Lembrou-lhe incontinente o que ahi se passara; pareceu-lhe ouvir a matinada dos cães, e sentir nas carnes os dentes delles e o jagunço dos negros.
— Elles levaram a sua avante—disse instinctivamente comsigo mesmo—porque eu estava desarmado. Si nos encontrassemos agora, a coisa havia de ser outra muito differente. Já sou homem, e trago o meu facão, que está bem amolado. Eu havia de tirar a minha desforra.
Pincel fatal ou fatidico avivava em sua imaginação a cada passo, que dava o rapaz, as scenas do sanguinolento episodio, que parecia de todo apagado de sua memoria. Immediatamente os ferozes instinctos de outr'ora resurgiram violentamente como linguas de serpente ou de fogo em seu cerebro, exigindo prompta vingança.
Sem mais reflectir, Lourenço botou-se para a palhoça. Achou-a sem gente. Mas havia criação pelo terreiro, e debaixo do pequeno alpendre viu elle vasilhas de serviço diario, signal de que os negros ainda alli residiam.
Quando estava a olhar para uma banda e para outra, a ver si dava com algum dos antigos conhecidos, descobrio ao longe um vulto acocorado á beira de uma das covas que apareciam no vasto taboleiro de areia.
Encaminhou-se para ahi, saboreando com antecipada sofreguidão o prazer da projectada vingança.