O Matuto/XIX
Passado um momento perguntou o ajudante-de-tenente ao matuto:
— Poderemos saber quem é você, camarada?
— Chamo-me Francisco dos Prazeres, e sou morador do engenho Bujary.
— A quem pertence esse engenho?
— A seu sargento-mór João da Cunha.
— Sei quem é.
— Havemos de passar por dentro mesmo do engenho. Vou deixar vosmecês em Goyanna, e volto ao Cajueiro, onde tenho minha familia. Ha mais de mez não sei della, nem nova, nem mandado. Quem sabe o que não terá acontecido a minha mulher e a meu filho durante a minha ausencia?
— Você vai encontrar todos em paz.
— E si não encontrar, o Tunda-Cumbe é quem me hade pagar. Eu nunca matei ninguem. Trago uma faca de ponta aqui no cós para me defender. Mas si o diabo do pé-de-chumbo tiver feito alguma das suas a gente que me pertença, não pregarei olhos emquanto não lhe pregar primeiro a faca na barriga. Hei de tirar-lhe o couro como se faz aos bodes para secar e delle fazer suador do meu cavallo.
Quando chegaram ao engenho Itapirema, em cuja capella estivera occulto em outubro do anno anterior para escapar á prisão ordenada pelo governador Castro Caldas, o ouvidor de Olinda dr. José Ignácio de Arouche, era quasi noite. O rio tinha tomado muita agua e estava de nado.
— Como hade ser isso agora? perguntou Gil, pondo os olhos naquelle mar d'agua, que se estorcia por baixo de galerias de folhagens, estrepitoso e medonho. Para atravessarmos esta immensidade agora de noite, corremos o risco de perder algum companheiro. É entretanto necessario passarmos hoje mesmo da outra banda; porque, antes que a alva esclareça, devemos achar-nos na villa. Aliás poderemos chegar já fóra de tempo.
— Eu já sei porque é esta pressa toda, disse Francisco.
— Porque é?
— É porque em Goyanna se receia que da Parahyba passe a gente promettida aos mascates pelo capitão-mór. Eu de tudo sei, seu commandante.
— Mas então vê lá si nos dás remedio a isto.
— Porque não havemos de passar já? respondeu Francisco, saltando do cavallo á beira do rio, onde a tropa fora obrigada a fazer alto. Ha aqui um ponto onde o Itapirema dá váo. Mas está tudo encoberto e não se póde saber onde fica a trilha.
Quasi meia hora gastou elle em procurar, sempre de balde, a occulta passagem. Com agua, ora pela cintura, ora pelos peitos, ora pela bocca, percorreu uma extensão de cerca de vinte braças ao longo da margem. De uma vez cahiu dentro de um poço, de que só se salvou por ser forte nadador.
Estava já quasi de todo escuro quando, exhausto do muito lutar com o impetuoso elemento, que puchava com extrema velocidade lhe pareceu ter dado com o váo desejado, que elle proprio já perdera a esperança de achar.
Veiu á terra, muniu-se de um facão, e atirou-se novamente a nado para o meio do rio. Distante da margem cerca de seis braças, um mulunguzeiro, cujo tronco o impeto da corrente retorcera e cuja folhagem redemoinhava açoitada pelos novellões revoltos, foi o ponto negro para onde se dirigiu o matuto. Em torno da arvore desacompanhada as aguas fremiam vertiginosas, accusando de baixo dellas abysmo insondavel.
— Eh, meu negro! Exclamou Francisco, dirigindo-se ao rio. Estás assobiando e gemendo? Não vês aqui o teu amigo, famanaz do Cajueiro? Deixa as tuas raivas para outros. Eu sou teu antigo conhecido. Faz-te de cêra, coração.
Assim gracejando, deixou-se o matuto levar pela força da corrente, e quando á claridade duvidosa do crepúsculo pareceu a todos os que da margem tinham os olhos postos nelle, inevitável a sua perda, o matuto barafustou na folhagem retorcida e apagou-se um momento da vista dos presentes.
— Morreu!
— Afogou-se.
Taes foram as vozes que partiram de differentes boccas.
Súbito ouviu-se bater o facão sobre os galhos superiores do mulunguzeiro. Ninguem viu mais Francisco, mas todos ouviram o rumor dos golpes da pesada arma, movida por sua mão possante contra o athleta vegetal que o Itapirema trabalhava por engolir. Não se demorou muito que os golpes cessaram e uma sombra negra, passando rapida, vertiginosa, como nuvem phantastica, aos olhos da tropa, sumiu-se no turbilhão. Era a ramagem do mulunguzeiro que fugia, deixando apparecer núa, escalavrada, á cima da superficie do rio a parte superior da arvore, e no cimo desta o destemido matuto.
Mas não estava completo o serviço. Francisco veiu outra vez á terra, e tendo tirado um fuzil do saco vazio que pendia do cabeçote da cangalha, encaminhou-se para uma macahybeira que a alguns passos apparecia solitaria. Umas folhas seccas, que a tempestade tinha abatido ahi foram apanhadas pelo intrepido matuto, e com ellas improvisou elle um facho.
Então, voltando-se para a tropa, disse:
— Vamos passar o rio. Eu vou na frente, feito guia. Com o homem ninguem póde, commandante. É o bicho mais valente que eu conheço. Qual cobra, nem onça, nem rio, nem raio! Quando o homem é homem, fique certo que vence pedras, agua, o proprio fogo.
E metteu-se immediatamente no liquido elemento.
Quem souber o que é um rio cheio, nos caminhos do norte, especialmente o Itapirema, que pelo inverno costumava arrebatar e ainda arrebata ás vezes algumas vidas ajuizará da coragem de Francisco e do serviço que prestava. O rio roncava e estorcia-se ainda irritado e ameaçador. Mas a furia que causava horror a quem um momento atraz levára a vista ao mulunguzeiro, essa, com a ausencia da folhagem, tinha diminuido, deixando que as aguas corressem mais livremente e menos arrebatadas que antes.
Levaram talvez um quarto de hora a romper o vasto mar, ora em linha reta na direcção do norte, ora contornando cotovellos de terra firme.
De repente uma luzinha appareceu como santelmo, na margem fronteira. Era o lume da casinha de um morador do engenho.
— Estamos da outra banda, minha gente. Ali está a casa do Manoel Felix, onde poderemos tomar algum trago. Acho-me todo resfriado.
Quando pizaram terra, Gil Ribeiro, aproximando-se de Francisco, dirigiu-lhes estas palavras:
— Obrigado, camarada. Você nos prestou um serviço que não tem preço.
— Ora qual, seu commandante. Eu tambem estou doido por ver a minha gente.
A noite estava fria, mas clara. A solidão era profunda, e o mato, onde como fogos fatuos, luziam interpolladamente os pyrilampos, soturno e medonho.
Mas por entre arvores ramalhudas, moitas bastas, barreiras nuas, mostrava-se a estrada a todas as vistas, figurando o leito arenosos de um riacho que seccara.
O dia vinha rompendo, quando descobriram a massa sombria da mata de Bujary. O Cajueiro estava a menos de cem braças, occulto por um cotovello que formava a estrada.
Sentindo o coração pular-lhe de contente, Francisco virou-se para Gil:
— Seu commandante, vossa senhoria dá licença que eu vá adiante acordar minha mulher e meu filho? Estou que não posso me conter.
— Póde ir, meu bom companheiro. Corra já. É natural a sua impaciencia.
— A nossa casinha fica ali adiante, na beira do caminho, á direita, continuou Francisco. A que fica a esquerda é a de seu padre Antonio. Até logo, seu commandante.
Francisco esporeou o castanho, que não obstante vir cahindo de fome e enfado se empinou ainda debaixo das pernas do senhor naturalmente por ter sentido o cheiro da manjedoura de casa, e contornando o cotovello da estrada, desappareceu quasi de repente da vista dos que ficavam atraz.
— Estou captivo deste matuto, disse Gil, voltando-se para os companheiros.
— Este profundo amor da familia, commandante, é um dos dotes naturaes do nosso almocreve, disse Felippe Bandeira.
— Bem sei. Em minha longa vida poucos tenho encontrado que desmintam este modelo. Mas o que acho especial em Francisco é o desembaraço, a graça, a franqueza que põe em suas palavras e acções.
— É verdade, disse o alferes Teixeira. Quasi sempre os matutos se tornam bisonhos, quando se acham com pessoas a quem devem respeito.
— Si tivesse meios era capaz de obsequiar-nos com um lauto banquete.
— Assim parece. Mas... que vem a ser aquillo, commandante? perguntou Felippe Bandeira, apontando para frente.
Tinham dado a volta do caminho e entravam no Cajueiro. A casa do padre Antonio appareceu logo aos olhos de todos, á esquerda, como dissera Francisco; mas no ponto onde se devia mostrar a casa deste, o que elles viram foi um montão de cinzas, de que se levantavam ainda fumo e restos de chamma por entre algumas parêdes, esburacadas e enegrecidas.
— O cavallo castanho, entregue de todo á fome que trazia, devorava, sem cavalleiro, a grama verde, que guarnecia a estrada.
— Grande desgraça houve por aqui! exclamou Gil.
E atirou-se para diante da tropa e com pouco chegou ao pé das ruínas fumegantes.
— Francisco? Francisco? Chamou elle, sem poder dominar a sua commoção. Que foi isto, meu amigo?
O matuto, quasi a queimar-se nos barrotes e caibros que ainda ardiam por entre o barro cahido das paredes, revolvia com um ferro de cova, semelhando visão phantastica, os páos e a terra abrazada. Ouvindo a voz de Gil, respondeu:
— Estou desgraçado, seu commandante. Puseram-me fogo na casa, como vê. Mas o que me aterra é pensar que podem estar debaixo destes torrões minha mulher e meu filho queimados!
— Não ha de ser assim, Francisco.
— Marcellina! Lourenço! exclamava de momento a momento o matuto, cavando e revolvendo sempre os entulhos eriçados de lascas, algumas flammejantes, muitas reduzidas a carvão. Ninguem me responde, commandante. Morreram todos! Morreram! Estou sem mulher, sem filho, sem casa. Só me deixaram a miseria e o luto.
As feições do matuto mostravam-se desfiguradas. Por cima de suas faces de quarenta annos, que ha pouco pareciam de trinta, porque as refrescava o reflexo do jubilo intimo, obra da esperança que lhe assegurava veria elle com brevidade os entes predilectos de sua alma, escorriam agora lagrimas lentas, e nellas se lia, em vez do prazer, a dor, a aflição, o desespero. Foi facil a todos os circumstantes conhecer a subita mudança, porque a esse momento o dia estava claro, e a aurora illuminava o céo e a terra com reflexos que nenhum pintor pôde ainda reproduzir na téla.
Gil, sentindo a gravidade daquella crise, correu ao matuto, lançou-lhe os braços sobre os hombros, e disse-lhe em face:
— Então, que é isso, Francisco? Estás a chamar a todo instante por teu filho e tua mulher? Não vês que não podem estar aqui?
— Mas então onde estão elles, commandante? Na casa do padre Antonio não ha ninguem. Já cansei de bater na porta. Ninguem me falou de dentro. Oh! meu Deus! Por aqui andou de certo o Tunda-Cumbe. Malvado! Malvado! Tu me pagarás.
— Isto, sim, disse Gil, conhecendo que a loucura um momento imminente ia fugindo, espancada pelo sentimento da vingança, que acordára emfim, para salval-o, no coração do matuto. Havemos de vingar-nos desses perversos, que queimam as casas pacificas e levantam ranchos para novos salteadores. Não percamos tempo. Salta no teu cavallo. Quem sabe o que não estarão praticando a esta hora na villa os infames bandoleiros. Vamos, Francisco. Quero-te a meu lado.
O matuto saltou sobre o castanho. Tinha os olhos e as faces em fôgo. Na respiração sentia calor de fornalha. Da mão, em vez do chiqueirador de buranhêm que trazia, pendia agora uma catana fóra da bainha.
Mas de momento a momento ia repetindo, como de si para si:
— Lourenço, Marcellina, que terá sido de vocês? Ó coração, tu estás a annunciar-me uma desgraça sem nome. Deus se lembre de mim, Deus se lembre de mim.