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O Matuto/XVI

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Lauriano tinh sua tenda na rua do Rosario, perto da loja de Antonio Coelho. Era, como quasi todos os sapateiros, paroleiro, indagador da vida alheia, e por isso sabedor de muita particularidade e segredo intimo. Seus frequentadores não tinham nem podiam ter para elle reservas.

Na dita tenda ajuntava-se o povo baixo da villa, que o vinho e o cobre do famoso mercador, por interesseira generosidade delle, faziam sympathizar com a causa dos mascates. Para esta gente estava ella nas mesmas condições que a botica do Rogoberto para o rábula, o meirinho e outros sujeitos de igual estofa. Era o club permanente da plebe. Ahi se discutiam com vehemencia e largueza os negocios da amiga e da inimiga parcialidade. Não raras vezes, no estreito recinto desse singular parlamento, resolveram-se offensas e defezas da maxima importancia. O official de pedreiro, o servente de obras, o aprendiz e o official de outros officios, vinham deixar na tenda as noticias que colhiam nas ruas, e dahi levavam as que os outros, seus iguaes, tinham trazido para o ignobil commercio em que eram praticos.

O Tunda-Cumbe fazia parte deste congresso illicito. Então as repugnancias reciprocas entre os portuguezes e os homens de côr do paiz não estavam tão affirmadas como depois vieram a ficar. Eram ainda de fresca data os grandes exemplos da fraternidade que em conjuncturas gravissimas ligára raças estrangeiras com raças e castas nacionaes; aquellas representadas por João Fernandes Vieira e outros, estas por Filippe Camarão, Henrique Dias e tantos indios, mulatos e pretos que deixaram illustres nomes insculpidos nas paginas da historia e glorificados pela tradição. Não é pois de admirar que, vendido o seu peixe na villa, fosse o Tunda-Cumbe, não por obrigação mas por devoção, tirar a ferrugem da lingua na tenda do Lauriano, onde se reuniam outros mascates da sua laia.

Na antevespera de S. João o Tunda-Cumbe tinha estado com o sapateiro e lhe havia dito que iria divertir-se a noite seguinte em casa do Victorino. Em conversa familiar já revelára tempos antes as suas inclinações por Bernardina.

«Em toda esta redondeza por onde ando, disséra o vendedor de peixes ao de sapatos, não conheço rapariga que tanto tenha bolido com o meu sentimento como a filha do Victorino.»

O tendeiro, que com os defeitos próprios da sua condição, trazia alliado o de instigador das ruins paixões, tantas coisas lhe metteu na cabeça, que o mascate sahiu dalli cheio da falsa idéa de que ninguem melhor do que elle tinha direito á posse da rapariga.

Aquella manhã Antonio Coelho, passando pela porta de Lauriano, perguntara pelo Tunda-Cumbe. Respondera-lhe o tendeiro que lhe seria facil encontrar-se com o peixeiro á noite em um ponto, que sabia; e, como farejou negocio importante, offereceu-se para transmittir-lhe o recado que o mercador quizesse dar. Este contentou-se com lhe pedir que dissesse, de sua parte, ao Tunda-Cumbe que viesse fallar com elle impreterivelmente em sua casa aquella noite. Tunda-Cumbe, não obstante ter grandes desejos de não deixar o samba sinão depois de ausentes todos os convivas, correu sem demora á villa, calculando que de semelhante chamado só lhe poderiam provir vantagens, attento o estado das coisas na capital, do qual já tinham chegado as graves noticias á Goyanna.

Os inimigos da nobreza, divertindo-se, como esta, ao menos apparentemente, e festejando com fogos enterrados á frente de suas casas, com reuniões, dansas, comes e bebes a noite do precursor do Messias, projectavam tambem tenebrosas vinganças, seguindo, sem o saberem, os nobres, posto que o conjecturassem.

A morada de Coelho ficava por cima da propria loja. No vasto sobrado para isto destinado não faltava o luxo, que caracteriza a vida de larguezas e deleites que o commercio dá e tira com a facilidade natural do jogo das operações mercantis. As extensas relações que tinha entre os agricultores, e a circumstancia de ser o negociante de mais nota do lugar pelos meios pecuniarios de que dispunha, obrigal-o-hiam a essa vida fastosa, quando certa ambição de figurar e o proposito de competir no lustre e grandeza com os primeiros fidalgos de Goyanna não exigissem delle o tratamento luxuoso que sustentava.

Até certo tempo atraz, fôra visto com bons olhos por esses fidalgos. Mais de um delles lhe dera demonstrações de respeito e estima. Chegou-se a dizer que á influencia de alguns devia Coelho a nomeação de sargento-mór com que o distinguira el-rei. Fosse porque fazia de si grande conta; fosse porque lhe parecera tempo de firmar a sua posição ainda não de todo segura; fosse porque não podera resistir ás imposições do sentimento, deu Coelho um passo que, produzindo completa e radical mudança em sua vida, converteu em hostilidade e odios contra si proprio as afeições e benevolencias que tinham antes disso manifestado por elle os nobres da vila. Sabendo anos antes, que d. Damiana, pela qual sentia grande affecto, estava para ser dada em casamento a João da Cunha, antecipou-se elle e pediu-a para si. Foi-lhe peremptoriamente recusada; e não teve outra origem o eclipse da sua estrella, nem o odio que cavou entre elle e o sargento-mór o abysmo insondavel que os separava.

Ao principio sentiu-se Coelho como curvado debaixo do peso deste grande desastre; mas, por derradeiro, reaccendendo-se-lhe a chamma do forte animo, um momento apagada pelo sopro da tormenta, o negociante ergueu a cabeça, fixou vistas altivas em seu altivo inimigo, e assentou de lutar com elle e seus parentes e iguaes, até que os vencesse ou cahisse de todo exsangue e morto.

A esse tempo já se iam manifestando as rivalidades que trouxeram como resultado a guerra. Coelho, em vez de procurar dissipal-as, foi o primeiro que em Goyanna as ateiou e lhes deu vulto e desenvolvimento; de modo que, quando, pela creação da villa do Recife, ellas definitivamente fizeram explosão, á frente dos mascates appareceu elle, sedento de vingança, tomando para si toda a responsabilidade e direcção dos odios insurgentes e tornando-se o alvo dos rancores da nobreza.

Quando Tunda-Cumbe appareceu na sala, achavam-se ahi com o dono da casa Jeronimo Paes, o portuguez Manoel Rodrigues (taberneiro), Belchior, Romão e outros. O assumpto da conversação era a guerra, nem podia ser outro, o que os reunisse então. Mas aqui não se manifestavam apprehensões e temores, como no engenho, entre os nobres. Aqui se tinha por segura a victoria, não obstante já se saber que o bispo se evadira e se achava exercitando o governo contra os mascates.

— Que importa isso? inquiria Jeronymo Paes. As fortalezas, os arsenaes, a milicia de terra e a milicia naval, os homens bons do Recife, e o povo são todos nossos. Em nossos armazens temos generos acumulados para seis mezes. Fallava-se em que os mazombos tencionavam sitiar a vila. Estupido plano é este. Que mal nos pode trazer semelhante sitio, quando temos livre o porto, por onde podemos communicar-nos não só com as outras capitanias, mas até com importantes localidades do littoral de Pernambuco?

— Hão de cansar-se elles primeiro de nos guardarem, que nós de estarmos guardados por semelhante modo—acrescentou um dos circumstantes.

Dando com os olhos em Tunda-Cumbe, Antonio Coelho levantou-se e acenou-lhe com a mão que o acompanhasse ao aposento contiguo. Ahi chegados, Coelho offereceu ao peixeiro uma cadeira, e dando exemplo, disse-lhe:

— Senta-te, Manoel Gonçalves.

— Este, a modo de admirado da intimidade, que equivalia a uma honra, que elle estava longe de esperar, respondeu:

— Póde vosmecê dizer o que ordena. Ouvirei tão bem estando de pé, como si sentado estivera.

— Senta-te. O negocio exige pratica longa.

Tunda-Cumbe sentou-se.

Por todos os de Goyanna era o Tunda-Cumbe havido por meio mercador e meio bandido. Ninguem ignorava suas relações com certos sujeitos de ruim fama, alguns dos quaes se dizia serem associados ao peixeiro em criminosas negociações. Havia quem soubesse que no lugar denominado Sipó tinham elles um como rancho, onde celebravam seus conciliabulos.

— Mandei chamar-te, Manoel Gonçalves.

Aqui se interrompeu Antonio Coelho, e um momento depois continuou:

— Mas, antes de entrarmos no assumpto, não será máo que desmanches um pedaço de bolo fresco e laves a guella com um copo de vinho puro e velho, que ha dias me chegou do Porto.

Assim fallando, Coelho apontava para a commoda de cedro, onde se viam, em salvas de prata bolos de S. João de differentes tamanhos e formas, e em garrafas de crystal o vinho generoso a que alludira. — Tenha paciencia, seu Antonio Coelho, —respondeu o peixeiro. Acabo de chegar agora mesmo do divertimento em que estava, quando o Lauriano me deu o recado. Queira ter vosmecê a bondade de vir direitinho ao negocio, que eu fiquei de voltar ainda hoje ao dito divertimento, onde tenho uma grande empresa que executar, si para isso não me faltar o tempo.

— Que empresa é essa?

— Quebrar os dentes a um pé-rapado, por não terem mordido a lingua delle na occasião de me dizer meia duzia de liberdades que lhe hão de custar bem caro.

— Folgo em encontrar-te nestas boas disposições. Mas, para não dares passo em falso, trata primeiro de organizar as tuas forças. Não tens tu varios amigos com quem te podes ajuntar a qualquer hora que seja necessario?

Tunda-Cumbe, não sem dar mostras de confusão e hesitação, inclinou a cabeça como quem respondia affirmativamente.

— Pois bem; tornou o negociante. É da maxima conveniencia que de hoje para amanhã reunas todos elles e á sua frente trates de hostilizar por todos os meios imaginaveis, não só o pé-rapado a quem queres quebrar os dentes, mas tantos pés-rapados e masombos quantos poderem cair em tuas mãos. Já deves saber o que resolveram os nossos patricios e amigos do Recife...

— Tudo sei.

— É de nossa honra e de nosso interesse que o grito que elles soltaram na villa, ache echo em todos os pontos importantes da provincia, especialmente em Goyanna.

— E o governo está de nossa parte?

— O governo! O governador, o legitimo, o verdadeiro governador de Pernambuco, Sebastião de Castro Caldas, este está comnosco. D. Manoel é simplesmente o governador da rebeldia. Deu força aos insurgentes, e está exercendo attribuições que lhe não competem. Os que o sustentam e por elles são sustentados, tão criminosos são como ele. Oppuzeram-se á creação da villa, o que quer dizer que se oppuzeram á vontade e á ordem de el-rei; tentaram contra a vida do legitimo governador, e o obrigaram a refugiar-se na Bahia para escapar á morte; na ausencia delle, tomaram conta do poder tumultuaria e revolucionariamente; o bispo por infame covardia ou por indigna connivencia, assumio as redeas do governo e expedio perdão aos rebeldes e assassinos. Deviamos nós, leaes vassallos de el-rei, ter por justo e legal o infame perdão, quando as justiças do céo e da terra exigiam antes as cabeças dos rebeldes? Não, mil vezes não. Acumulámos viveres, ajuntámos dinheiro para que nos não faltasse nada na occasião do desforço. Julgando os nossos amigos do Recife chegada esta occasião, acabam de soltar o brado em favor da restauração da autoridade legal, vil e traiçoeiramente conspurcada pelos que se appellidam nobres, quando outra consa não são sinão rebeldes e sicarios. Assim, todo leal portuguez tem o dever de lançar mão das armas para derribar o governo de d. Manoel e levantar novamente o de Castro Caldas. Em favor desta empreza patriotica e gloriosa é que te proponho reunas todos os amigos que poderes. O programma da lucta é largo, mas resume-se nisto—destruir, seja por que meio fôr, qualquer força, qualquer bem, até a propria vida de todos os fidalgotes de Pernambuco. —Tudo o de que precisares, a saber, dinheiro, viveres, apoio, protecção illimitada para ti e para os teus a fim de se preencher este plano salvador das nossas fortunas, das nossas vidas e do nome portuguez, ser-te-ha promptamente dado ou feito, contanto que a represalia não fique nem por um instante retardada. Posso confiar em ti, e nos teus, Manoel Gonçalves? concluio Antonio Coelho com gestos e expressão de quem estava de corpo e alma entregue a este pensamento e por leval-o a effeito subiria a todas as eminencias e desceria a todos os abysmos.

Antonio Coelho era de boa estatura. Tinha os cabellos pretos e corridos os olhos rasgados e humidos. Espadaúdo e anafado, dir-se-hia que esse homem, uma vez sentado, não poderia levantar-se sinão com auxilio de outrem. Nada entretanto encontraria mais a verdade. Posto que macisso de fórmas, era prompto nos movimentos. Sua agilidade tinha o quer que fosse da electricidade. Em seu semblante estavam esparzidos os toques de uma expressão particular que o tornavam atractivo. Usava a palavra com vehemencia e mobilidade que interpretavam brilhantemente os caprichosos raptos e oscillações de seu espirito, umas vezes lento e tardo nas operações, outras franco e arrebatado até á inconveniencia e a temeridade.

— Ha então viveres e dinheiro bastante para serem distribuidos pela gente que eu ajuntar? inquiriu o peixeiro, como quem não queria ainda acreditar na fórmal promessa que acabava de fazer-lhe o negociante.

— Ha tudo de que precisares para as mais arriscadas e custosas arremettidas contra a nobreza, disse a com segurança Antonio Coelho, qual si fizesse um juramento solemne. Além disso, acrescentou como por demais, o saque entrará por muito na ordem dos meios de supprir qualquer falta que se não tenha podido prever.

— Eu quero ser franco a vosmecê. Tenho já comigo, não de hoje, mas de ha muito, vinte camaradas valentes e decididos. Se me autoriza a augmentar o numero, dentro de pouco tempo terei uma companhia organizada.

— Autorizo-te a organizares um batalhão. Pagarei a todos o soldo, e a ti aquelle que costumam vencer os coroneis.

— Muito bem, respondeu o Tunda-Cumbe. Pode contar comigo. De hoje a oito dias teremos gente para tomar Goyanna.

— Trata-se não de tomar Goyanna, que nossa é, mas de ir em soccorro dos nossos amigos do Recife, que estão ameaçados de um rigoroso sitio, posto pelos rebeldes de Olinda e das vilas mais proximas.

— Pois sim; é para o que quizer. Sou páo para toda obra.

— Fica pois assentado que de hoje em diante andaremos de acôrdo nesta grande obra.

— Sim, senhor. Está decidido.

— Em caso de necessidade, por quem poderia mandar chamar-te?

— Por Lauriano.

— Podemos confiar nele?

— É um negro interesseiro, que odeia muito os nobres, porque de um delles foi escravo e provou muito bacalháo. Elle sabe onde ha de procurar-me, nos dias em que não costumo vir a villa.

Antonio Coelho deu algumas ordens ao peixeiro, assaz aggradaveis para este, por serem acompanhados de algumaa moedas de prata.

Mettido o dinheiro na algibeira do gibão velho que trazia, o Tunda-Cumbe retirou-se, levando comsigo a convicção de que desde o momento, em que fôra autorizado a acrescentar o seu sequito, era elle tão poderoso chefe sinão mais do que o proprio que a isso o autorizara.