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O Momento Literário/XII

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Recebo-o na volta da sua longa viagem. Nestor Vítor está transformado. A violência, aquele ar de pedagogo zangado com que procurava convencer os discípulos, desapareceu. É um cidadão que passou por Paris, que viveu em Paris, que civilizou todas as arestas do temperamento na polidez de Paris.

Três anos antes faria reflexões a propósito do meu inquérito, reflexões onde haveria de certo alguns desaforos, alguns axiomas, algumas ironias e muito talento. No momento em que lhe pedia as suas idéias, entretanto, sorriu.

— Já?

— Quando quiser. O tempo de refletir. Os jornais não deixam a gente tempo para muita coisa.

Passou os olhos pelo questionário.

— Mas é grave!... Mando-lhe a resposta, amanhã. E sabe? encantado, positivamente encantado...

No dia seguinte recebia a seguinte carta:

"Meu caro João do Rio. O terceiro livro, de Abílio, adotado na escola em que aprendi a ler, é que me proporcionou os primeiros arrebatamentos que o verso me produziu. A "Minha Terra", de Casimiro de Abreu, o "Adeus aos meus amigos do Maranhão", de Gonçalves Dias, e a "Ode aos Baianos", do primeiro José Bonifácio, incluídos naquela miscelânea, deixavam-me fora de mim quando eu os lia, ou mesmo simplesmente ouvia ler, tanto mais se a leitura era feita em voz alta e com certa ênfase. Eu caía quase que em verdadeiro paroxismo, tal a deliciosa exaltação que se apoderava do meu espírito.

Nessas ocasiões nunca me passou pelo cérebro a ambição sequer de algum dia poder fazer coisa assim. Aqueles homens estavam aos meus olhos muito acima de quanto me fosse dado nesse sentido aspirar.

Na escola eu só fiz jornalismo manuscrito. Podia por fim tirar umas vinte ou trinta cópias, tendo conseguido comprar um polígrafo. A influência dos nossos poetas só dois anos depois é que frutificou com o estimulo de um jornalzinho, A Violeta, que rapazes mais velhos do que eu publicavam então na minha terra:

As flores são lindas,

São castas, são belas,

São lindas estrelas

Que brilham no ar...

Lembra-me que foram estas as minhas primeiras trovas, benigna, indevidamente elogiadas pelos mocinhos que me aceitaram para seu colaborador.

Depois comecei a freqüentar o clube literário que havia na nossa cidade e ainda hoje existe, em cuja biblioteca pude encontrar-me com a literatura nacional e portuguesa.

Os poetas e os romancistas, eles e alguns críticos mais acessíveis, é que conquistavam a minha maior atenção, principalmente Gonçalves Dias, Castro Alves, Fagundes Varela, José de Alencar, Bernardo Guimarães e o autor de uma história da literatura portuguesa, cujo nome esqueci. Li Os Lusíadas, por indicação do meu professor de línguas; mas, de todo, não pude achar-lhes sabor.

Foi Gonçalves Dias quem sobrepujou as demais influências dessa época. Pelos meus quatorze anos de idade compus um poemeto, em não sei quantos cantos, ingênua imitação às poesias indianistas do autor do "I - Juca-Pirama":

Qual perla mimosa de nácar corada,

Que nasce encoberta no fundo do mar...

Era assim que começava.

Depois que fui sabendo traduzir do francês, ao mesmo tempo que manuseava Ramalho Ortigão, Eça de Queirós, Guerra Junqueiro — os versos da Morte de D. João produziram-me um grande abalo —, fui lendo Vítor Hugo, Chateaubriand, Madame de Staël, os livros da história da literatura de Villemain, fora os clássicos, que tinha de traduzir em estudo, por obrigação.

De Vítor Hugo, mais do que a d'Os Miseráveis, deliciou-me a leitura de Nossa Senhora de Paris, e, ainda mais do que esta, a do Homem que ri e d'Os Homens do Mar. Seu livro, porém, que eu não me limitei a ler apenas uma vez, mas que volta e meia tinha às mãos, porque ele me interessava particularmente, era o seu William Shakespeare, que obtive de uns salvados, com um grosso volume das obras dos grandes autores italianos, mais os de Villemain a que já me referi.

Esse William Shakespeare, e depois os primeiros volumes de Hugo, que andei procurando de propósito, foram dos livros em que mais meditei até aos meus dezessete anos de idade, já aí com a louca, em todo caso nobre ambição que obras tais tão facilmente, na idade em que eu estava, inspiram. Devo juntar a estes os livros de Staël, principalmente os de crítica e de história, — as páginas em que ela se refere à sua vida, aquelas outras, excelentes, sobre a Alemanha, suas reflexões relativas à Revolução Francesa, etc.

Em todo caso já me achava então um tanto impressionado com o naturalismo, tenho lido principalmente muitos volumes de Zola. Custou-me a princípio aceitá-lo. Lembra-me de ter feito, aos quinze anos talvez, um ensaio intitulado Vítor Hugo e Emílio Zola, em que me declarava francamente pelo primeiro.

Chegando ao Rio com o propósito de preparar-me para o curso anexo da Escola Politécnica, estudos que iniciei num estabelecimento particular, um dia, por acaso, vi e comprei num livreiro A Filosofia d'Arte, de H. Taine, quase pelo mesmo tempo em que adquiria as Flores do Mal, de Baudelaire. Estas eu já conhecia um pouco de leitura superficial que fizera na província, levado pelo entusiasmo essencialmente comunicativo de um meu amigo, Emiliano Perneta, que chegava de S. Paulo, em período de férias.

As duas obras seduziram-me a tal ponto que eu reneguei as matemáticas e resolvi entregar-me de corpo e alma à literatura, participando isso mesmo a quem me cumpria dar satisfação a tal respeito.

Daí por diante entreguei-me ao estudo das ciências, da filosofia e da literatura em geral, com a decisão e o ardor próprios de quem julga que enfim encontrou o seu caminho. Ao mesmo tempo ia produzindo alguma coisa, mais verso do que prosa, então.

Não devo calar que Alberto de Oliveira, e Machado de Assis um pouco, principalmente na sua tradução d"O Corvo", de Edgar Poe, exerceram a maior influência de que me lembre, tratando-se de autores nossos, nas minhas produções dessa época.

É claro que depois disso, convivências e tantas outras leituras vieram que foram atuando e têm vindo a atuar mesmo até hoje na minha formação. De quantos amigos intelectuais tenho podido contar, nenhum como Cruz e Sousa, por exemplo, concorreu principalmente para me dar estímulo e inspirar-me paixão na minha fase de combate aqui no Rio. Mas quando nós nos encontramos, as minhas tendências já se achavam definidas nas suas linhas gerais. Foram, pois, esses de que acima falo que me deram o que se chama o impulso inicial.

Das minhas obras qual a que prefiro?

Sempre tive predileção pela que ainda não produzi. As outras só em dias especiais é que as posso reler. Depois, não me parece que valha a pena falar de coisas que fiz, tendo eu sempre a impressão de que o público não se lembra delas, tanto mais que a maior parte dos leitores as desconhece por completo.

Se atravessamos ou não um período estacionário em literatura?

Estamos mais ou menos nas mesmas condições de todo o Ocidente. Neste instante é mais em Roosevelt que se concentra a atenção universal, representante como ele é, ainda não de uma característica renascença, mas de um momento de crise, o planeta inteiro achando-se na perplexidade de quem não sabe ao certo para onde irá.

Há forças poderosíssimas em ação — há o movimento industrial e o movimento socialista; mas que pode conhecer antecipadamente o que vai resultar da incubação formidável a que assistimos?

Parece que o mundo terá dentro em pouco o seu eixo de influência inteiramente deslocado da posição em que se achava, e o governo da humanidade irá cair em outras mãos que não aquelas de quem mais dependeu até agora a marcha da civilização.

Mas até que ponto e como essa deslocação se há de produzir? Quais os seus resultados práticos? Que abalos ou cataclismas hão de provir daí, que modificações sofrerá com isso a geografia política e até o destino das diferentes raças humanas?

Nós outros, brasileiros, não temos sido de todo indiferentes a essas graves preocupações.

A maior parte dos nossos escritores, é certo, poetas, autores de contos, romancistas, ainda obedecem ao programa de há vinte ou trinta anos atrás. Seus amores, ou então o esplendor da nossa natureza e a poesia dos nossos costumes, os absorvem quase por completo. Eles são mais ou menos parnasianos no verso e naturalistas fazendo contos ou romance. Como exemplo, dois excelentes autores, Alberto de Oliveira e Coelho Neto.

Mas há outros que já acordaram mais vivamente para a hora.

Por enquanto, preocupado franca e diretamente com essas perspectivas de que falo, só há um livro de arte, — Canaã, do Sr. Graça Aranha.

O romance tolstoísta, Ressurreição, do Sr. Curvelo de Mendonça, também é característico do momento, embora muito pouco no Brasil, onde ainda nem quase se pensa sobre essas coisas.

É de citar também A América Latina, do Dr. Manuel Bomfim, corajoso livro de crítica e doutrinamento, palpitante de atualidade.

Além desses, há outros que igualmente vêm a sua hora, porque nascem das circunstâncias da ocasião.

Por exemplo, produto da indecisão ou perplexidade de que falei, e do nervosismo que ela determina, está-se criando em todo o mundo um novo ramo literário, que, bastardo como seja, merece no entanto esse nome, quando praticado por homens de talento e de capacidade artística. Refiro-me à literatura de informação aos produtos de interessantes reportagens, primeiro publicados na imprensa e depois coligidos em volume, abrangendo os mais vários e, às vezes, os mais curiosos e importantes assuntos.

Ora, As Religiões no Rio e este livro em que v. me dá a honra de colaborar pertencem ao gênero, e, como eu já disse noutra ocasião, não encontram competidores no nosso meio. De modo que de v. também se pode dizer que é legitimamente um representativo.

Os trabalhos críticos dos Srs. José Verissimo, Sílvio Romero e Araripe Júnior, homens, todos três, que estudam incessantemente e têm o senso do tempo em que vivem, devem ser por isso mesmo considerados como agentes positivos na nossa literatura.

Seria injusto não lembrar o aparecimento de um livro de muito valor, e com ele o de uma forte individualidade, até então ignorada, como era a do Sr. Euclides da Cunha antes de publicar Os Sertões, que é a obra a que me refiro.

As valiosas páginas desse seu volume inicial, além do raro rebrilhamento da forma, são concebidas num espírito todo moderno, de informação e psicologia que procura ser honesta e certa, de um realismo, às vezes mesmo de um pessimismo, que fazem violento contraste com as basofias, de boa fé, porém ingênuas, que tanto caracterizam a atmosfera do Segundo Reinado. Mas nem isso se deixa de sentir que estes inflexíveis, talvez mesmo às vezes demasiado rigorosos, modos de ver do escritor de hoje, nascem do mais fundo e sério sentimento de amor e interesse pela terra brasileira que um filho dela possa nutrir.

Também o bom livro do Sr. Oliveira Lima, No Japão, é obra lida entre nós com o mais justo interesse. Ele nos poderá aproveitar não pouco no decisivo momento que atravessamos.

Não devemos, por fim, esquecer aqui o grupo de jornalistas que ora mais influência estão exercendo em nosso meio; é com toda razão que eles conseguiram esse predomínio. Homens do talento e preparo de Alcindo Guanabara, Eduardo Salamonde, Medeiros e Albuquerque, Olavo Bilac e alguns mais, obteriam vencer em qualquer parte, uma vez colocados na imprensa.

Menos políticos do que tiveram de ser os jornalistas de há quinze anos atrás, os Quintino, os Patrocínio, os Ferreira de Araújo, os Rangel Pestana, mais desilusionados e realistas, em todo caso eles são os representantes dos novos ideais de acordo com o espírito da época.

Hoje nos é talvez mais indispensável acompanhar este último e precaver-nos à altura das suas exigências, do que o era a própria obra da abolição e a vitória do princípio republicano. Sem estas duas coisas a nação poderia perfeitamente subsistir então, enquanto que ela corre hoje em dia riscos os mais sérios, se não souber ver a hora e não tiver a energia necessária para colocar-se como exigem os seus problemas vitais.

É claro que de quanto se faça em letras, quer no novo sentido, quer continuando ou completando a obra que foi a novidade anterior, só o que seja realizado superiormente é que há de ficar, como sempre tem acontecido. Digo isto, meu caro João do Rio, para responder ao seu último quesito dos que se prendem a esta questão.

Não me parece que os centros literários constituídos nos Estados de há uns anos para cá ofereçam tão cedo o perigo ou a vantagem — conforme se encare — de criar literaturas à parte.

O centro, seja como for, ainda exerce tal influência sobre a periferia em nosso país, que Estados há onde se é mais ortodoxo em relação a uns quantos preconceitos criados nos grupos literários do Rio, do que mesmo aqui.

A criação desses centros prova, pois, que eles, na sua maioria, não são mais do que produtos de imitação, devidos à influência da nossa Academia de Letras.

Terminando, sobre a questão de saber-se se o jornalismo é um bom ou mau fator para a arte literária, direi que se ele não existisse, se a evolução das coisas já tivesse podido eliminá-lo, substituindo-o por instituição melhor, seria bem bom para a arte literária. Mas como isso ainda não se realizou, e pelo contrário, o jornalismo resiste de cada vez mais vivaz, parece-me que hoje ela não o pode dispensar.

Muito cordialmente."