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O Momento Literário/XXXIX

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Quando dei por findo o meu trabalho voltei ao amigo que mo indicara como necessidade do público e provento literário. Sentei-me desoladamente num vasto divã de Mapple; e, como fazia Aulo-Gellius nas suas noites áticas, pedi-lhe, cheio de humildade e temor, a sua opinião.

— Francamente, acha alguma utilidade social em saber que o sr. Alberto de Oliveira não responde a um inquérito e que o Sr. Alberto Ramos prega a força do super-homem?

— Meu amigo, eu acho que a crítica está absolutamente acabada. As reflexões de Sainte-Beuve, as tiradas do Arnold, os ensaios científicos ou metafísicos para explicar a composição da Comédia do Dante ou o Testamento do Gallo desapareceram por completo. Hoje, sejamos francos, a literatura é uma profissão que carece do reclamo e que tem como único crítico o afrancesado Sucesso. Não sei se conhece o livro de Gastão Ragot a respeito. O êxito, resultante ou acidental, é uma força. Esta força não é cega e não é inexplicável: vem de uma corrente que o vulgo acompanha, mas que o filósofo analisa, corrente que obedece a leis fáceis de determinar. O autor, seja ele qual for, de uma notoriedade lucrativa, de valor no mercado — porque a venda é uma força — deve o seu sucesso ao favor público. O público não simpatiza senão com os que o sabem tocar e lisonjear. A marca de um autor cotado é uma boa marca. Ele a princípio é quem a recomenda; ela depois é que o faz valer. Por isso o autor que vence é uma espécie de jogador feliz.

— Oh! Que teoria discutível!

— Eu chego aos exemplos. A Sra. D. Júlia Lopes de Almeida é o tipo ideal da mãe de família; acha infantil o feminismo, o nefelibatismo e outros maluquismos da civilização. As suas idéias modestas e sem espalhafato, a sua sensibilidade sem extravagâncias souberam tocar o público. A colaboração da Sra. D. Júlia nos jornais aumenta a edição dos mesmos. Que importa à D. Júlia um crítico, dois críticos, três, uma dúzia mesmo contra ela? A sua marca é boa, é vendável; e como acontece a outros produtos, os próprios críticos, forçados pela corrente, fazem-lhes o reclamo com o instinto, aliás muito humano, que tem toda a gente de aclamar os que a multidão aclama. Quando o público adota um escritor — D. Júlia, Bilac, Medeiros e Albuquerque — é que se percebe bem a inanidade da crítica, o fim desse gênero de vagabundagem criadora, porque a pobre coitada que não lhes tece artigos todos os dias, esfalfa-se inutilmente em louvores para certos senhores, sempre ignorados, sempre esquecidos, sempre invendáveis e envenenados pela intoxicação do próprio ineditismo.

— O amigo é brutal. Isto não é filosofia, é balanço de livraria.

— Muito bonita frase no tempo em que os poetas morriam dipsômanos e só escreviam por chic em estado de embriaguez. Mas o Brasil transforma-se, civiliza-se. Hoje o jornalismo é uma profissão, quando antigamente era um meio político de trepar; hoje o escritor trabalha para o editor e não manda vender como José de Alencar e o Manuel de Macedo por um preto de balaio no braço, as suas obras de porta em porta, como melancias ou tangerinas. Uma nova necessidade infiltrou-se nos nossos hábitos: a necessidade da higiene e do confortável. O escritor precisa de higiene, de cuidados, de luxo. Eu acredito que o gênio profundo e fecundo de Coelho Neto não se expandiria de maneira tão maravilhosa se não tivesse o ambiente de luxo e de conforto da sua sala de trabalho; e Medeiros e Albuquerque não possuiria aquela regularidade, aquela precisão, aquela clareza de argumentos e de estilo se não adquirisse na vida todas as comodidades do corpo e do espírito. Os tempos mudaram, meu caro. Há vinte anos um sujeito para fingir de pensador começava por ter a barba por fazer e o fato cheio de nódoas. Hoje, um tipo nessas condições seria posto fora até mesmo das confeitarias, que são e sempre foram as colmeias dos ociosos. Depois, há a concorrência, a tremenda concorrência de trabalho que proíbe os romantismos, o sentimentalismo, as noites passadas em claro e essa coisa abjeta que os imbecis divinizam chamada boêmia, isto é, a falta de dinheiro, o saque eventual das algibeiras alheias e a gargalhada de troça aos outros com a camisa por lavar e o estômago vazio...

— Há de permitir que eu o considere feroz.

— Bato um corpo morto, bato no passado... Se hoje o escritor não trabalha em vinte e quatro horas mais do que um seu colega trabalhava em dois meses há vinte anos, vê os seus assuntos aproveitados, as suas idéias escritas, o seu pão comido pelos outros e talvez com maior originalidade. E a concorrência não é só de homens, é também das mulheres, algumas das quais, como a cintilante e espiritual Carmem Dolores, ultrapassam a maioria dos homens em encanto, modernismo e elegância, conquistando de súbito o favor público. Depois, quais são as resultantes do seu gravíssimo inquérito?

— Isso, pergunto eu.

— Em primeiro lugar a demonstração de que a vaidade não é mais uma qualidade má, mas ao contrário, a satisfação natural de todo o homem, uma deliciosa coquetterie cerebral, que o arrivismo prático transforma em reclamo. Os escritores consultados, quase na sua totalidade, contaram com especial prazer a própria vida. Tem v. para sempre um livro de consulta biográfica dos escritores nacionais. Em segundo, a idéia clara de que o homem de letras só tem um desejo, mesmo quando está na torre de marfim: conquistar o favor público, ser lido e ser notado. O seu inquérito é um exemplo das idéias que v. acha brutal.

As opiniões que se emaranham nessas páginas são conseqüências desse princípio. Vemos em primeiro lugar a anarquia mental, a anarquia do século. Uns acham que estamos em decadência; outros que progredimos. Aqui brada um que estamos no momento da luta; ali brada outro que não temos escolas literárias; acolá mais outro insurge-se contra a luta e a decadência. A verdade é que cada um cuida de si. A época é de um individualismo hiperestésico. Há a estagnação dos corrilhos literários, mas a fúria de aparecer só — é prodigiosa. Os vencedores acham todos o jornalismo animador, o jornalismo necessário; os que por inaptidão, trabalho lento ou hostilidade dos plumitivos, ainda não se apossaram das folhas diárias, atacam o jornalismo, achando essa idéia uma elegância de primeira ordem. São geralmente os poetas, os poetas que fatalmente tendem a ver o seu mercado diminuído — porque o momento não é de devaneios, mas de curiosidade, de informação, fazendo da literatura no romance, na crônica, no conto, nas descrições de viagens, uma única e colossal reportagem.

— A literatura, uma reportagem?

— Desde o romantismo, desde Vítor Hugo tende a ser, simplesmente, reportagem impressionista e documentada. É a sua força. A poesia conservou-se no ideal, e por isso, como bem disse Clóvis, tem os seus moldes gastos. — Ainda outro dia um homem, para fazer sucesso em verso na França, teve que fazer uma reportagem poética sobre a vida dos galinheiros...

— O meu amigo é paradoxal e insolente.

— É o que quase sempre não são os seus entrevistados. Foi-se o tempo das ganas, das raivas, das descomposturas. Agora não se ataca mais. Não há tempo. A delicadeza é um resultado da falta de tempo. Já Avianus, um fabulista latino que La Fontaine copiou com descaro, dizia: nullus proemissis vincere posse minis...

— Mas em suma? fiz eu enfadado com aquele excesso de palavras.

— Em suma?

— Sim, sem circunlóquios, francamente...

— O inquérito mostra que não há escolas no Brasil, que é uma fantasia a idéia de literatura do norte e literatura do sul, que já não há romancistas, que os grandes poetas e os grandes escritores são os que estão na Academia, e que não há uma só das nossas idéias que não seja bebida no estrangeiro, nos livros do Félix Alcan, ou nas extravagâncias publicáveis do Mercure de France; que o naturalismo morreu, que o nefelibatismo agoniza, que a poesia estrebucha...

— Tudo para pior.

— Há também o lado bom, e esse é que a alma e o cérebro do Brasil tomam as feições modernas, que as idéias do mundo são absorvidas agora com uma rapidez que pasmaria os nossos avós; que o jornalismo inconscientemente faz a grande obra de transformação, ensinando a ler, ensinando a escrever, fazendo compreender e fazendo ver; que o individualismo e o arrivismo criam a seleção, o maior esforço, a atividade prodigiosa, e um homem de letras novo, absolutamente novo, capaz de sair dessa forja de lutas, de cóleras, de vontade, muito mais habilitado, muito mais útil e muito mais fecundo que os contemporâneos.

— E esse homem, o literato do futuro...?

— É o homem que vê, que aprendeu a ver, que sente, que aprendeu a sentir, que sabe porque aprendeu a saber, cuja fantasia é um desdobramento moral da verdade, misto de impassibilidade e de sensibilidade, eco da alegria, da ironia, da curiosidade, da dor do público — o repórter. E aos livros desse — sem ódios, sem corrilhos, sem extravagâncias — não faltarão nunca o imprevisto da vida e o sucesso que é o critério mais exato da aclamação pública.

Levantei-me, e deixei a causa moral do meu inquérito. Mas deixei-o com uma convicção: é que positivamente elevara ao auge a confusão de idéias, de biografias, de opiniões, de raivas, de satisfação, com tanto esforço colecionadas. Felizmente já um filósofo disse que as verdades do homem são em última análise os seus erros irrefutáveis...


FIM