O Movimento da Independência/IV

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A política das Cortes anunciou-se verdadeiramente no decreto de 18 de abril, que reconhecia as juntas criadas nas províncias brasileiras para estabelecer o novo regime constitucional, considerando beneméritos os que tivessem promovido a mudança, e mandava proceder no reino ultramarino à eleição de deputados ao Soberano Congresso Constituinte, de acordo com o decreto de 22 de novembro de 1820.

Tomás Antônio achava absurdo que deputados brasileiros fossem "mandados para as opiniões perigosas de Portugal" em vez de se reunirem em redor do rei, que estava no Brasil. Um dos mais ponderados e esclarecidos espíritos brasileiros dos nossos dias [1] entende do mesmo modo que a política do reino ultramarino devia ter sido outra diversa da que foi nessa crise de emancipação nacional. A verdadeira política consistiria em "quebrar toda a solidariedade com as Cortes e reter o rei no Brasil, para tirar deste fato todo o partido possível".

Dom João VI não pedia outra coisa e só os acontecimentos, ou melhor, o jogo de interesses a que o soberano não teve o vigor bastante para sobrestar, o levaram a regressar para Lisboa. Sua permanência não podendo implicar, mesmo com o divórcio das Cortes, a renúncia à soberania lusitana e a conversão da Casa de Bragança numa dinastia somente brasileira, porque afinal Portugal é que era o berço da monarquia tantas vezes secular, teria porém significado a continuação da dualidade luso-brasileira. Ora contra esta dualidade, tal como a fundara Dom João VI, tanto eram os espíritos ultramarinos ávidos de independência como as próprias Cortes portuguesas.

As Cortes queriam um só reino com duas seções - européia e americana - e não dois reinos reunidos na pessoa do monarca, como a Áustria-Hungria e a Suécia-Noruega de ontem. A recompensa por elas dada pela prioridade do movimento constitucional no Pará foi fazer esta capitania "província de Portugal", assim se despedaçando a unidade administrativa que o Brasil carecia ter a peito para formar um composto forte como era homogêneo. Nestas condições não podia o intuito do constitucionalismo português ser outro senão promover a recolonização, disfarçada ou mesmo franca, capciosa ou mesmo violenta, e tanto se arreceava o Brasil desse perigo que, logo na sua adesão, a Bahia frisou o ponto da "igualdade absoluta de direitos entre os povos dos dois hemisférios". Não havia entretanto junta nem capitania mais devotada aos interesses portugueses, nem que maior repugnância mostrasse a obedecer à regência brasileira.

O Sr. Gomes de Carvalho não julga aliás o reconhecimento das juntas uma provocação, nem mesmo uma ameaça, porque a publicação no Brasil do decreto das Cortes de 18 de abril foi posterior ao pronunciamento de várias províncias - Pará, Bahia, Pernambuco - e da própria corte. Se não gerou a desagregação, definiu-a porém e aproveitou-lhe o impulso iniciado para assentar a situação que devia fatalmente estender-se ao sul do país e abrasá-lo por inteiro num delírio de constitucionalismo, repassado de lealdade para com a antiga metrópole.

Não competia certamente ao Brasil rejeitar as franquias políticas que lhe eram trazidas pela revolução portuguesa, contanto que se não prestasse ao plano último que continha essa transformação liberal e que era servirem-se os homens de 1820 das instituições representativas para chamariz do povo brasileiro e como fator do restabelecimento de uma união tal como já não tinha razão de ser. A cisão estava operada com a organização da colônia em reino: faltava tão somente legalizá-la criando o Império.



Para Portugal o aspecto mais importante da questão constitucional residia na atitude do Brasil com relação ao movimento iniciado no Porto e confirmado em Lisboa: dessa atitude dependeria o melhor do seu êxito. Se o Brasil, sede da monarquia como de fato o era, resistisse, a revolução estava mal parada, sem ser preciso entrarem os dois reinos em luta, porque ali se encontravam os seus principais recursos, tanto materiais como morais. E não corria logo como certo que o Brasil aderisse.

Mister era portanto prover outros apoios: deste modo sobretudo se explica a agitação de caráter ibérico, tendente a um enlace com a Espanha constitucional, a qual habilmente fomentada pelos agentes diplomáticos despachados de Madri chegou a tomar proporções sérias. Ambos os países calculavam ter que lutar contra a hostilidade da Santa Aliança, mas a anuência de Fernando VII à restauração da constituição democrática de Cadiz assegurava que se não daria lá uma intervenção pelo menos imediata - como realmente não se deu até 1822, quando o rei da Espanha se lançou nos braços da França, que ainda disputava à Inglaterra a ingerência e a influência nos assuntos continentais, prosseguindo uma rivalidade tradicional que apenas se interrompeu nos nossos dias.

No caso de Dom João VI, firmando-se na fidelidade brasileira, protestar contra a anulação da sua autoridade absoluta, a independência portuguesa ficava pois à mercê das potências chamadas reacionárias, uma vez que estas quisessem ou pudessem sobrepor-se à Inglaterra, defensora interessada da autonomia do reino lusitano. A Inglaterra prestigiava na Península Ibérica o regime constitucional, justamente porque era a política oposta à da Santa Aliança e aquela que melhor correspondia aos interesses britânicos.

Compreende-se por conseqüência o júbilo dos constitucionais portugueses perante a adesão do Brasil à ordem de coisas por eles implantada. A revolução pernambucana de 1817, espraiando-se por outras capitanias, provara de sobejo que na antiga colônia floresciam idéias liberais e que por amor delas se ia até o ponto de imolar a vida, mas ao mesmo tempo a crueldade da reação, qual se havia manifestado, deixava prever que não podia mais ser bem acolhida qualquer política comum. O Brasil estava aliado de Portugal pelo sangue dos patriotas.

Para atraí-lo, prometeram-lhe pelo manifesto de 31 de outubro de 1820 a cessação do regime colonial, o qual na verdade perdurava sob algumas das suas piores feições, pois que o reino americano continuava entregue aos caprichos e desmandos de capitães-generais irresponsáveis com relação à nação, agora gravitando em redor do despotismo real e empenhados em fornecer-lhe brilho.

Confiado nesta organização, para ele a mais sábia, e porventura na afeição dos povos, Dom João VI, no seu oportunismo de temperamento, que é a forma inteligente da timidez, sobretudo quando esta é ardilosa, quis como sempre pesar os prós e os contras e dar tempo às suas reflexões e hesitações antes de tomar qualquer deliberação, que por fim lhe era imposta pelas circunstâncias ou por outros de mais vontade. Ele não concedia pessoalmente à revolução portuguesa uma importância exagerada, nem mesmo a sua gravidade real, e o modo como o novo regime foi varrido em Vila Franca de Xira por alguns regimentos marchando entre nuvens de pó, e os anos de guerra e de perseguições que mais tarde custou a implantação do liberalismo, não deixavam de dar-lhe razão.

Vimos como Palmela, cujo ceticismo era de índole diferente e se educara noutros meios, julgava mais avisado e mais hábil tomar o rei a dianteira e dirigir o movimento para não ser devorado pela hidra revolucionaria. Era a teoria de Turgot que o seu espírito cosmopolita assimilara, a política de Necker que lhe fora revelada através de Madame de Staél e do seu círculo. Cumpria "assegurar à Coroa a proeminência na reconstituição política da Monarquia" - tal foi o programa formulado pela sua diplomacia, o que ele quis do Rio para Portugal aplicar em benefício da realeza. A opinião expressa pelo ministro ao monarca quando este lhe pediu seu parecer, à sua chegada da Europa, sobre os acontecimentos que presenciara, tem todo o valor de um documento sociológico e prova a sua superioridade intelectual.

"A revolução de Portugal, escrevia Palmela, não é o resultado de causas peculiares à nação portuguesa. As queixas dos povos sobre a administração da justiça e fazenda, a tristeza ocasionada pela prolongada ausência de V. M. contribuem sem dúvida para excitar algum descontentamento, mas este nunca teria chegado a desenvolver-se, nem a produzir os efeitos que desgraçadamente presenciamos, se os portugueses não tivessem sido excitados pelo exemplo dos espanhóis, pela tendência geral de todas as nações da Europa para o governo representativo, e enfim pela conspiração universal que existe contra os antigos governos, e pela espécie de exaltação que se apoderou de quase toda a geração atual. Não é, portanto, de esperar que o mal possa curar-se com remédios parciais, nem que ganhem os ânimos, contemporizando e deixando de se adotar medidas decisivas. Os espíritos não se hão de sossegar em Portugal enquanto estiverem exaltados em todo o resto da Europa, nem os Portugueses se hão de contentar jamais achando-se num estado de inferioridade política relativamente a seus vizinhos. Devo também assentar como base, pois tal é a minha inteira convicção, que V. M. necessita de ser rei de Portugal para conservar o reino do Brasil, e que pelo contrário as forças todas que tem no Brasil, ainda quando fosse possível conservá-las, de nada lhe serviriam para readquirir Portugal, se uma vez o tivesse perdido".

Era inútil porém querer obrigar Dom João VI a atitudes definidas. Não estava isto nem na sua natureza, nem nos seus gostos, nem na sua política. Não reagir e tampouco ceder, adiar, era o seu lema e às vezes dava resultado, mas nem sempre. Nos momentos sérios, nas crises agudas, qualquer resolução é necessária, e se o principal interessado a não toma, outros a tomam por ele.

Entre o soberano e o seu ministro havia em todo caso maiores afinidades do que entre este e os democratas das Cortes para quem a constituição era uma arca santa - "maravilhoso monumento, que vai ser levantado pelo sublime esforço da constância e da virtude sobre as ruínas do despotismo e da arbitrariedade" [2]. O aristocrata que era Palmela podia querer até certo ponto liberalizar as instituições - outro tanto se pode em menor escala dizer talvez de Arcos -, mas a irredutibilidade das opiniões nascia logo do princípio, de que aquele partia, de que a nação não era soberana, competindo exclusivamente ao rei o direito de convocar os representantes da nação.

Quando Dom João VI chegou a Lisboa a 3 de julho, com 48 dias de viagem, e no dia imediato desembarcou para ser conduzido ao seio das Cortes a prestar juramento, encarregou Silvestre Pinheiro Ferreira da fala em resposta à do presidente da deputação que fora a bordo. O constitucionalista aproveitou o ensejo para assinalar, como princípio fundamental do sistema, "que o exercício da soberania, consistindo no exercício do poder legislativo, não pode residir separadamente em nenhuma das partes integrantes do governo, mas sim na reunião do monarca e deputados escolhidos pelos povos, tanto aquele como estes, para formarem o supremo conselho da nação, a que os nossos maiores têm designado pela denominação de cortes, e às quais coletivamente compete o exercício ordinário do poder legislativo, por maneira que, se jamais o monarca assumisse a si o exercê-lo sem a câmara dos deputados, se reputaria o governo degenerado em despotismo, bem como passaria ao estado não menos monstruoso da oclocracia, se a câmara dos deputados intentasse exercitar ela só o poder legislativo".

As Cortes não deixaram passar sem reparo a doutrina, ponderando ao monarca, por intermédio do ministro Quintella, que nas bases da constituição, em que se estabelecera a linha de demarcação entre os poderes legislativo e executivo, "se atribui somente às Cortes a representação nacional e o poder legislativo, com a exclusão da iniciativa direta do rei e só com a dependência subseqüente da sua sanção e de um veto que não será absoluto". Escusado é dizer que Dom João VI mandou responder que estava pela opinião das Cortes, "não podendo ser da sua intenção que houvesse no seu discurso expressões ou idéias que não fossem de acordo e conformes com as bases da constituição e com o seu juramento".

Triunfava a burguesia, radical em política e racionalista em filosofia, que enchera as Cortes de metafísicos revolucionários, deistas em religião se bem que afetando carinho pelo catolicismo, e quase republicanos no tocante a sistemas de governo, não o sendo de todo por causa da Santa Aliança. Não era gente essa que se prestasse à inteligência que el-rei quisera dar ao seu movimento, anuindo tão somente em que o herdeiro da coroa fosse "ouvir as queixas" e insuflar vida nova na antiga constituição da monarquia.

Palmela, que tinha visto mundo, compreendia que era forçoso ir além dessa interpretação tradicional e acanhada, que era indispensável consignar desde logo na legislação certas conquistas do pensamento filosófico e da ação revolucionária em matéria de liberdades civis e políticas, por outras palavras, ceder o mínimo para obviar ao máximo. Melhor seria dirigir do que obedecer, impor do que receber imposições. O dilema - se soumettre ou se demettre - já naquele meio e naquele tempo se formulava.

O decreto de 18 de fevereiro reconhecia aliás o perigo, pois que rezava que "as circunstâncias em que se acha a Monarquia exigem justas e adequadas providências para consolidar o Trono", e tanto contava com a solução que em Portugal fora dada ao problema se tornar definitiva, que se referia à constituição que devia ser transmitida de Lisboa pelo príncipe real, "a fim de receber, sendo por Mim aprovada, a Minha Real Sanção". Estas expressões supunham logicamente uma lei orgânica da nação, ultrapassando "as reformas e melhoramentos e as Leis que possam consolidar a Constituição Portuguesa", isto é, a velha ordem de coisas fundada nas Cortes de Lamego.

No seio da representação nacional ecoou mal o termo aprovação. Protestaram alguns deputados, observando que ao rei só cabia jurar e à nação aprovar. Fernandes Tomás assim pôs também a questão, ajuntando que se o rei "quiser sujeitar-se que se sujeite; senão, que se não sujeite: não há meio termo". O corolário do não se sujeitar era ir passear. Por essas e outras queria Tomás Antônio que já houvesse no Rio de Janeiro opinião formada pela troca de vistas entre os procuradores convocados e sucessivamente chegados e as pessoas gradas constituindo a junta consultiva, de modo a ser a assembléia apenas reunida para aprovar o que já estivesse acordado entre todos, sem afirmar veleidades de assembléia deliberativa tresandando a Cortes Soberanas.

Silvestre Pinheiro Ferreira enxergava nesse expediente, que tinha de sedutor o adiantar-se a reunião dos procuradores à obra das Cortes Gerais, o plano diabólico de frustrar o movimento genuinamente constitucional que abraçava os dois países. A linguagem do decreto de 18 de fevereiro prestava-se aliás neste ponto a qualquer das duas interpretações, pois que se faltava nas Cortes Brasílio-insulanas "examinarem e consultarem" os que dos artigos da futura Constituição Portuguesa fossem adaptáveis ao reino do Brasil e também em proporem ao rei novas medidas, novas leis, novas bases políticas e sociais. Tanto se podia dessa linguagem inferir Carta como Ordenações. As constituições porém estavam na ordem do dia e Tomás Antônio era quem estava atrasado.

Tinha ele então 66 anos e bastantes havia que gozava da confiança de Dom João VI, que por ele se afeiçoara quando o conhecera de corregedor em Vila Viçosa e se acostumara a ouvi-lo sobre os negócios públicos, achando sensatas e excelentes suas opiniões porque no geral concordavam com as próprias. Elevando-o à Casa da Suplicação e ao desembargo do paço, o soberano exaltava a noblesse de robe - Thomaz Antônio era filho de um probo e pobre advogado de província - que lhe era tão útil, senão mais, que a grande noblesse.

Com Silvestre Pinheiro Ferreira era a pura burguesia que se via chamada aos conselhos da coroa. Professor de humanidades em Coimbra, oficial da secretaria de estrangeiros em Lisboa, encarregado de negócios em Berlim, onde casou, vegetava no Rio de Janeiro como deputado à junta de comércio, tendo recusado uma missão secreta no Rio da Prata, quando sobreveio a revolução portuguesa. Suas preleções de filosofia mal tinham dado para as despesas da impressão e ele pusera-se a escrever em francês como, no seu dizer, o melhor meio para ser lido em português [3].



O momento político desse homem de bem veio com o pronunciamento de 26 de fevereiro. Seu espírito doutrinário inclinava-se à permanência de Dom João VI no Brasil, para que el-rei pudesse com sua presença conter a anarquia iminente e ao mesmo tempo meditar sobre a Carta a ser aprovada, parecendo-lhe a Constituição de Cadiz um modelo infeliz. Seus colegas de governo não lhe achavam contudo razão, parecendo-lhes, numa visão de menos alcance, que o essencial era antes acabar com a anarquia lá na Europa e sancionar depressa a organização constitucional, pondo remate à interinidade revolucionária.

Era evidente que Portugal se não satisfazia sem ficar reintegrado na sua condição de sede da Monarquia. Com a convergência política das províncias brasileiras para as Cortes Soberanas, a sede voltava automaticamente a ser Lisboa. A permanência do rei além-mar oferecia por sua vez ao reino americano vantagens positivas, que eram não o privar, quando uma vez revolto, do seu melhor fiador de autoridade e não expor o monarca, e portanto a nação, à aprovação precipitada e a contragosto de uma lei fundamental que um espírito equilibrado como o de Silvestre Pinheiro Ferreira reputava quase demagógica e pecando gravemente pela confusão dos poderes, como era a Constituição espanhola.

O mais interessante é que comungavam na mesma idéia espíritos reacionários e espíritos avançados. A ida do rei tinha em seu favor tanto os que queriam vê-lo prontamente na dependência das Cortes, porquanto sabiam perfeitamente que nas promessas e juras de Dom João VI não havia fiar, como os fidalgos que só em Portugal pensavam sentir-se à vontade e, ou aderiam às idéias novas ou nutriam a esperança de que o velho regime não tardaria a ressurgir vitorioso.

A sociedade brasileira do tempo, que melhor se chamaria luso-brasileira, estava tão dividida neste assunto quanto o conselho real. Entre os elementos partidários da permanência do soberano contavam-se o comércio ultramarino, que não queria sacrificar seus lucros ao restabelecimento do monopólio mercantil português, e o funcionalismo local, cioso do maior prestígio que lhe advinha da presença da corte. Dos elementos contrários faziam parte, além dos cortesãos, saudosos da sua mocidade de franças e sécias, os soldados da Divisão Auxiliadora, que na guitarra cantavam a nostalgia dos seus casais; os oficiais portugueses a quem o licenciamento da oficialidade inglesa abria vagas suspiradas para as promoções; os caixeiros-reinos, mal dispostos contra os patrões, desforrando-se nos maus tratos aos marçanos e dizendo-se "fascinados pela liberdade", embora esta se traduzisse ainda em fórmulas mais do que em realidades. Aquelas levariam a estas.

Pode dizer-se que, tomados em grosso, os portugueses, tanto os tradicionalistas como os liberais e até os mações, eram pelo regresso e os brasileiros pela permanência, incluindo-se no número o Correio Brasiliense, o qual aliás observava com o costumado bom senso do seu redator que, se fizesse o que se quisesse, ficariam sempre um queixoso e um satisfeito frente a frente. "A mudança de El-Rei para a Europa trará consigo a mudança do lugar dos queixosos, mas não remédio dos males..."

Os mais acomodados de um lado e de outro admitiam a partilha; os mais exaltados "queriam, cada qual para seu país, a família real toda" [4]. Tomás Antônio não se fartava de escrever que el-rei não media bem a extraordinária vantagem da sua posição com relação a Portugal, onde a Santa Aliança não permitiria, nem mesmo contra o voto da Inglaterra, o estabelecimento de uma democracia republicana. Ficar no Brasil era sobrepor-se à tormenta.

No conselho real Arcos fora de começo pela ida do príncipe que, seduzido pelas suas maneiras insinuantes e pela sua inteligência prática muito mais do que teórica, dele fazia o confidente da sua imaginação exuberante. Tomás Antônio insistira sempre pelo statu quo, certo de que a revolução, entregue a si, se gastaria e concluiria por uma contra-revolução conservadora. Pouco depois Arcos, que não custava muito a mudar de opinião consoante suas conveniências políticas, entrou a preferir a ida do rei, ficando ele como conselheiro-válido ou mentor de Dom Pedro, que tinha então 23 anos incompletos. Por isto instou Arcos para deixar seguir para Portugal o correio anunciando o alvitre adotado da ida do príncipe como condestável, certo de que tal resolução levantaria ali protestos e exigências da presença de Dom João VI em pessoa.

Não é de admirar tanta divergência de vistas quando o desacordo alcançava os protagonistas da peça. Se Dom João VI escutava radiante as representações que fossem contrárias ao seu embarque, Dom Pedro era mais que todos favorável à partida do pai pela ambição de ficar governando a seção maior da Monarquia. Os interesses primavam, como quase sempre, os sentimentos, mesmo os mais naturais e íntimos.

A opinião liberal crescia entretanto, ao passo que diminuía a força do governo, atingindo a desordem o mais alto nível, pelo que se fazia mister salvar não só o principio de liberdade como o princípio de autoridade. Para atender ao primeiro, cuja consolidação se anunciava aos seus olhos mais premente, foi que Silvestre Pinheiro Ferreira pretendeu obter o assentimento público ao regimento provisional da regência, escudando-a com o apoio do eleitorado na forma do primary meeting da organização americana, de que as repúblicas espanholas tinham encontrado o equivalente nos seus cabildos abiertos. A assembléia de eleitores da praça do Comércio foi, não um arremedo, mas um núcleo de representação nacional, correspondente a um anelo geral e ao ideal sempre presente de uma assembléia popular e soberana.

Soberana mesmo pela razão que estava servindo de fundamento moral à guerra de libertação das colônias espanholas: que o vínculo da união entre metrópole e colônias era o monarca, não havendo sujeição das colônias à nação que foi sua mãe-pátria, mormente depois de atingirem sua maioridade. A obediência era de natureza toda pessoal e não nacional. Coagido o rei pelas Cortes, o reino ultramarino assumia sua liberdade de ação e tomava iniciativas, em virtude dessa doutrina.

Martinez de Rozas, no Chile, chegara a opinar que só no caso de Fernando VII, em nome de quem fora declarada a separação da América Espanhola, assim subtraída ao cetro do rei intruso, vir residir no Novo Mundo, deveria ser reconhecido como soberano. Por essa teoria Dom João VI perdia o trono retirando-se para Portugal. Assim devia pensar o "partido brasileiro", como Martinez de Rozas, que distinguia entre a pátria européia, representada pelo rei, e a pátria americana, representada pelo Congresso.

Era mais numeroso esse partido do que à primeira vista, se poderia calcular, uma vez abstraindo da grande massa inculta que constituía o número e cujo espírito, se o tinha, só poderia ser instintivamente tradicionalista, acatando a autoridade e quem a representasse. O elemento principal de cultura era o clero e este era nacional, como o era o elemento militar nos soldados e nos oficiais que não os superiores.

O rei, transferindo sua corte para o Rio de Janeiro, tinha de algum modo dado uma primeira, posto que involuntária, satisfação às aspirações nacionalistas ainda vagas, mas que em Minas Gerais já tinham assumido aspecto de conjuração. Dom João VI organizara pelo menos, e pouco importa que o fizesse mais por instinto que conscientemente, um Portugal americano, um país corri personalidade própria diferente da do Portugal europeu. Seu papel foi assim sociologicamente análogo ao das juntas que, desde 1810, se foram formando na América Espanhola para governar as colônias no impedimento do soberano e com desconhecimento da suserania estrangeira.

As medidas adotadas parecem-se. A abertura dos portos brasileiros ao comércio aliado e neutro por exemplo, decretada pelo príncipe regente em 1808, na sua passagem pela Bahia, foi imitada em Buenos Aires pelo vice-rei Cisneros, representante da junta suprema de Sevilha, em 1809, e em 1811 pela junta chilena, franqueando os portos de Valdivia, Talcahuano, Valparaizo e Coquimbo. O prestígio da autoridade tradicional de um monarca impediu apenas que a anarquia expulsasse a ordem e se instalasse no seu lugar no poder, regulada de quando em vez pelos pronunciamentos militares dizendo-se intérpretes da soberania popular.

Silvestre Pinheiro Ferreira percebeu claramente a situação que se lhe defrontava. O partido europeu apressara o motim de medo que o Brasil tomasse uma atitude constitucional diversa da procedente das Cortes, e o partido brasileiro por seu lado assistiu ao ato com prazer e até o atiçou, certos os seus adeptos de que "em último resultado hão de ser os indígenas, e não os advenas que hão de ficar senhores do campo de batalha" [5]. Era-lhe portanto indiferente que, na forma por que se achava redigido o decreto sustado de 24 de fevereiro, se mandasse adotar para o reino do Brasil a constituição que as Cortes portuguesas fizessem, "salvas as modificações que as circunstâncias locais tornassem necessárias", ou que, como o exigiram povo e tropa congregados no Rocio, nada se tentasse modificar e se aprovasse a Constituição de Lisboa, aderindo o Brasil à mesma tal qual.

Os agitadores de rua trabalhavam, segundo Silvestre Pinheiro Ferreira, por conta de terceiros, os quais por trás da cortina puxavam os cordéis que faziam moverem-se esses títeres. Naturalmente a uns e outros foi crescendo a ousadia que logo se manifestou pela imposição à coroa de um verdadeiro conselho de vigilância, sem cuja anuência ficaria a suprema autoridade inibida de tomar qualquer resolução importante de caráter público. E esta desconfiança reapareceria em cada crise, ainda que imperfeitamente definida ou sem plano formulado, até que os atos do regente o mostrassem identificado com o sentimento nacional. Desvanecer-se-ia então a desconfiança para ressurgir depois, com violência.

O publicista do constitucionalismo em Portugal e no Brasil considerava uma tal limitação da autoridade régia a dissolução do vínculo que presidia às relações sociais do povo português e que obstava ao aparecimento "do espírito de reação e vingança". Ele enxergava igualmente a dissolução da monarquia na ida de Dom João VI para Lisboa, por mais que os seus colegas de conselho a reputassem necessária para fazer progredir a tarefa constitucional pelo concurso íntimo do soberano e das Cortes.

No intuito de ganhar Portugal, o qual de uma forma ou de outra, com ou sem demora, estava ganho, ia-se, no seu entender, sacrificar o Brasil, que ficaria sem uma autoridade respeitável para servir-lhe de centro de união, com autoridades desprezadas e desprezíveis, tropas impopulares e povos já acostumados a deporem seus governantes. Entretanto em Portugal ver-se-ia o rei intimado a aceitar uma constituição exótica, cujo liberalismo consistia numa absurda confusão de princípios políticos, quando no Brasil, longe da influência dos partidos nacionais e das potências estrangeiras, se poderia organizar em assembléia representativa um sistema constitucional adequado "às precisões de todas as diferentes e tão diferentes partes desta vasta monarquia".

O Brasil tornar-se-ia porém ingovernável para a dinastia que presidia ao dualismo, se o seu chefe o abandonasse e não era esse um caso para vir de fora um impulso de salvação. O sentimento constitucional ou democrático brasileiro não ultrapassava aparentemente um limitado círculo intelectual, seguro nas suas convicções e sequioso de inovações progressistas, mas pulsava à farta na sombra de sociedades secretas, onde manobrava o elemento civil que depois se enfileirou na marcha dos militares. Eram estes os únicos a poderem tomar a iniciativa prática de um movimento que só revestiria sua significação histórica e só ganharia para tanto consistência, quando o seu constitucionalismo tomasse o aspecto patriótico, exprimindo os anelos de uma nacionalidade (62).

Hipólito da Costa preparara no Correio Brasiliense durante anos seguidos esse movimento de organização nacional, delineando sua teoria e mostrando sua prática, para isto apontando para os exemplos estrangeiros na América e indicando como deveriam ser indicados e tratados os vários problemas políticos e sociais. Não dissimulou o mais grave destes últimos, que era o da escravidão, cuja abolição muito recomendou, bem como a introdução de imigrantes. No seu dizer, país algum apresentava "mais elementos de prosperidade nacional" do que o Brasil.

A ação do grande jornalista exercia-se porém à distância e para a realização dos desiderata liberais convinha ter agentes mais próximos e diretos. Foi este o papel da maçonaria combinado com o da imprensa local, por meio da qual aquela atuava sobre a opinião pública. Nas lojas e nas redações se formaram os estadistas da independência, do primeiro reinado e da regência, que prepararam o fecundo reinado de Dom Pedro II. Parecem talvez maiores do que os da época posterior ao Império porque a estes falta ainda o recuo do tempo e aqueles eram na sua grande maioria, autodidatas, mercê do baixo nível da instrução colonial, vendo-se portanto compelidos a maiores esforços intelectuais, ou então precisavam dispor, para se elevarem no conceito do país e de um soberano superior aos partidos, de talentos mais brilhantes e de mais aguda ânsia de saber do que aqueles que, para ilustrarem seus espíritos, dispunham de outras facilidades e obedeciam a mais altas ambições com menor dispêndio de energia. Na luta das capacidades desajudadas de fortuna e mais confiadas nos seus méritos, acontecia serem os medíocres mais facilmente sobrepujados e daí vinha aos vencedores uma certa fatuidade, da qual não só os Andradas foram culpados.

A maçonaria foi incontestavelmente uma escola de disciplina e de civismo e foi um laço de união entre esforços dispersos e dispersivos. A sua função foi essencialmente oportuna. Sem ela não teria o trono podido desempenhar nessa ocasião o seu papel histórico, fundido uma vez mais aspirações nacionais sob a sua ação mais desinteressada. Aos dirigentes locais faltaria o meio de se conhecerem, de se entenderem, de concertarem seus ideais e suas atividades numa combinação tanto mais urgente, quanto as províncias brasileiras tinham diante de si o espetáculo da desunião prevalecente nas províncias espanholas e acarretando males sem conta.

Na Venezuela as discussões do Congresso Nacional e a contenda dos dois partidos empenhados, um em fazer vingar a federação, outro o centralismo, tinham tomado o tempo precioso da defesa e feito perigar desesperadamente a independência, permitindo a reação de Monteverde e a reconquista espanhola. Nova Granada e Venezuela viram-se respectivamente abandonadas à sua sorte apesar do tratado de aliança e federação ofensiva e defensiva que as unia, pelejando cada Estado separadamente e ainda se desavindo o congresso federal de Nova Granada com o presidente de Cundinamarca. Um dos rasgos mais meritórios e de maior alcance político de Simão Bolívar foi levar Nova Granada a pelejar pela libertação da Venezuela e Venezuela pela libertação de Nova Granada, assim estabelecendo a ligação entre as duas repúblicas que por sua queda se desmanchou, quando predominaram as ambições pessoais valendo-se do particularismo.

O regime de sigilo das lojas permitira ampliar extraordinariamente o número dos adeptos da maçonaria, dos quais é lícito dizer que sonhavam todos com a independência. Numa carta escrita da Bahia a Tomás Antônio, referia Luís do Rego Barreto, a caminho de Pernambuco na qualidade de capitão-general, que o comandante do Carrasco lhe contara que, no ato de serem algemados os réus para desembarcarem, dissera o guardião dos franciscanos "que eles não eram os únicos culpados e que se houvesse de tratar desse modo todos os cúmplices que existiam nas diferentes capitanias da América, não eram bastantes nem todos os vasos, que El-Rei tem, para os conduzir, nem todos os ferros para os prender" [6].

Quando José Bonifácio, escolhido pelo príncipe regente para seu ministro - o primeiro brasileiro elevado a essa dignidade apesar de Tomás Antônio aconselhar, desde a aclamação de Dom João VI, que assim procedesse o monarca, bem como com relação à organização de uma aristocracia no reino americano - foi eleito grão-mestre pelo Grande Oriente, tendo por lugar-tenente o marechal Joaquim de Oliveira Álvares, seu colega de gabinete, significou isto que o mundo maçônico nacional nele enxergava o melhor executor do grande projeto comum. Por seu lado, querendo iniciar-se, para o que foi proposto pelo próprio José Bonifácio a 2 de agosto de 1822, tomando o nome de Guatimozim, prestaria Dom Pedro à maçonaria o preito mais expressivo, ainda que pudesse ter sido levado a pretender essa admissão pelos adversários dos Andradas, os quais visavam subtraí-lo à influência de José Bonifácio e para isto, querendo semear ciúme e discórdia entre ambos, o elegeram grão-mestre no lugar do seu ministro.



Politicamente e financeiramente não foi fácil o início do governo de Dom Pedro: sem dinheiro, por não virem mais as contribuições das províncias, tinha contra si virtualmente todas as facções. Tinha para começar os liberais, especialmente os mações, desconfiados do constitucionalismo de Arcos que, no conceito deles, aspirava aos louros de um Pombal, reformador onipotente, portanto prepotente, e ressentidos da frase contida na primeira proclamação da regência em que se dizia que todas as suas intenções seriam baldadas "se uns poucos mal-intencionados conseguirem sua funesta vitória, persuadindo-vos de princípios anti-sociais, destrutivos de toda a ordem ..."

A proclamação não dizia isto a esmo, sendo positivo que essa facção democrática existiu desde o tempo do rei, já não faltando na sublevação ocorrida no norte, e contra ela obrava a reacionária. Uma relação dos sucessos de 26 de fevereiro publicada por Melo Moraes acusa a última de, na sessão da primeira junta consultiva, realizada em casa de Palmela, ter feito "bastante injúria aos nobres e generosos habitantes de Portugal, tratando-os de rebeldes por quererem recuperar os seus direitos e a sua representação: um dos membros daquela comissão até ousou proferir que se devia bloquear Portugal e obrigá-lo à força de armas a submeter-se aos antigos estabelecimentos políticos".

Também o protesto de fidelidade da tropa a el-rei a 13 de março de 1821 prova claramente que já existiam tendências notórias à separação. A divisão portuguesa auxiliadora e as tropas da guarnição de 1.ª e 2.ª linha declaram nesse documento que agiram a 26 de fevereiro "pelo desejo de fazer causa comum com os seus companheiros de Armas de Portugal, procurando por este modo chamar o Brasil a mesma causa, e salvá-lo da anarquia, ou de outros projetos, que sobre ele se pudesse ter, e que tendessem a apartá-lo daquele centro de unidade política, que só é capaz de manter, e consolidar os interesses do reino unido" [7].

Por sua vez se queixava a facção lusitana de que o "despotismo" de Dom Pedro e do conde dos Arcos visava a desunir os portugueses dos dois hemisférios e reputava outros tantos atentados à união como ela a entendia, sui generis, os ofícios dirigidos do Rio de Janeiro para as províncias do Brasil a fim destas prestarem obediência ao príncipe regente e secundarem a autoridade central executiva criada por el-rei ao retirar-se. Os atos mais simples da regência eram interpretados como "maquinações sinistras" e a junta da Bahia, que era ferozmente portuguesa, increpava o governo de Dom Pedro de inteligências com Luís do Rego em Pernambuco e desígnios de atacarem a Bahia para destruírem esse baluarte do constitucionalismo português, que se erguia contra os projetos de independência do reino americano, por aqueles outros favorecidos.

Para os portugueses Arcos era partidário decidido do Brasil; para os brasileiros não passava o ministro de um reinol com todos os seus preconceitos. Este tratamento pejorativo não punha porém os brasileiros de acordo sobre a política a seguir: havia partidários da monarquia absoluta, partidários da monarquia constitucional, partidários da república unitária, partidários da república federativa, partidários do dualismo e partidários da independência. Esta era a solução que cada dia mais se ia afirmando, podendo prever-se que chegaria breve o dia em que, sob qualquer aspecto que se apresentasse o caso, de qualquer modo que se formulasse o problema, a solução não poderia deixar de ser a radical - a separação.

As soluções intermédias propostas num espírito de conciliação tinham que ser gradualmente eliminadas: a alternativa da residência do soberano dos dois reinos, que os punha num pé de igualdade, provaria nas Cortes ser um ponto de discórdia conduzindo ao rompimento. O ano de 1821 pode contudo denominar-se no Brasil o do constitucionalismo português: o de 1822 é que seria o do constitucionalismo brasileiro. A regência na fase em que foi seu inspirador o conde dos Arcos, como na fase imediata que se prolongou até o Fico, foi um governo bem intencionado, mas mal apreciado, quase impopular.

Bastariam para assinalar a ação benéfica dos seus primórdios a cessação das prisões arbitrárias, isto é, a proibição de qualquer prisão sem culpa formada e sem o competente mandado do juiz, a abolição do processo de torturas e a redução do exorbitante imposto do sal, de 750 para 80 réis por alqueire, um alívio para a população nacional que vivia das indústrias do charque e do peixe salgado ou se alimentava com estes artigos. Bastaria porém o recrutamento forçado - apesar do aumento dos soldos - para acirrar contra a regência certo sentimento, compartido pelos brasileiros, que sempre primaram em detestar o serviço de quartel e sabiam que os pobres e desamparados seriam as vítimas, ao passo que os abastados protegidos formariam o exército dos embusqués, que enxergavam na medida o meio de irem-se substituindo por forças nacionais as tropas portuguesas, cujos pronunciamentos se sucediam e estavam tornando impossível a normalidade da vida política.

O 5 de junho foi o mais desnecessário dos pronunciamentos. Chegadas de Lisboa em fins de maio as bases da Constituição, ali promulgadas a 10 de março, discutiu-se se deviam ou não ser juradas. Por um lado o amplo juramento de 26 de fevereiro parecia dispensar qualquer novo compromisso, tendo sido prestado sem reservas de princípios, nem sequer conhecimento do que se jurava observar, o que aliás o tornava nulo em direito; e por outro lado havia a questão de direito constitucional e também de moral política, se seria válida a sanção pelo executivo local de uma lei orgânica ou mesmo da sua doutrina aplicada a um país cujos representantes a não tinham votado, pois que não tinham ainda tomado assento nas Cortes constituintes.

Achava-se de resto expressamente declarado que, sem o consentimento dos representantes do Brasil, a constituição adotada não se tornaria obrigatória para essa seção da monarquia. Considerando finalmente que a forma solicitada de aprovação na praça pública era perfeitamente revolucionária, e que não era possível coexistirem processos legais e processos violentos no andamento constitucional, o escrúpulo do governo aparece de todo ponto legítimo e razoável.

O conde dos Arcos foi desta vez a vítima expiatória: atribuíram-lhe hostilidade, que talvez nutrisse, contra a assembléia portuguesa e até o propósito, que ele de certo não tinha, de urdir a independência do reino brasileiro. Gomes de Carvalho pensa que o antigo vice-rei do Brasil e capitão-general da Bahia e do Pará, era muito mais administrador do que político, não se lhe conhecendo planos de governo além dos de intensos melhoramentos materiais e morais, que o ilustraram e popularizaram na Bahia. Se teve um plano para salvar a situação quando sobreveio a crise do constitucionalismo, como Trochu tinha um para salvar Paris e a França da ocupação alemã, ficou desconhecido como este outro: a menos que a sua participação na cruel repressão do movimento republicano de 1817 em várias capitanias do norte o houvesse incompatibilizado para coadjuvar sinceramente uma agitação de caráter liberal.

Parece certo que Louzã, o qual andava desavindo com Arcos, opinava pelo juramento das bases e que influiu para o desenlace como se deu. Porto Seguro culpa Caula do antagonismo e da intriga. O príncipe regente afrontou a situação com denodo. Ouvindo falar em conspiração militar, interrogou os chefes da tropa, que negaram aos pés juntos qualquer intenção de insubordinação; mas querendo verificar por si próprio o que havia, deixou a fazenda da Santa Cruz às 11 horas da noite de 4 de junho e apareceu às cinco horas da manhã no quartel de caçadores de São Cristóvão, dirigindo ao capitão Sá algumas palavras que Melo Moraes qualifica de descabidas e que irritaram o oficial, o qual se sentia culpado. Mal Dom Pedro sabia, o batalhão armava-se e encaminhava-se para o centro da cidade, que ficou presa de pânico, aderindo ao pronunciamento o regimento de infantaria do largo do Moura, o de artilharia da praia de D. Manuel e mais outro batalhão.

O ponto obrigado de reunião era sempre o Rocio, onde o príncipe compareceu a cavalo, ouvindo dos oficiais comandantes e de um padre frei Narciso, antigo capelão do conde de Vila Flor, arvorado em procurador do povo, que tropa e povo queriam o juramento das bases, a demissão de Arcos e a organização de um "governo provisório". Com muito sangue-frio mandou o regente subirem essas pessoas para o salão do Teatro de São João e aí lhes declarou que mais legítimos procuradores do povo eram os eleitores, que acabavam de cumprir seu mandato, do que o padre e que a tropa brasileira também devia ter voz no capítulo - pelo que ia mandar convocar aqueles e esta a fim de se liquidar de uma feita o assunto, sem probabilidade de terceiro chamado, ao qual não compareceria, arranjando-se cada um como pudesse e indo ele não sabia ainda para onde [8].

A tropa nacional era pouca e bisonha, e os eleitores também poucos e acanhados: o padre levou de vencida o seu programa, apoiado em espingardas carregadas e peças prontas a disparar. Arcos teve por substituto o desembargador da Casa da Suplicação Pedro Álvares Diniz, de escolha do príncipe, e a junta foi designada, mas não tumultuariamente, antes em votação regular na qual tomaram parte os eleitores de comarca, o presidente da câmara e oficiais do exército, à razão de dois por cada companhia da 1.ª e 2.ª linha de guarnição.

Compunha-se a junta de 9 membros e dela eram ornamentos o futuro marquês de Maricá e o bispo capelão-mor, completando-a os nomes de José de Oliveira Barbosa, comandante da polícia, José Caetano Ferreira de Aguiar, marechal Joaquim de Oliveira Álvares, Joaquim José Pereira de Faro, desembargador Sebastião Luís Tinoco, Francisco José Fernandes Barbosa e Manuel Pedro Gomes - o mais votado com 38 votos, o menos votado com 15.

O artigo 31.º das bases constitucionais portuguesas impunha a responsabilidade aos ministros e secretários de Estado e ficava incumbida aquela junta de apurar semelhante responsabilidade, sendo ela própria responsável perante as Cortes Constituintes de Lisboa, bem como de examinar todos os projetos de lei elaborados pelo executivo antes de respectivamente sancionados. O decreto definia tais atribuições, mas nunca foi regulamentado o seu modus faciendi, pelo que a junta civil ficou sabendo ao que viera ao mundo, sem contudo aprender como proceder nele e morrendo sem haver dado sinal da sua utilidade ou da sua inconveniência.

Junto ao governo das armas, de que era titular o general Jorge de Avilez, de quem a tropa portuguesa dizia ter queixas mas de quem não quis então aceitar a demissão, com a qual lhe acenava o príncipe regente, foi criado, igualmente por imposição da praça pública, um conselho de dois assistentes de alta patente militar. A intenção era em qualquer dos casos limitar a autoridade, funcionando a junta civil como uma espécie de câmara de censores da constituição imaginada por Bolívar para a República batizada com seu nome.

Na falta de um parlamento que tomasse conta ao executivo dos seus atos e vigiasse a aplicação dos dinheiros públicos, e de um tribunal com poderes constitucionais que protegesse os cidadãos nos seus direitos, nas suas liberdades e nos seus bens, aquela junta representava no seu princípio fundamental uma instituição popular servindo eventualmente de barreira aos desmandos das autoridades e de garantia à execução das leis. A idéia da mesma não morreria enquanto não se enraizassem as instituições representativas.

A prisão e deportação do conde dos Arcos pela tropa foram para Dom Pedro uma verdadeira e penosa humilhação. Arrancado do seu palácio - o senado federal de hoje, que lhe fora oferecido pelo comércio da Bahia agradecido, juntamente com uma dotação de 100 contos - sem lhe darem tempo de mudar os trajes caseiros, transportaram-no com a filha para bordo do brigue Treze de Maio, que singrou para Lisboa a 10 de junho. A Gazeta do Rio, usando para com o regente de linguagem mais cortesã, publicou que o povo e a tropa tinham provas evidentes de que fora devida à influência do ministro conde dos Arcos a demora no juramento das bases, essencial para o cumprimento da promessa feita pelo príncipe de que anteciparia aos habitantes do reino americano todos os benefícios essenciais da constituição em gestação.

Não pararam porém aí os dissabores do conde. Da Bahia onde o brigue arribou, a junta local, esquecida de todos os benefícios da administração de Arcos, remeteu para Lisboa ofícios incriminando-o como "o chefe da mais execranda conspiração contra os interesses da nação e do rei" e compeliu o comandante, 1.º tenente Manuel Pedro de Carvalho, a assinar um termo de segurança que de fato reduzia à condição de preso quem embarcara munido de passaporte, apenas constrangido a deixar o reino americano. Outrossim obrigava-se o comandante a não tocar em Pernambuco, onde Luís do Rego, ao que se dizia, estava agindo no mesmo espírito anti-constitucional.

O caso de Arcos foi muito debatido nas Cortes e não lhe faltaram defensores, entre eles os deputados fluminenses e o antigo desembargador da relação da Bahia João Rodrigues de Brito, autor de uma conhecida Memória econômica dessa província, os quais prestaram justiça aos serviços e às intenções do ex-ministro que qualificaram de "principal atleta da causa de Portugal" e paladino do sistema constitucional. Manuel Fernandes Tomás devia porém nutrir prevenção contra ele, pois que considerou "corpo de delito" a vaga denúncia da Bahia a que o magistrado e deputado Brito deu a justa definição de "denúncia de tempos revolucionários para dar cabo dos homens eminentes".

Fernandes Tomás apenas consentiu em que se mandasse proceder a um sumário de testemunhas por parte do corregedor do crime, de que resultou a completa justificação do acusado, o qual apresentara uma memória e documentos comprobativos demonstrado a falta de fundamento da imputação formulada pela junta da Bahia referindo-se "a cartas que não manda e as pessoas que não nomeia". O conde dos Arcos, que entretanto estivera detido na Torre de Belém e depois noutra prisão menos úmida, foi mandado pôr em liberdade a 28 de novembro [9].

Se a primeira medida adotada pelas Cortes com relação ao Brasil, implicando a ligação permanente das suas províncias com a antiga metrópole, não foi diretamente inspirada pelo desejo de despedaçar uma unidade alarmante, obedecia em todo caso à política tradicional de Portugal que fora sempre ditada pelo ciúme de que na colônia se viesse a organizar alguma coisa de grande, que no futuro pudesse contrapor-se à sua dominação: daí a dificuldade oposta à formação espontânea de vínculos, para os quais se requeria permissão real, e a parca remuneração dos dignitários da Igreja, cujo culto a Coroa provia em troca dos dízimos que o soberano cobrava da qualidade de grão-mestre da Ordem de Cristo. Armitage [10], a quem acodem estas judiciosas considerações, ajunta que "a condição dos brasileiros era na verdade miserável comparada com a de que gozam os europeus pela sua civilização; contudo, a tirania sobre eles exercida apresentava mais um caráter negativo do que positivo. Suas necessidades eram poucas, e em razão da quase não existência de nobreza, de grandes proprietários, e de poderosas dignidades eclesiásticas, havia uma certa igualdade entre todos, que não fazia sensíveis as privações a que estavam adstritos".

A medida em questão correspondia até aos votos dos brasileiros que, a tudo antepondo um regime liberal, preferiam unir-se a Lisboa, uma vez que lá imperava um constitucionalismo que era verdadeiramente uma democracia, a continuar numa dependência política local que julgavam humilhante. Não se pode entretanto dizer das medidas ulteriores que fossem inóxias. Aos poucos se fora cristalizando entre os constituintes portugueses a convicção de que a política da persuasão falhando, restava a da força. Eles queriam realmente ver os deputados brasileiros no seio da representação nacional, mas para lhes prescrever a sua norma de ação de acordo com o plano político concebido.

Os constituintes portugueses tinham posto de lado suas apreensões diante do espetáculo das capitanias brasileiras, uma após outra organizando suas juntas, e da impotência do trono perante os pronunciamentos da capital brasileira. Quando a atitude das Cortes se desenhou com maior precisão, tinha desaparecido o último receio de uma reação por parte do Rio de Janeiro e Dom João VI via-se em Lisboa prisioneiro da nação.

A substituição das tropas da Divisão Auxiliadora por outras tropas portuguesas, em que desde logo se falou, podia parecer uma simples medida de serviço, as primeiras já contando uma longa estação nos trópicos: de fato era uma medida de precaução, eventualmente de opressão, já aconselhada pelos primeiros temores de separação, apenas tornada impraticável pela pobreza do Erário e extrema modéstia do exército. Desde então que as Cortes se deviam ter capacitado da sua falta de recursos para sufocar a independência, uma vez que o Brasil por esta se pronunciasse, mas quiseram obter pela ação legislativa o que lhes escaparia pela ação militar, se fosse preciso exercê-la, simulando no entanto confiança na lealdade brasileira e tão somente desconfiança no espírito despótico do príncipe regente.

À junta fluminense competia pronunciar-se neste ponto, na opinião de Manuel Fernandes Tomás. A assembléia desta vez foi porém refratária à vontade do seu maior líder e votou-se o despacho para o Rio de Janeiro de 1.200 praças (25 de agosto de 1821). Quatro dias depois tomaram assento os deputados pernambucanos, os primeiros a chegar, os quais já acharam firmada a teoria de que, sendo todos os deputados representantes da nação, tanto podiam os portugueses tratar de assuntos brasileiros como, vice-versa, os brasileiros de assuntos portugueses.

A reforma administrativa discutida e aprovada a título provisório era concebida num espírito manifestamente anti-brasileiro. Separando as atribuições civis das militares e deixando as primeiras às juntas de sete vogais, escolhidas pelos eleitores das paróquias, ao mesmo tempo que confiando as segundas aos comandantes de armas nomeados em Lisboa, as Cortes criavam uma espécie de procônsules representantes da soberania parlamentar, pois que eram independentes das juntas. A autoridade destas estendia-se sobre o funcionalismo paisano, sendo todavia os magistrados e oficiais de fazenda responsáveis para com o governo do reino europeu, cabendo em todo caso ao governo local a faculdade de suspendê-los por motivo de abuso, formar-lhes culpa e fazê-los julgar pela Relação do distrito.

A uniformidade administrativa trazia entretanto uma vantagem, que era permitir pôr cobro à situação anárquica de algumas províncias, umas ainda sob o bastão dos régulos do antigo regime que eram alguns dos capitães-generais que as juntas não tinham podido desalojar, outras perturbadas pelas lutas dos constitucionais entre si, acusando-se mutuamente de terem galgado fraudulentamente o poder e bradando todos pela mesma legalidade.

Os deputados presentes às Cortes nessa ocasião, que eram além dos pernambucanos os fluminenses, acharam por isso razoável a discussão imediata de tal reforma, mas as atribuições militares dos comandantes ou governadores das armas preocuparam alguns como Araújo Lima (futuro marquês de Olinda) e Martins Basto (comerciante brasileiro estabelecido em Portugal e eleito representante do Rio de Janeiro) e propuseram que semelhante autoridade fosse somente criada nas províncias expostas a agressões externas, como as do litoral e a de Mato Grosso, onde existissem corpos de linha, isentando-se as províncias interiores e as pequenas circunscrições desse presente grego.

Não havia porém razão bastante para a diferença, conforme pôs em relevo a argumentação portuguesa, que figurou a hipótese de desavenças armadas entre as províncias brasileiras, convindo que estivessem todas em condição de defesa. A esta razão ostensiva agregou-se outra reservada e era que, desde o momento em que se ia dar provimento posto que relutante, arrancado aos poucos pela pertinácia, ao projeto do deputado pernambucano Manuel Zefirino dos Santos, de repor nos seus postos os oficiais comprometidos na revolução de 1817, abonando-se-lhes os soldos vencidos durante o período da sua exclusão, detenção ou homizio, convinha não os deixar reintegrar nas fileiras com seus sentimentos não só exaltados como nativistas, sem os tornar dependentes de uma autoridade portuguesa, representante da união segundo o figurino constitucional.

Juntamente com esta providência, adotou o Soberano Congresso a de restringir a militarização que Luís do Rego estava praticando em Pernambuco, não só dispondo de vários regimentos portugueses como criando corpos de milícias pelo interior, com repetidos e vexatórios exercícios que deslocavam os nacionais das suas residências e profissões e que foram abolidos. Igualmente se ocupou de um caso que inesperadamente se lhe apresentou - a chegada de 42 presos, muitos de distinção, entre eles o morgado do Cabo (futuro marquês do Recife), um dos Suassunas, Francisco do Rego Barros (mais tarde conde da Boa Vista) e Sebastião do Rego Barros, depois ministro da Guerra e então contando 18 anos, remetidos de Pernambuco no porão de um navio, sob acusação de conspirarem em favor da separação do Brasil.

Não seria de todo falsa a acusação, porquanto as tendências separatistas de Pernambuco eram notórias e nenhuma província preocupou mais por esse lado a regência de Dom Pedro. As Cortes usaram porém para com os deportados da maior indulgência. Elas timbravam mesmo em ser condescendentes nas questões pessoais, que eram as menores, reservando sua intransigência para as questões de princípios ou de interesse nacional, indubitavelmente as maiores.

Muniz Tavares apresentou os presos como vítimas do espírito de 1817, que atormentava com remorsos os perseguidores implacáveis de homens cuja nobreza da alma era tão superior aos instintos rasteiros e malfazejos dos seus algozes. A voz cavernosa do futuro monsenhor soava plangente como um dobre de finados pelos justiçados à ordem de Luís do Rego e os encarcerados à ordem da alçada. A denúncia de agora, originando o despropósito do capitão-general, não era porém a continuação da mesma ferocidade. A esta sobrepusera-se a covardia, revelando-se pelo pavor da vingança que tomariam os presos da Bahia, restituídos à liberdade e ao ódio. Aí estava o segredo da deportação, não em serem eles republicanos e independentes.

Vilela Barbosa (futuro marquês de Paranaguá) secundou admiravelmente o seu colega pernambucano com a sua palavra abalizada, de uma argumentação cerrada, tão diferente do "estrondo do pororoca" - como espirituosamente lhe chamou Cairu - pelo qual se anunciaria a eloqüência ultramarina nos lábios de Patroni. Protestou o representante fluminense contra as suspeitas de fidelidade do reino americano e contra o prolongamento na província dessa autoridade tirânica, que era a causa de todo o mal-estar. "A liberdade comprimida, dizia ele, reage com todos os sentidos e estoura, e todos os caminhos que trilha para se restituir ao seu devido estado, são justos e quando menos desculpáveis. Removam-se do Brasil os déspotas e opressores, e então a voz da independência, a menor voz, será crime, e crime atrocíssimo, como ingratidão para Portugal, a quem devem aqueles povos o ser e ora o maior de todos os bens, a liberdade" (outubro de 1821).

As Cortes não eram mesmo insensíveis a apelos desta natureza. Nem queriam para o ultramar um tratamento diferencial quanto aos direitos civis ou às liberdades constitucionais dos brasileiros: o que queriam era assegurar a supremacia política e econômica da que ainda consideravam metrópole. O deputado português, padre Castelo Branco, desenhou com nitidez a situação quando disse num discurso que a expressão de reino do Brasil devia ser equiparada à de reino dos Algarves. Reino era um só. A tríplice designação redundava para o sacerdote numa trindade como a do dogma, em que a fusão fosse perfeita. Admitida esta preliminar, não havia da parte dos constituintes portugueses a menor idéia de escravizar os seus irmãos ultramarinos, criando para eles um status especial, inferior ao europeu. Borges Carneiro entre outros, que era a figura mais simpática dos constitucionais portugueses e era jurista, esteve mais de uma vez ao lado dos deputados brasileiros e neste caso, dos deportados por Luís do Rego, votou pela sua imediata soltura, fundando-se na ausência de culpa formada. Luís do Rego não era muito familiar com as fórmulas jurídicas e o processo que acompanhou os presos era uma verdadeira monstruosidade. Os presos não tiveram muito que esperar pela sua liberdade e anistia por acórdão da Casa de Suplicação.

Sanada esta injustiça, o Soberano Congresso entendeu não deixar correr à revelia a situação da província, onde os elementos separatistas tinham por si a tradição e podiam num momento dado explodir com todo o vigor do seu ressentimento. A despeito da oposição movida pela respectiva bancada, ainda ajudada por Vilela Barbosa, resolveu-se a expedição para o Recife de uns centos de soldados, a deduzir dos 1.200 destinados ao Rio de Janeiro, afim de ocuparem o lugar do batalhão dos Algarves, cuja retirada havia sido solicitada pelos representantes de Pernambuco (outubro de 1821).

A autoridade local havia que ser provida dos meios de fazer manter a ordem pública, com tanto mais razão quanto os deputados ultramarinos à porfia declaravam ser intento do Brasil conservar a união com Portugal sob a égide de uma constituição comum.

A desunião ia porém insensivelmente ressaltando dos debates, à medida que estes se animavam e davam a conhecer a oposição dos sentimentos e dos interesses, que não era transitória, e sim fundamental. Na questão que acabava de debater-se, Vilela Barbosa mostrava a inanidade do recurso desse punhado de homens impotentes contra o levantamento eventual de uma província, mas os deputados pernambucanos contestavam a própria constitucionalidade do ato das Cortes, acedendo às reclamações de um capitão general que ainda exercia seu cargo por nomeação real, sem o prévio beneplácito do poder legislativo e soberano, quando a autoridade passara legalmente para as juntas de eleição popular. Se a regência não era um poder regular e como tal constituído, muito menos o era aquele sobrevivente de um passado abolido e execrado, que relembrava horas de angústia e de martírio e junto ao qual a presença de novas tropas portuguesas só podia tomar ares de uma provocação com resposta certa.

Notas[editar]

  1. Dr. A. O. Viveiros de Castro, Manifestação de sentimento constitucional no Brasil-Reino, tese ao Congresso de História Nacional. tomo III.
  2. Proclamação das Cortes aos habitantes do Brasil em 13 de julho de 1821.
  3. Melo Moraes, Brasil-Reino e Brasil-Império.
  4. Porto Seguro, ob. Cit.
  5. Cartas sobre a Revolução do Brasil
  6. Carta de 10 de junho de 1817, nos Novos Documentos sobre a administração de Luís do Rego em Pernambuco, copiados do Arquivo Público (Rev. do Inst. Hist., tomo XXIX, 1866).
  7. Mais adiante reza a mesma protestação: "Ela (a Tropa) sabe que homens inquietos e amigos de novidades, e sem refletirem no mal que daí pode resultar, projetam reformas, inventam Governos Provisórios e outros delírios desta natureza, blasonando ter a seu favor a Tropa, e ser esta a sua vontade; mas a Divisão Auxiliadora, e as Tropas da Guarnição desta Corte de primeira e segunda linha, conhecem os seus deveres e o juramento que tem prestado e não podem deixar de fazer subir ao conhecimento de vossa Majestade, que elas nada mais querem nem podem desejar, do que verem efetuados aqueles planos de reforma que forem filhos da meditação e da sabedoria das Cortes; e não os projetos concebidos por pessoas obscuras, e a quem não compete senão obedecer ao que é positiva vontade de Vossa Majestade... Não ousa, Senhor, a Tropa implorar a Vossa Majestade se digne mandar tomar as medidas convenientes para evitar se formem Conventículos, que podem ser fatais ao sossego público, porque isso não é o fim por que se dirige atualmente a Presença Augusta de Vossa Majestade: mas não pude deixar de repetir muitas vezes, que ela reprova esses procedimentos, por serem contrários à boa ordem; e que nada mais quer nem deseja, senão o que a Soberana vontade de Vossa Majestade julgar mais conveniente e mais acertado para os altos fins que tem concebido no generoso projeto de dar à Nação uma Constituição.
  8. Melo Moraes, Brasil-Reino e Brasil-Império.
  9. Diário do Governo de 6 de dezembro de 1821.
  10. História do Brasil, 2.ª ed., São Paulo, 1914. A mitra da Bahia nunca rendeu mais de 10 contos de réis.