O Movimento da Independência/V
Não foram somente o Rio e a Bahia, a nova e a velha capital do vice-reinado e do reino unido, que se pronunciaram pelo constitucionalismo. Sabemos que a iniciativa partiu até do Pará e de fato todo o Brasil novo se entusiasmou pela revolução portuguesa, nela enxergando a implantação de um regime liberal pela vitória das idéias democráticas lançadas pela França na circulação política. A começo não se podia lobrigar o intuito de recolonização deprimente, que teria entretanto de vingar no seio da antiga metrópole desde que sua penosa situação econômica fora um dos motivos essenciais do movimento constitucional.
Em Pernambuco Luís do Rego Barreto representava, pela sua forte individualidade e pelas circunstâncias em que lhe fora confiado e em que ele exercera o governo - imediatamente após a supressão do ensaio de república - um dos centros certos de resistência à separação que poderia resultar da agitação política criada em Portugal e propagada no Brasil, logo que os interesses respectivos entrassem em conflito. Podia-se mesmo considerá-lo o eixo da resistência à independência, se esta solução viesse a formular-se.
Inteligente e culto [1], o capitão-general de Pernambuco compreendeu perfeitamente que não se podia eficazmente opor à transformação em andamento, de um regime absoluto para um regime constitucional. É mesmo crível que não mentisse aos seus próprios sentimentos quando declarou que simpatizara com a revolução liberal, ao ter notícia dela. Sua noção da disciplina militar não lhe permitia contudo manifestar-se em caso algum antes do seu rei, e seu tino político, de certo avivado pelas luzes do genro, Rodrigo da Fonseca Magalhães, que veio a ser um homem de Estado dos mais notáveis do Portugal liberal, mandava-o encaminhar o movimento e adaptar as novas instituições às velhas tradições, em vez de fazer tabela rasa do passado. Eram em suma idéias idênticas às de Palmela e que se consubstanciam na seguinte frase: dirigir o trono a revolução para não ser por ela derrubado.
Às vistas do diplomata e às do general concordavam, ao que se vê, plenamente: apenas Palmela opinava por diferentes constituições para os dois reinos. Luís do Rego, ao mesmo tempo que dirigia ao soberano uma representação, acompanhada de algumas outras de câmaras municipais, expondo as aspirações da população que governava, relativas a uma representação nacional e a uma constituição política firmando os direitos e prerrogativas dos cidadãos, dava ordens para a convocação de uma assembléia de enviados de toda a província a fim de se resolver se se devia ou não jurar a constituição que fosse elaborada pelas Cortes de Lisboa [2].
A decisão arrancada na capital brasileira à pusilanimidade real, tirou-o desse embaraço, unificando a lei orgânica para as duas seções da monarquia e de antemão ratificando-a. Seu papel ficou mais simples, se bem que não isento de dificuldades, tratando-se de defender o monarca contra qualquer eventual tentativa de deposição por manifestação republicana ou de despojamento de uma parte dos seus domínios. Para livrar o Brasil do contágio jacobínico, as tropas portuguesas aquarteladas no ultramar constituíam o que se chamou o "cordão sanitário", e Luís do Rego gabava-se de poder agregar ao seu famoso batalhão dos Algarves, 12.000 pernambucanos fardados, armados e disciplinados, tropa de linha por ele adestrada e comandada por oficiais portugueses.
As forças lusitanas eram, mesmo por espírito de classe, aditas ao constitucionalismo, mas o constitucionalismo do Brasil tinha no entender delas que ser subordinado ao constitucionalismo de Portugal. Não assentava nem convinha que o reino americano tivesse uma economia ou uma psicologia podendo conduzir à dissolução da Monarquia. A adesão ultramarina à revolução portuguesa só devia ter o intuito de robustecer e não envolver o perigo de enfraquecer a união. O liberalismo da mãe-pátria encerrava um pensamento de desforra para com a colônia que a privara da supremacia política e econômica. A clâmide grega que esse liberalismo revestia, era apenas para figurar de clássico: de fato, como observava mordazmente Armitage, quando tratavam dos negócios do Brasil, as disposições das Cortes tornavam-se tão aristocráticas, quanto sobre outros tópicos eram democráticas. O resultado foi que a ex-colônia se persuadiu deveras de que chegara o momento de viver sua vida própria. Como escrevia aos 82 anos o revolucionário Mena Calado, "hoje e então ninguém duvida que o Brasil queria dever somente a si seus melhoramentos" [3].
Felipe Mena Calado da Fonseca, português e antigo escrivão da correição no Ceará, reivindica para si e para o seu amigo, Manuel Clemente Cavalcanti de Albuquerque, a honra e o mérito de terem preparado e organizado a reação local contra Luís do Rego, encarnada na junta de Goiânia. Fizeram ambos parte da leva de presos paraibanos por ocasião da revolução, ainda que Manuel Clemente tivesse caído prisioneiro no combate de Ipojuca, e vieram de São Salvador apostados com elementos liberais baianos a porem cobro ao perigo oferecido à implantação da liberdade pela presença no Recife de Luís do Rego e do seu excelente corpo de oficiais.
Para ser vencedor o espírito nacional, que era neste caso o espírito liberal, indispensável e inadiável se tornava arredar semelhante obstáculo. Ora esse espírito era o de 1817, que se propagara no norte, fora do seu berço pernambucano, sobrevivera às execuções, às perseguições e aos sofrimentos, e mais aceso ia aparecer com o regresso dos anistiados aos seus lares. Os presos de 1817 invocavam com muita razão a afinidade das suas idéias democráticas com as idéias vencedoras em Portugal e achavam-se mais no caso de as representar do que um capitão-general delegado de um poder discricionário [4].
Recorda Porto Seguro que Luís do Rego, procurou conciliar os presos da Bahia, soltos pela junta local de governo provisório, pagando-lhes os ordenados e restituindo-os aos seus lugares. Era ele o primeiro a perceber que sua luta mais renhida seria a que tivesse de sustentar com os elementos revolucionários restituídos à vida ativa, elementos mais combativos do que os outros e nos quais a devoção aos princípios republicanos se fora convertendo pela saudade das vítimas e pelo espetáculo da dor numa fé religiosa impregnada de proselitismo. O paiol para explodir carecia apenas que um incidente, mesmo fortuito, lhe pusesse fogo. A revolução de 1820 era em suma a justificação completa tanto da conspiração que ofereceu pretexto à execução de Gomes Freire quanto da que levou à morte Domingos José Martins.
A memória, tão fresca ainda, do movimento pernambucano de 6 de março, bastava para aconselhar Luís do Rego a proceder com a maior prudência ao experimentar pôr em vigor o gozo dos direitos constitucionais, máxime por um método revolucionário. Nem podia ser outro o método desde que se saíra da legalidade. Ele porém bem suspeitava que a revivescência de uma agitação política construtora acarretaria sua queda.
A tarefa da aclimação em Pernambuco das instituições representativas fora moralmente facilitada pela atitude de el-rei, ao jurar a 26 de fevereiro adotar a constituição que fosse elaborada pelas Cortes e aplicá-la a toda a monarquia. Surgira entretanto, como expressão da efervescência local, o alvitre de uma junta provisória como a do Pará e a da Bahia.
A notícia do pronunciamento do Rio chegou ao Recife justo um mês depois de ocorrido, a 26 de março, e Luís do Rego logo se pusera em guarda para impedir que o constitucionalismo, no seu parecer aceitável e até bem-vindo, se divorciasse da lealdade dinástica. A obra das Cortes era aliás de rótulo monárquico e na sua essência unionista. Para contemporizar todavia com a ebulição política que pressentia crescente, o capitão-general, que já anteriormente obtivera a mencionada representação em favor de uma constituição, como fruto da convocação em conselho extraordinário da câmara e do povo - espécie de cabildo abierto das colônias espanholas - promoveu por essa nova ocasião a eleição de um conselho consultivo de governo, composto naturalmente de pessoas da sua parcialidade. Com efeito nomeou a 31 de março, em virtude de autorização que para tanto lhe foi concedida pelo conselho convocado a 29, a chamada Junta Constitucional Governativa, que ainda recebeu outros nomes e cujo pessoal [5] se modificou no decorrer da sua existência, crescendo ou diminuindo ao sabor das desconfianças pessoais e dos interesses políticos do capitão-general. O pensamento oculto era sempre o mesmo: evitar a separação que ele melhor do que ninguém adivinhava iminente, segundo mesmo mandara dizer para as Cortes de Lisboa [6].
Paralelamente com a sua ação corria porém a ação clandestina dos revolucionários. Diz Mena Calado que, aliás sem aplauso seu, nem do seu amigo Manuel Clemente, foi o morgado do Cabo o primeiro escolhido para cabeça do projetado movimento pernambucano. José de Barros Falcão foi o segundo escolhido, mas com nenhum dos dois logrou tomar corpo o desígnio, que só assumiu feitio prático e entrou em caminho de realização depois da chegada a Pernambuco, nos princípios de junho de 1821, daqueles dois egressos do cárcere baiano, mais cheios de ardor ou mais pertinazes do que os precedentes emissários da Bahia.
Foram ambos sem tardança para o interior, para o engenho Cangahu, de Joaquim Martins da Cunha Souto Maior, e lá, durante mais de dois meses, urdiram em completo sigilo e com a máxima cautela a conspiração, cujas ramificações se estenderam à Paraíba, onde os dois agitadores foram a indagações e onde contavam com a cooperação de vários companheiros de enxovia, ao mesmo tempo que com a oposição do batalhão, cujo quadro se compunha de oficiais portugueses e de inferiores brasileiros. Entre estes se iniciou, como era lógico, a propaganda para recrutamento do pessoal revolucionário.
Luís do Rego, contrariando e negando o anelo de uma eleição popular de junta a fim de permanecer ele à frente do governo, pretendia agir de acordo com o decreto das Cortes de 18 de abril - o decreto que declarara legítimos os governos locais que se estabelecessem para realizar a regeneração política da nação portuguesa e responsáveis aqueles que, mesmo sendo autoridades, movessem oposição aos beneméritos da pátria que tivessem chamado a si tal regeneração. A Constituição fora proclamada na Paraíba a 29 de abril; Luís do Rego fê-la proclamar e jurar no Recife e Olinda a 29 de maio e mandou proceder às eleições para deputados às Cortes Constituintes, as quais tiveram pacificamente lugar a 7 de junho.
A legitimação pela assembléia portuguesa dos governos provisórios organizados tumultuariamente e que lhe tivessem prestado termo de obediência, uma vez posta em violento contraste com os sucessos de 5 de junho no Rio de Janeiro, que cercaram de entraves o governo civil e militar da regência, levou no entanto, o capitão-general de Pernambuco a pensar na real eleição de uma junta. O conselho porém por ele adrede convocado, adicionado de deputados eleitos, comandantes de corpos e outras pessoas gradas, opinou de preferência pelo reforço da junta consultiva já existente. Com isto não fez mais do que aumentar a oposição; concomitantemente cresceram as perseguições, que nem todas eram sem razão, e o regime das conspirações, denúncias e sumários de culpa chegou à crise aguda de 21 de julho, quando Luís do Rego escapou mal ferido à pontaria de João Souto Maior. Como conseqüência, as 42 deportações para Lisboa e 13 degredos para Fernando de Noronha.
Depois de restabelecer-se dos ferimentos recebidos por ocasião do atentado, Luís do Rego, não obstante amparar sua posição com o juramento de fidelidade às Cortes, resolveu, no dizer de Porto Seguro, pedir sua demissão e desde logo proceder à eleição de uma verdadeira junta de governo, a meio do que o teria surpreendido a notícia da organização da junta de Goiânia, a 29 de agosto. Parece mais razoável o que escreve Mena Calado, a saber, que o capitão-general teve notícia dos sucessos de Goiânia no dia anterior ao da recepção do ofício da respectiva junta e por isso, reunindo a câmara do Recife com os militares da sua escolha, "amassou uma coisa a que deu o nome de conselho governativo da província", a qual quis fazer passar pela junta ideal [7].
A iniciativa do movimento de Goiânia partiu de Nazareth, sendo o primeiro convidado a aderir e participar no levante o tenente-coronel de milícias Manuel Inácio Bezerra de Melo, senhor do engenho Tamataupe. Daí foram expedidos os estafetas a aliciarem outras forças para se levar a cabo a eleição de um governo provisório, no espírito, como se dizia, das ordens emanadas de el-rei Dom João VI. Goiânia foi marcada como prazo dado do pronunciamento das milícias. Mena Calado começou por ler seu enfático manifesto à brigada de Bezerra de Melo, e pelas cinco horas da tarde saíram de Nazareth uns 600 e tantos homens a pé e a cavalo. Após uma noite de chuvas torrenciais chegaram de madrugada às proximidades de Goiânia uns 200 homens: 400 e tantos tinham desertado, mau grado a eloqüência tribunícia do agitador português.
Conseguiram entretanto esses poucos insurretos que a vila de Goiânia aderisse ao movimento, apesar da oposição do juiz de fora Dr. Sarafana. A pequena força disposta com arte em volta e a distância do povoado, e entremeada com a gente que para lá se dirigia ou de lá saía e era propositadamente demorada, fez impressão. O vereador Gomes dos Santos, mandado a examinar a situação, volveu exclamando: "Tem gente como bicho". Logo em seguida era a câmara ocupada, forçada sua anuência, substituídos os oficiais portugueses do batalhão ou companhia por oficiais brasileiros, cortadas as comunicações com os outros centros de população e intimado o capitão-general.
Este achava-se politicamente assaz enfraquecido, mas não estava na sua natureza, nem era próprio do seu brio de militar, ceder sem lutar. O número dos seus presos políticos era avultado, turva a atmosfera que o cercava; mas julgou poder arrostar a hostilidade que se desenvolveu e espalhou rapidamente, logo que o descontentamento latente pôde firmar-se e agrupar-se em redor de um centro de ação. Tal centro vinha oferecer-lhe a junta rebelde? [8] e os senhores de engenho da redondeza foram os primeiros a manifestar-se em seu favor. O que houve porém de pior para o governador foi a deserção de milicianos brancos e de cor, que se seguiu na capital à divulgação da notícia da insurreição e que foi imitada por muitos jovens fora do serviço, mas em condições de pegarem em armas, e também por soldados de linha.
Mrs. Graham, que esteve em Pernambuco de 21 de setembro a 14 de outubro de 1821 - o tempo que aí estacionou a fragata de guerra britânica Dons, do comando do seu marido - escreve [9] que grande parte do regimento de caçadores abandonou o capitão-general para juntar-se aos revoltosos, formando o corpo mais eficiente do ataque contra o Recife, empreendido com armamento e cartuchame tirados por traição do depósito do Arsenal de Guerra. A impopularidade de Luís do Rego conduzia a atos tais. Nem a sua junta tinha prestígio para substituir o que a ele lhe faltava, porquanto o sistema que seu governo representava pecava pela base perante as novas condições requeridas, e tanto assim que apesar do governo constitucional eleito a 30 de agosto pela câmara, clero e nobreza [10], Luís do Rego assegurava para Goiânia, ao propor conciliação a 4 de setembro, que pretendia convocar as câmaras municipais da província em congresso, delegando cada uma dois enviados. "Senhores - diziam os do Recife - lancemos no golfão do esquecimento todos os contratempos passados: reine a amizade constitucional, todos revivemos cidadãos; como é possível que queiramos converter em instrumento de guerra as prerrogativas da paz? Nós esperamos de Vossas Senhorias as provas da mais cordial união, e aguardamos os seus representantes para estreitarmos com eles os laços da amizade, esmerarmos todos pelos interesses desta província e da população". O tom do apelo denuncia debilidade, quase humildade. A junta de Goiânia reteve o portador do ofício, coronel Acioli, e respondeu com altivez, quase arrogância, que reconhecida pela imensa maioria das câmaras da província, não podia nem devia alterar o que se achava feito. As blandícias foram impotentes, como tinham sido as ameaças, para fazê-la mudar de atitude. O resto estava lançado: as armas decidiriam.
A junta rebelde não esperou ser atacada: promoveu ela própria a ofensiva, como o melhor meio de vencer. Entretanto a junta legalista - se é que alguma era legal - continuava a ensaiar apelos à moderação, à concórdia e até à fusão não deixando por cautela de fazer marchar tropas sobre Goiânia. O primeiro contato com essas forças saídas do Recife teve lugar em Iguarassú e aí se deu a defecção da guarda avançada dos legalistas, que era composta de parte do 1.º batalhão de caçadores de linha. Intimidado ficou o último emissário de Luís do Rego, Dr. Uchôa, por um manejo que Mena Calado relata, carregando talvez a mão no pitoresco, porque o terror do Dr. Uchôa ele o descreve mortal ao ouvir os toques de rebate e os morras da rapaziada, deixando-se trancar num armário até ser transportado para o Convento do Carmo.
Seja ou não exato o episódio, desses talvez a que se recorre para enjoliver l'histoire, o fato é que o emissário de Luís do Rego, após assinar acobardado uma ordem de contramarcha à expedição, se recolheu no Recife a meio de novas deserções, do resto dos batalhões de caçadores e do esquadrão de cavalaria, permitindo aos rebeldes reforçarem seus contingentes e iniciarem sua marcha a 15 de setembro.
A junta de Goiânia intitulava-se Governo Constitucional temporário e dizia agir de acordo com as Cortes Gerais da Nação Portuguesa, sem intuitos de separação. Na sua primeira reunião, aos 2 de setembro, depois de decidir o infalível aumento de pagamento às tropas, passando cada soldado a ter 200 réis diários e recebendo os desertores graduados um posto de acesso, deliberou-se pôr luminárias na vila e celebrar um Te Deum pela feliz chegada de Dom João VI a Portugal [11]. Considerando-se a junta o governo "realmente reconhecido legitimo", aprovou nas suas sessões que se oficiasse ao secretário do governo do Recife para que remetesse para Goiânia todos os ofícios e documentos originais dirigidos pelas Cortes e pela regência à província de Pernambuco, e que se ordenasse à junta da Real Fazenda que não mais pagasse soldos e ordenados ao general Luís do Rego e pessoas às suas ordens, só podendo as despesas públicas. ser autorizadas pelo governo verdadeiramente legal.
Comandava a expedição de Goiânia o sargento-mor José Camilo [12] Pessoa de Melo. De acordo com a ata da sessão, marcharia a força da seguinte forma: na vanguarda o corpo de guerrilhas, o corpo de cavalaria e uma parte do regimento de caçadores; no centro o batalhão 14, na vanguarda do estado-maior, marchando na retaguarda deste o batalhão 16 com o corpo de artilharia adido; na retaguarda o batalhão 15, seguido da bagagem, dos presos de Estado que de Iguarassú seriam remetidos para a fortaleza de Itamaracá, onde havia maior segurança, do corpo de henriques e pardos, da outra parte dos caçadores e de outro corpo de cavalaria [13].
No Recife dispusera-se Luís do Rego a combater essas forças com os recursos à sua disposição, gradualmente diminuídos pelas sucessivas fraternizações de regulares. Mrs. Graham deixou-nos uma animada descrição da cidade assediada: cavalos selados e soldados armados, prontos a montá-los ao primeiro sinal; canhões com morrões acesos ao lado, em frente ao palácio do governo; as lojas fechadas, porque os negociantes, constituindo a milícia, estavam no serviço militar, com tanto maior zelo quanto muitos eram portugueses da Europa e se arreceavam do saque no caso de um assalto feliz; peças de campanha, com sentinelas vigilantes, nas extremidades das ruas e nos encontros das pontes; o mercado sem legumes, sem leite, e escasso de pão de trigo, de bolos de mandioca e de combustível; os escravos mandados recolher a cada alarma para que não ajudassem de dentro os atacantes; índios de arco e flechas cooperando na defesa a troco de um gole de cachaça e de um punhado de farinha.
Os dois pontos extremos do cerco eram Olinda e Afogados onde a investida se desenhou, verificando-se o encontro mais renhido a 21 de setembro, quando uma das colunas, a do sul, foi detida no caminho do Recife pelo canhoneio do forte das Cinco Pontas ao passo que a do norte atacava Olinda, ataque repetido na noite de 29. Luís do Rego recebera da Bahia um reforço de 300 homens de linha (350 diz Mrs. Graham, 340 a correspondência do príncipe Dom Pedro para seu pai) com petrechos de guerra e munições, pelo que se sentiu no primeiro momento mais animado. A junta de Goiânia, por seu lado cada vez mais esperançada, contava cerca de 2.000 homens em armas e instalou seu quartel-general em Beberibe.
Mrs. Graham que, por ter voltado para bordo, deixou de presenciar o ataque de Afogados pelos constitucionais de Goiânia na noite de 1.º de outubro, teve contudo ensejo de visitar o seu acampamento, incorporando-se na embaixada inglesa despachada para obter a livre passagem da roupa suja do navio, mandada lavar nas águas claras e frias do Beberibe e retida pelos patriotas. Por mais animosa que ela fosse, teria porventura hesitado em ir se já então soubesse que na oferta de paz por parte da junta provisória de Pernambuco, esta afirmava que o governo que se reputava legal contava como a assistência das fragatas inglesa e francesa estacionadas no Recife, oferecida sobre o fundamento de proteção à propriedade estrangeira, de súditos das duas nações, existente na cidade.
Escreve Mrs. Graham que positivamente nenhuma assistência fora oferecida pela fragata inglesa: fora é verdade solicitada, mas recusada de acordo com as instruções de estrita neutralidade do governo britânico, limitando-se o comandante a prometer proteção pessoal a quem quer que dela viesse a carecer, independentemente da nacionalidade. A proteção à propriedade britânica achava-se garantida com a presença do navio de guerra, que não se encontrava ali para outra coisa.
A pequena expedição da Dons levava passaportes e fora informada do santo e senha. Duas milhas separavam o último posto do governo do primeiro posto dos patriotas, cuja guarda de farroupilhas consistia de um negro de cara jovial, armado de uma espingarda de caça, um nacional empunhando um mosquete (blunderhuss) e dois ou três mestiços armados de paus, espadas e pistolas. Mais adiante, numa encruzilhada e rodeada de molecas toucadas de vermelho, com balaios à cabeça, vendendo fruta e água fresca, a casa de guarda, donde um jovem oficial de caçadores com um todo de cavalheiro - (gentlemanlike) escreve Mrs. Graham - acompanhou a party até o pouso da junta.
No caminho encontraram a deputação (segundo Mrs. Graham era a deputação da Paraíba) que ia entender-se com Luís do Rego - cavalgada de 40 pessoas, levantando bandeira branca, ostentando, umas, ricas fardas militares, indo outras à paisana, com o traje usual dos senhores de engenho. A tropa que ia aparecendo estava sofrivelmente equipada, mas curiosamente vestida. Não mais de 200 tinham uniforme e pertences de soldado: o que mais se via eram roupas e armas de toda espécie, sendo as roupas de couro, de pano e de linho, e variando os feitios das casaquinhas curtas (shortjackets) aos compridos chalés escoceses.
Mena Calado, na frase da autora a smart little man (um homenzinho esperto), falando francês que se entendia (tolerable French), convidou-a também a entrar na sede da junta e ouvir uma catilinária contra Luís do Rego e sua tirania, "que tinha muito do sabor dos discursos carbonários na Itália". O vestíbulo da casa tinha a um tempo aspecto de quartel e de hospital: ocupavam-no soldados, cavalos e feridos, cujos gemidos se misturavam com o berreiro alegre dos sãos. Pela escada, um tal tropel de gente que era custoso subir; numa sala grande e enxovalhada, com restos de talha dourada nos painéis do teto e uma mobília disparatada, cada cadeira do seu tamanho e feitio, funcionava a junta.
Mrs. Graham, que nessa ocasião foi muito interrogada pelos membros desse governo em armas sobre as probabilidades do reconhecimento da independência do Brasil pela Inglaterra e sobre a possibilidade de uma intervenção inglesa para ajudar tal solução, de antemão se defende contra qualquer acusação que lhe possa ser assacada de pretender na sua narrativa zombar das reuniões populares do Brasil. Ela era a primeira a reconhecer que semelhantes reuniões, de caráter político, tinham em vista os melhores objetivos: a independência nacional e a liberdade civil sob uma legislação reformada, admitindo aliás que Pernambuco tinha fartos motivos particulares de queixa. A comparação que lhe sugeriu a carbonária italiana é toda, escreve ela, em abono do Brasil, porque as revoluções brasileiras não tiveram o caráter sanguinário das agitações italianas e o país encontrou no seu soberano, em vez de um tirano, como tantos da Itália, um defensor e um protetor.
A junta de Goiânia celebrou sua primeira sessão em Beberibe a 5 de outubro [14], já para discutir propostas de conciliação. A partida estava perdida para o governador que a junta adversa declarara demitido do seu cargo, avocando o tratamento de autoridade legal por virtude do mesmo decreto de 18 de abril de que se socorria Luís do Rego para prolongar a agonia do seu poder. Rodeavam-no de resto traidores e espiões: o resultado do seu conselho militar de 2 de outubro, o qual findou à meia-noite, era juntamente com o plano da avançada combinada, conhecido em Beberibe uma hora depois, e às duas horas da madrugada recebia Luís do Rego um ofício irônico de Mena Calado, que burlara a marcha concertada [15].
O melhor era entrar em composição, tanto mais quanto recebera entrementes o capitão-general um oficio do príncipe regente do Brasil, de 21 de agosto, mandando estabelecer na província, de ordem das Cortes, uma junta provisória de governo, o que não era possível levar a efeito com uma luta aberta. Para serená-la foram despachados do Recife três emissários: o tenente-coronel Luís Francisco de Paula Cavalcanti de Albuquerque (depois visconde de Suassuna), o negociante Gervásio Pires Ferreira e o tenente-coronel João de Araújo da Cruz, este último enviado pelo governo da Paraíba [16]. A tratar com eles apresentaram-se a própria junta de Goiânia e alguns representantes de câmaras da província, nomeadamente Goiana, Pau de Alho, Limoeiro, Iguarassu, Cabo, Serinhaem e Santo Antão.
Mena Calado, como preliminar, negou a legitimidade dos emissários do Recife, pelo fato de negar a legitimidade da autoridade de Luís do Rego. Não acontecia outrotanto com os enviados paraibanos, cujos diplomas foram julgados verdadeiros e legais, porque eram mediadores e não representantes do conselho governativo do Recife. De fato, o governo da Paraíba fora solicitado para intervir em favor de uma e outra parcialidade, mas preferira, concordando com o seu povo, abster-se de manifestar simpatias e assumir o papel de conciliador.
Os delegados de Luís do Rego foram contudo reconhecidos por maioria de votos, sem que isto implicasse o reconhecimento do capitão-general. 0O essencial parecia decidi-lo a embarcar para Portugal, diminuir o número de tropas em armas e não só "sossegar o espírito dos povos", como "aliviar a agricultura da suspensão dos trabalhos rurais, desembaraçando as milícias empregadas no restabelecimento da ordem". Do interior tinha vindo bastante gente armada e o governo de Goiânia desde esse dia tratou de licenciar as forças reunidas, despachando-as para suas localidades.
Não há dúvida que com o governo rebelde de Goiânia estava o espírito da nova legalidade, segundo a tinham construído a decisão das Cortes de Lisboa e o aviso do príncipe regente de 21 de agosto de 1821, devendo a junta constitucional provisória ser eleita pelos deputados das câmaras da província na sua capital. Chegara-se a um ponto em que o desejo de pacificação era grande de ambos os lados: apenas Mena Calado, intransigente sempre, protestava em cada ata de reunião, por honra e para honra de Pernambuco, contra todo instrumento em que figurassem Luís do Rego e seu conselho governativo, cuja jurisdição ele repelia.
O acordo, representado por um armistício e uma convenção ratificados a 9, fizera-se porém sobre a melhor base possível: a da subsistência da autoridade das duas entidades administrativas apenas pelo curto período que poderia mediar entre a convenção do Beberibe e a chegada da determinação das Cortes soberanas acerca da instalação da junta provincial a ser eleita. Ficavam entretanto, girando nas suas respectivas órbitas - o conselho governativo no Recife e Olinda e seus termos, e o governo de Goiânia nos distritos municipais que o tinham acompanhado. Ambas as entidades concordaram nas medidas para manutenção da ordem, franquia das comunicações e pagamento das tropas e dos funcionários públicos.
Todas as câmaras foram então convidadas a mandar, cada uma três representantes, à reunião fixada para 26 de outubro na Sé de Olinda, com o fim de ser eleito o governo provisório constitucional, o qual ficou composto de Gervásio Pires Ferreira, Felipe Neri Ferreira, cônego Dr. Manuel Inácio de Carvalho, Bento José da Costa (único membro português), Joaquim José de Miranda e tenente-coronel Antônio José Vitoriano Borges da Fonseca, sendo o primeiro presidente, e secretário o padre Laurentino Antônio Moreira de Carvalho.
Já por esse tempo tinham chegado a Pernambuco o decreto especial das Cortes de l.º de setembro e a carta régia de 2, mandando criar uma junta provisória escolhida pelos eleitores de paróquia das comarcas de Olinda e do Recife, e também pelos da comarca do sertão que por estarem mais próximos pudessem reunir-se no prazo de dez dias, dentro do qual se devia impreterivelmente concluir a referida eleição. A jurisdição administrativa da junta compreendia, na forma das demais criadas, todos os ramos do serviço público, sem restrição alguma, sob o regime das leis e disposições existentes, e a autoridade militar ficava desde então separada e independente da autoridade civil, confiada a um governador das armas, agindo de harmonia e em correspondência com a junta, porém sujeito ao governo do reino e responsável a este e às Cortes.
Foi uma modificação profunda, posto que menos do que à primeira vista aparece, a que assim se introduziu na administração brasileira, cuja feição civil ficava sendo autônoma, representando entretanto a feição militar o elo que ainda prendia a antiga colônia à sua metrópole, a qual por meio desta autoridade reafirmava o seu poderio. O governador das armas verdade é que facilmente poderia converter-se num ditador, dispondo da força pública para coagir a junta de governo e suspender as liberdades constitucionais.
A concepção desta distinção nada imaginaria não se tem modificado com o correr do tempo, apesar de toda a civilização de que, pelo menos até a conflagração de 1914, se vangloriava o mundo contemporâneo. As garantias constitucionais só existem para tempo de paz: em tempo de guerra desaparecem como por encanto, ou são seqüestradas, sem que ninguém se queixe. É em suma o mesmo que recomendava o ministro Tomás Antônio ao conde de Vila Flor quando este foi mandado tomar conta do governo da Bahia, o que se não realizou pela retirada forçada do conde da Palma: "Havendo tumultos, ou motins, tenha V. E. o cuidado de que se façam aos réus processos judiciais, para não vir a embaraçar-se o ânimo dos juizes, na imposição das penas. Mas, quando for necessário preveni-los ou no flagrante, proceda militarmente na forma do regimento de governadores, pois a conservação do Estado é de Superior consideração" [17].
Esperava-se a decisão de Lisboa para regularizar a situação criada pela convenção do Beberibe, a qual estatuíra que os deputados da junta de Goiânia tomariam parte igual no conselho à da administração existente e o capitão-general permaneceria à testa do departamento militar, separação de poderes que veio a ser logo confirmada pela legislação adotada em Lisboa com relação ao reino americano, conquanto não mais em proveito de Luís do Rego. Este, ao mesmo tempo que o aviso das resoluções tomadas, recebia ordem de se não intrometer na eleição, à qual concorreram 134 eleitores de paróquia, e de entregar o governo à nova junta, retirando-se para Lisboa, o que fez na barca francesa Charles Adèle, no próprio dia da eleição. A junta eleita, que era toda composta de gente da terra menos um, tomou posse a 27, assumiu o governo no Recife a 28 e prestou juramento a 31 de outubro.
Com Luís do Rego deviam recolher-se as forças européias, o que as Cortes contramandaram, enviando até novos contingentes, quando perceberam o passo errado que assim iam dar. O capitão-general já estava porém longe e o batalhão dos Algarves já se achava restituído à pátria (janeiro de 1822), quando chegaram as novas ordens, que a junta deixou de cumprir, proibindo o desembarque das tropas de reforço, se bem que fornecendo abastecimento aos transportes, que foram expedidos para o Rio de Janeiro (fevereiro de 1822). Só o comandante militar, substituto efetivo de Luís do Rego, general José Correia de Melo, desceu para ocupar seu posto.
Das tropas da Bahia depressa se tinham visto livres os pernambucanos. Essas tropas tinham aliás manifestado tendência para se juntarem aos patriotas, mas seu comportamento foi péssimo. Diz Mrs. Graham que suas bebedeiras e arruaças, nos dez dias em que estiveram em Pernambuco, indignaram a população (quite disgusted the people).
As juntas foram o alicerce do Brasil constitucional. Entre a Bahia e o Pará elas se foram sucedendo num espírito de passividade nacional, diferentes para com a política unionista das Cortes, refratárias à subordinação a um centro executivo brasileiro.
Sobre Sergipe, não querendo o governador jurar a Constituição, estendeu a junta portuguesa da Bahia sua autoridade, que só foi dissolvida por levantamento popular quando se aclamou a independência, em outubro de 1822. Alagoas teve porém junta própria desde 11 de junho de 1821, com o governador por presidente, sendo eleita a nova a 31 de janeiro de 1822, a qual continuou fiel às Cortes de Lisboa, desobedecendo aos decretos da regência do Rio de Janeiro, até que a 23 de julho de 1822 foi reconhecida a autoridade de Dom Pedro, assumindo a presidência da junta local o juiz de fora de Penedo e ouvidor interino da comarca, Caetano Maria Lopes Gama, que era pernambucano e morreu visconde de Maranguape. Na Paraíba o governador, coronel Fonseca Rosado, fez logo a 17 de abril ler o aviso do juramento da Constituição no Rio a 26 de fevereiro, e a pedido da oficialidade do batalhão de guarnição ele próprio a jurou a 29. A junta governativa só foi eleita a 3 de fevereiro de 1822, de acordo com o decreto das Cortes de 29 de setembro e presidida pelo tenente-coronel João de Araújo da Cruz, mediador em Beberibe. Do Rio Grande do Norte era ainda governador José Inácio Borges, que fora deposto pela revolução de 1817 e reposto pela contra-revolução e que agora fez proclamar a Constituição a 24 de maio, sendo a 12 de dezembro eleita a junta provisória, que continuou até a independência.
O capitão-general do Maranhão, marechal de campo Bernardo da Silveira Pinto da Fonseca, pretendeu imitar Luís do Rego, fazendo jurar a Constituição a 5 de abril e permanecendo ele, por vontade da tropa, à testa do governo, com a assistência de um conselho consultivo presidido pelo bispo. Numa nova reunião, "fruto do suborno e do terror" na expressão de Porto Seguro, porque se efetuou após a prisão dos elementos oposicionistas, alcançou o governador novo triunfo, pelo que, confirmado no poder, prosseguiu discrecionariamente como dantes até que, pela disposição das Cortes, houve que eleger a junta governativa, o que, teve lugar a 16 de fevereiro de 1822, embarcando o governador a 28.
Esta junta, presidida pelo bispo, frei Joaquim de Nossa Senhora Nazareth, era composta de pessoal partidário das Cortes. As ordens da regência viam-se desacatadas e a atitude da província assemelhava-se à da Bahia e à de Pernambuco depois da retirada de Luís do Rego. O Norte formara na sua dispersão um bloco anti-unionista, acompanhando-o a mais importante das capitanias centrais, que era ao mesmo tempo a mais povoada das províncias do Brasil - Minas Gerais, e servindo-lhe de contraste a coesão ultramarina, com vistas a nacional, que no Sul se entrara a desenhar pela inteligência entre o Rio de Janeiro e São Paulo.
O Norte era então das duas seções, e englobando num só os dois Estados do Brasil e Pará-Maranhão, a que primava pela valia agrícola e comercial. Da Bahia "rica e ameníssima" dizia a carta de congratulação das Cortes a el-rei pelo juramento de 26 de fevereiro, que era "a chave desse vastíssimo continente". No seu porto entraram, em 1816, 519 embarcações e saíram 431. As suas importações subiram no mesmo ano a mais de 9.000 contos, entrando os escravos pelo valor de 2.500 contos e seguindo-se-lhes os vinhos e as chitas com quase 900 e 800 contos respectivamente. Sua exportação excedia 6.000 contos, o dobro de três anos antes. O Maranhão, que no fim do século XVIII não contava mais do que 75.000 habitantes e contaria nessa ocasião 100.000, era uma capitania economicamente organizada, tendo, em 1820, 18 fábricas de descascar e beneficiar o arroz, 4 prensas de algodão, 6 olarias, 20 fornos de cal, engenhos de açúcar, destilações e teares de algodão. O Pará exportava igualmente algodão e arroz, posto que em menos consideráveis quantidades, mas a variedade dos seus artigos de exportação era superior, abrangendo cacau, café, salsaparrilha, canela, peles, óleo de copaíba, açafrão, anil, goma e madeiras de construção.
Foi a mesma junta maranhense a que tentou resistir à proclamação da independência quando o elemento favorável à separação tentou declarar a adesão da província, a 19 de outubro de 1822. Invocou ela "que nenhumas relações tinham os maranhenses com o Sul do Brasil, ao passo que os seus parentes estavam em Portugal, que era o verdadeiro mercado dos seus produtos, e para onde as próprias comunicações eram mais fáceis que para o Rio de Janeiro, nem que a natureza, com as suas monções e ventos, tivesse querido mostrar-lhes a união que mais lhes interessava" [18].
Ensaiou o Maranhão formar uma liga portuguesa com o Piauí e o Pará. A primeira junta paraense durou até ser instalada a outra a 11 de março de 1822, chegando de Pernambuco em abril o comandante das armas, brigadeiro José Maria de Moura. Apesar de igualmente infensos à regência do príncipe, general e junta não se entendiam bem: só concordavam plenamente em subtrair o Pará à influência do governo do Rio de Janeiro, cujas instruções não eram cumpridas, não sendo, no entanto, unânime o sentimento de lealdade para com Portugal, a saber que o da independência ia penetrando na região amazônica, embora mais vagarosamente do que nos centros fluminense e paulista.
As condições em que se operou a transformação política em várias províncias do Brasil, sobretudo do Norte, foram a causa da agitação que ali perdurou passando de aguda a crônica, e que se espraiou sob a forma de rixas pessoais, de tropelias e violências, de assassinatos bárbaros em que se compraziam famílias inteiras, legando os ascendentes aos descendentes suas vinganças e montando uma máquina de represálias inexoráveis. Era o regime puro e simples da vendetta e foram precisos largos anos para se restabelecer a normalidade moral, ao mesmo tempo que a constitucional.
Não houve capitania que mais sofresse desse estado de coisas do que o Ceará, que em 1821-1822 passou pelas mudanças comuns a todas: a deposição do governador, que era um oficial de marinha - no dizer de João Brigido [19], avaro, devoto e poltrão -; a organização de uma junta constitucional sob a presidência do comandante da força de linha Francisco Xavier Torres e a sua substituição por outra junta, nomeada pelos eleitores dos deputados às Cortes de Lisboa. A independência foi proclamada em Icó a 16 de outubro de 1822, ao se reunirem ali os eleitores do sul da província para a escolha dos constituintes brasileiros. O governo temporário por eles organizado, pela aliança de Tristão de Alencar Araripe, um dos implicados na revolução de 1817, com o chefe realista Filgueiras, tomou conta do Ceará e decidiu socorrer o Piauí contra a truculência de José da Cunha Fidié, que não permitia à província juntar-se à causa da independência e rebatia pelas armas as forças dos patriotas. A expedição cearense compunha-se de vaqueiros mal-armados, mal-abastecidos e mal comandados, mais se assemelhando a um movimento de tribo nômada, mas tinha por si o número - 6.000 homens, e o cerco posto a Caxias, onde se acoutara Fidié, redundou na capitulação deste (1.º de agosto de 1823).
Governava São Paulo em 1821 o capitão-general João Carlos Augusto de Oyenhausen, de ascendência austríaca e futuro marquês de Aracati. Nas capitanias de Mato Grosso e Ceará, que anteriormente administrara, deixara excelente reputação, sendo que trouxera do reino europeu para o Ceará a comissão especial de prender um potentado que assassinara um juiz ordinário, diligência que cumpriu "com audácia e tática" no dizer de João Brígido, sempre preenchendo suas funções a contento de todos.
A 23 de março de 1821 mandou ele publicar por bando na capital paulista o advento do regime constitucional e esperou que se manifestassem os habitantes, o que veio a suceder exatamente três meses depois, a 23 de junho. O estado de desassossego era idêntico ao das outras capitanias e o capitão-general sentia-se desmoralizado, na impossibilidade de agir como competia a uma autoridade da sua categoria, assaltado até por uma sublevação militar motivada pela demora na aplicação do aumento do soldo. O civismo de um capitão, por nome José Joaquim dos Santos, poupou à cidade as indignidades e os desatinos que tinham em mente os desordeiros e restabeleceu o sossego, generalizando-se a convicção de que somente a formação de um governo provisório local acalmaria o mal-estar e restituiria o prestígio ao poder público.
Foi mesmo para reprimir a anarquia latente que alguns patriotas levaram a cabo esse intento, fortalecidos na sua resolução pela convocação dos corpos de milícias. Os caçadores de linha prontamente apoiaram o movimento, anunciado pelo sino da câmara tocando a rebate. Congregados povo e tropa e convidados ouvidor e senado da câmara para assistirem à eleição, foi o Dr. José Bonifácio de Andrada e Silva instado para presidir o ato, o que é a melhor prova do respeito que inspirava sua pessoa.
José Bonifácio era com efeito um tipo de homem que não podia sugerir desconfiança a parcialidade alguma. Tinha 58 anos: brasileiro de nascimento, estudara em Coimbra; formara-se em leis e em filosofia; dedicara-se ao estudo da mineralogia e da metalurgia; viajara e praticara durante dez anos, de 1790 a 1800, em toda a Europa, às custas do governo; fora no seu regresso nomeado desembargador, intendente geral das minas e professor da universidade; desempenhara comissões oficiais de caráter científico e propósito prático, tais como o encanamento do rio Mondego e a arborização das suas margens; defendera o reino europeu à frente do batalhão acadêmico por ocasião das invasões francesas e, como sócio e secretário da Academia Real das Ciências, salientara-se pronunciando elogios históricos, entre eles o da rainha D. Maria I, repassado do sentimento monárquico que nele jamais se dissipou, mesmo quando associado a um sentimento democrático mais intenso, produzido pelo ardor patriótico ou pelos ressentimentos pessoais a que nenhum ser humano pode ser alheio.
Não podia por tudo isso deixar de querer a Portugal, pátria da sua inteligência, berço das suas amizades espirituais e ninho das suas saudades. Voltando porém para o Brasil em 1819, assistira ao ocaso do reinado americano de Dom João VI e sentira palpitar em redor de si as aspirações, posto que confusas e desunidas, da jovem nacionalidade que almejava bater suas asas ao sol da liberdade e adejar sem peias no espaço imenso. Esposando tais aspirações, ele não as minguara com preconceitos bairristas, antes as engrandecera com um golpe de vista que abarcava todo o país, sem todavia sacrificar a ordem particular dos interesses locais.
As viagens e o intercurso delas derivado tinham alargado os horizontes do sábio mineralogista e químico, que aprendera a harmonizar cosmopolitismo com patriotismo e distribuir os encargos e as responsabilidades de caráter público pelas esferas federal, nacional e provincial, como dão fé essas justamente afamadas instruções da junta de São Paulo aos deputados paulistas às Cortes de Lisboa, para as quais José Bonifácio não só pôs em contribuição sua própria experiência, a familiaridade do seu espírito enciclopédico com os negócios políticos, como as lembranças e sugestões oficialmente solicitadas das câmaras municipais da província. As instruções por ele redigidas tornaram-se nas suas mãos alguma coisa que recorda os cahiers de charges com que os representantes das províncias francesas se apresentaram em 1789 à assembléia dos Três Estados e que tanto serviram a Taine para a sua descrição da França do antigo regime no momento da revolução.
Por ocasião da formação da junta de São Paulo deu José Bonifácio, apesar da sua natureza trêfega e impetuosa, prova de espírito público moderado e conciliador. Foi ele quem propôs para presidente o mesmo capitão-general Oyenhausen, após uma fala de que resultava seu ardente desejo de concórdia. Aclamado ele próprio vice-presidente, propôs à aprovação popular os vogais representantes das várias classes - a eclesiástica, a militar, a comercial, a literária e pedagógica e a agrícola, com mais três secretários, do Interior e Fazenda, da Guerra e da Marinha [20].
Começava desde aí a revelar-se o espírito de organização que tanto distingue São Paulo na atual federação republicana e que já no regime monárquico o caracterizara, quando ainda lhe não cabia o primado da valia econômica. A solução do problema dos destinos brasileiros dar-se-ia quando se encontrassem e congregassem a decisão de Dom Pedro e a reflexão de José Bonifácio, a vontade e o pensamento.
A junta de São Paulo foi a primeira a reconhecer a autoridade do príncipe regente. "Os habitantes - escrevia Dom Pedro a Dom João VI [21] - organizaram uma junta provisória que depende de mim, exceto no que diz respeito a dinheiros públicos que se negam a fornecer para as necessidades do Rio de Janeiro [22]. Reclamaram para a junta os mesmos poderes de que se achava investido o governador a quem coube a presidência. A vice-presidência foi confiada a José Bonifácio de Andrada a quem se deve a tranqüilidade atual da província de São Paulo. Enviaram dois deputados para me cumprimentar em nome da junta e chamar a minha atenção sobre a parcela de autoridade que lhe foi confiada. Recebi em audiência pública os deputados no palácio da cidade para mostrar que eu não ambiciono nada mais do que o bem geral, e que me uni a eles de moto próprio com sentimentos puramente constitucionais".
Notas
[editar]- ↑ José de Barros Falcão, uns dos atores e das vítimas da revolução pernambucana de 1817, escrevendo muitos anos depois uma Exposição dos seus serviços (Pernambuco, 1849), refere-se às "maneiras polidas" de Luís do Rego, trata-o de "nimiamente generoso" e concede-lhe até um "caráter filantrópico". Este trecho é citado por Porto Seguro na sua História da Independência.
- ↑ Pereira da Costa, Governos de Pernambuco, Juntas Provisórias, 1821-24 na Ver. do Inst. Arqueológico de Pernambuco, vol. XIV, 1912. Nos, 75-78.
- ↑ Movimento Revolucionário de Goiânia em 1817 (sic), Pernambuco, Tipografia Mercantil, 1873. Este opúsculo, que foi editado anônimo e na intenção de constituir um curioso capítulo de memórias, tornou-se raríssimo porque seu autor, Mena Calado, o destruiu à vista das inúmeras incorreções tipográficas de que saiu inçado. A Rev. do Inst. Arch. reeditou-o no seu vol. XIII, 1908. Nos. 71-74.
- ↑ Porto Seguro, ob. cit.
- ↑ Compunha-se a junta a princípio do marechal de campo Luís Antônio Salazar Moscoso, representante da classe militar; do ouvidor geral Antero José da Maia e Silva e do Dr. Antônio Moraes Silva, representando a magistratura; de Joaquim José Mendes e Antônio da Silva Companhia, representando o comércio; e de José Camelo Pessoa de Lacerda, pela agricultura. Vingava assim uma vez mais a idéia da representação das classes, que presidira à organização da junta republicana de 1817. Era secretário o reverendo Dr. Caetano José da Silva Antunes.
- ↑ Ofício de 1.º de maio de 1821.
- ↑ Mena Calado, opúsculo citado.
- ↑ Compunham-na o Dr. Francisco de Paula Gomes dos Santos, Joaquim Martins da Cunha Souto Maior, Antônio Máximo de Sousa, Manuel Silvestre de Araújo, João Carlos de Melo e Albuquerque, José Camelo Pessoa de Melo, padre Manuel dos Reis Corado, Bernardo Pereira do Carmo, capitão José Victoriano Delgado de Borba Cavalcanti de Albuquerque e capitão José Joaquim Coelho Lopes de Castro.
- ↑ Journal of a voyage to Brazil and residence there during part of the years 1821, 22, 23, London, 1824.
- ↑ Esta junta tinha como presidente Luís do Rego, como vice-presidente o marechal Salazar, e como vogais o tenente-coronel José Joaquim Simões, comandante dos Algarves, capitão-mor Dr. Antônio de Moraes Silva, Dr. Manuel José Pereira Caldas, Joaquim José Mendes, Joaquim Antônio Gonçalves de Oliveira, Francisco José Corrêa, vigário João Paulo de Araújo e coronel José Carlos Mayrink da Silva Ferrão.
- ↑ Livro ms. das sessões da junta, oferecido ao lnst Arch. de Pernambuco pelo neto de Mena Calado.
- ↑ Assim (e não Camelo) se acha ortografado na ata da sessão de 14 de setembro, a última registrada no livro.
- ↑ Livro ms. das sessões, no Inst. Areh.
- ↑ Livro ms. das sessões do lnst. Arch.
- ↑ Mena Calado, ob cit.
- ↑ Da primeira ata manuscrita constava serem igualmente negociadores da Paraíba e com efeito a assinaram o Dr. Francisco de Sousa Paraíso e o padre Amaro de Barros Oliveira e Lima.
- ↑ Instruções de 31 de janeiro de 1821.
- ↑ Porto Seguro, ob. cit.
- ↑ Ceará, Homens e fatos, Fortaleza, 1919.
- ↑ Estes três secretários eram respectivamente Martim Francisco de Andrada (irmão de José Bonifácio), o coronel Lázaro José Gonçalves e o chefe de esquadra Oliveira Pinto. Das cinco classes citadas eram representantes, da 1.ª o arcipreste Gomes Jardim e o cônego Oliveira Bueno, da 2.ª os coronéis Pereira da Gama e Daniel Pedro Müller, da 3.ª o coronel Francisco Inácio e brigadeiro Rodrigues Jordão, da 4.ª o tenente-coronel Silva Gomes e o reverendo Francisco de Paula e Oliveira, da 5.ª o Dr. Nicolau de Campos Vergueiro e o tenente-coronel Antônio Maria Quartim.
- ↑ Carta de 17 de julho de 1821.
- ↑ Não tinham mesmo para tanto, com a organização financeira e política subsistente.