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O Movimento da Independência/XII

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Empenhadas as Cortes em minguar em tudo e por tudo o prestígio do estado ultramarino como reino autônomo, não se contentaram com as medidas já adotadas nem com os planos, uns maquinados, outros a caminho de execução, para a recolonização dessa seção da Monarquia. Entenderam privar o Brasil da conquista de Dom João VI, que tanto se desvanecia de haver dotado o imenso domínio com sua fronteira natural ao sul. Chegaram a pensar em trocar a Banda Oriental, torrão fertilíssimo, favorecido pelo clima e por todas as circunstâncias naturais, pela cidade de Olivença, com que ficara a Espanha na curta campanha de 1801.

Dom Pedro declarou um dia em conversa a Mareschal[1] que quando mesmo lhe mandassem ordem de evacuar a Banda Oriental, o não faria; "teria sido talvez melhor não a ter tomado, mas abandoná-la depois do que custou, seria rematada loucura. Nem havia a quem entregá-la, pois que os espanhóis se não achavam em condições de reocupar essa sua antiga colônia".

Pensaram por fim as Cortes em aproveitar contra o próprio Brasil o escol do exército lusitano, veteranos das campanhas peninsulares, com que os generais de Dom João VI se tinham assenhoreado desse território que os portugueses nunca se tinham resignado a sacrificar em proveito de outrem, embora com violação da partilha geográfica estipulada. Eram 5.000 os voluntários reais de que se compunha a expedição: com as baixas estavam reduzidos a 3.500, que tantos eram os que ocupavam Montevidéu.

Além das dificuldades domésticas com que lutava, ao Brasil da regência fora pois também legada uma questão externa. E sinal certo de soberania o ter destas questões, e o Brasil jactava-se de soberano depois que nas festas da elevação da sua categoria política, por ocasião da aclamação de Dom João VI, o índio simbólico da peça principal dos fogos de artifício se cingira do manto real e da coroa sobre o saiote e o cocar de penas.

É curioso que a incorporação legal da província cisplatina, para anexar a qual o monarca português emigrado para o solo americano se valera da anarquia em que se debatiam os platinos, tivesse sido levada a efeito em plena crise da nacionalidade brasileira, quando a desunião prevalecia ainda entre a maior parte das províncias ultramarinas e a regência estava longe de contar com uma adesão unânime.

A 20 de março de 1821 a oficialidade da Divisão dos Voluntários de El-Rei, abstração feita do seu comandante tenente-general Lecor (depois barão e visconde da Laguna), fizera um manifesto aderindo à Constituição Portuguesa, protestando contra o decreto que a desligara do exército de Portugal, do qual se considerava um destacamento, reputando qualquer deliberação em contrário uma falta às reais promessas, solicitando sua rendição e reclamando a organização de um conselho militar de oficiais com o general Lecor como presidente.

A decisão do congresso extraordinário, ratificando a 18 de julho de 1821 o voto várias vezes expresso pelo cabildo de Montevidéu e preferindo federar-se com o Brasil a formar um estado independente, foi uma contribuição poderosa trazida à causa nacional, mas também foi um dos muitos atentados contra o direito público e contra o princípio das raças que a história registra, cometido pelo suborno do general Lecor e sob a intimidação dos seus voluntários reais.

A ocupação da Banda Oriental fora um ato de pura e franca conquista estrangeira, pondo remate a uma luta civil que reduzira a população de Montevidéu a um terço e assolara uma região feracíssima [2]. O governo português escudara-se com a argumentação capciosa de que se não apoderava de província alguma alheia: apenas protegia seus interesses num território que já se declarara independente e sobre o qual lhe dava direitos sua vitória de Tacuarembó. A administração aplicada a esse território desde 1817, no intuito de assegurar a continuidade da sua posse, foi porém de caráter militar.

A oposição armada de Artigas e da grande maioria da população à sujeição ao domínio português constituía uma manifestação bastante da vontade popular; mas para que esta se convertesse em vontade nacional, seria mister subtrair os representantes congregados às influências de ordem diversa que sobre eles agiram, levando-os a declararem que a Banda Oriental não oferecia condições para ser por si uma nação, faltando-lhe recursos e meios para garantir sua independência. De fato a resistência durante quatro anos dos montoneros uruguaios, estendendo suas depredações desde o Rio Grande até Buenos Aires, Entre Rios e Paraguai, arruinara e esgotara esse fragmento do vice-reinado platino.

Tão prolongado estado de guerra dissolvia, no conceito de um dos oradores do congresso extraordinário, todo convênio, todo pacto, toda liga anterior. Não o entendiam contudo assim as Províncias Unidas do Prata, invocando um passado prévio muito mais dilatado e muito mais honroso. O governo de Buenos Aires fez formalmente conhecer seu desígnio de reaver o território perdido. Por sua vez reclamava a Espanha aquilo que fazia parte integrante dos seus domínios: somente a Espanha constitucional tinha a pesarem sobre sua organização problemas mais urgentes de resolver. Além disso sua política exterior assentava sobre a confraternidade com Portugal, igualmente constitucional muito por obra e graça dela.

A atitude das Cortes com relação à Província Cisplatina do Brasil estava pois de antemão traçada, desde que por um lado essa província seguia o destino do Brasil unido, sua adesão reforçando o reino americano sem proveito para Portugal, e por outro lado havia que corresponder aquele sentimento de cordialidade internacional, precioso para a garantia das instituições democráticas dos dois países ibéricos, surdamente minadas pelas forças da reação. Nessas condições fácil era, mesmo porque era lógico, proclamar que a conquista efetuada pela monarquia absoluta de Dom João VI ofendia as bases da justiça que a regeneração viera firmar.

Pensou-se então primeiro na troca por Olivença, praça de 5.000 habitantes, cuja transferência de soberania fora sancionada pelo tratado de Badajoz, de 1801, não ocorrendo a retrocessão nem mesmo por virtude da recomendação obtida pelos plenipotenciários portugueses ao congresso de Viena, o qual obrigara a corte do Rio de Janeiro a restituir sem compensação a Guiana Francesa. Esse tratado de Badajoz era precisamente aduzido no Brasil como anulando o de 1777, o qual reconhecera o domínio espanhol nas duas margens do Prata, mas não chegara a ser posto em prática por falta da respectiva demarcação.

A incorporação efetuada após o regresso de Dom João VI para Lisboa e em virtude das últimas determinações por ele deixadas a respeito, efetuara-se com todas as aparências de liberdade e de legalidade. No regime de autonomia que devia ser o do dualismo, ao Brasil interessava principalmente o caso: se na ocupação de Montevidéu se achavam empregadas tropas portuguesas, eram tropas brasileiras as que guarneciam a fronteira do Rio Grande, cuja salvaguarda fora o pretexto da expedição do general Lecor.

Da guarnição de Montevidéu fazia também parte o batalhão de Pernambuco, embarcado para o sul depois de debelado o movimento de 1817. O estado do tesouro brasileiro, exangue na expressão de Cairu, determinou atraso grande no pagamento dos soldos, e esse batalhão e o regimento de infantaria ensaiaram a 30 de dezembro de 1821 um pronunciamento que o general Lecor prudentemente evitou se consumasse. Outras tropas, porém, acantonadas fora da praça seguiram-lhes o mau exemplo com "urgência mais peremptória" [3] e o general-comandante teve de recorrer aos meios de guerra, exigindo dos habitantes, de acordo com a junta de naturais do país, a quantia de 300.000 pesos com que fazer frente à dificuldade.

A Província Cisplatina chegou a eleger um deputado às Cortes de Lisboa, o Dr. Lucas José Obes, o qual veio porém consignado ao príncipe regente para que dele fizesse o que lhe aprouvesse. Escrevia Dom Pedro ao pai [4] que "este D. Lucas" partira com as instruções seguintes: "Vá representar nas Cortes a província de Montevidéu, e saiba o que querem lá dispor dela, mas em primeiro lugar vá ao Rio, e faça tudo que o Príncipe Regente do Reino do Brasil, de quem esta província é parte componente, lhe mandar, se o mandar ficar fique, se continuar, execute". Dom Pedro ajuntava que o mandara ficar no conselho de procuradores, que se ia eleger, "por ele me dizer que antes queria os remédios do Rio, do que de duas mil léguas, e era a razão de se terem separado da Espanha".

D. Lucas José Obes não fazia sacrifício, nem mesmo político, deixando de continuar sua rota. Os interesses do seu Estado achavam-se ligados aos do Brasil. A Cisplatina nunca poderia ficar unida a Portugal se uma vez o Brasil se separasse deste e, a darmos crédito ao representante uruguaio, era pelo contrário suscetível o Brasil de dilatar seu poderio na América Meridional. "Deu-me a entender - escrevia o príncipe [5] - que Entre Rios também se queria unir, e Buenos Aires confederar, por conhecer que nós somos os aliados que lhes fomos dados pela Providência, assim como eles para nós".

Era plausível que alguns assim entrevissem o futuro, desde que a anarquia se implantara no Rio da Prata por forma tal que se tornara lícito descrer de que ali pudesse jamais voltar a ordem, a não ser pela união e sob a influência de um fator que representasse legalidade e cultura. Da Cisplatina pelo menos, nem o governo da regência, nem depois o do império quis absolutamente abrir mão, referindo-se Melo Moraes ao ofício secreto de 2 de março de 1822 em que José Bonifácio "instrui o barão da Laguna sobre o modo de se conduzir com as autoridades (locais) em proveito da união".

Se tivesse alcançado Lisboa, teria D. Lucas José Obes ensejo de participar com autoridade única no debate que em abril se travou nas Cortes sobre a evacuação de Montevidéu e em que se fizeram ouvir do lado brasileiro Fernandes Pinheiro, Antônio Carlos, Borges de Barros, padre Marcos Antônio de Sousa (depois bispo do Maranhão) e Muniz Tavares. Infligindo solene reprovação ao ato internacional que se seguira à organização do Reino-Unido, a comissão de negócios diplomáticos do Congresso apresentara uma moção para a retirada das tropas portuguesas da Banda Oriental, em nome dos princípios políticos superiores que tinham dirigido a revolução de 1820 e animavam a nação lusitana, já que por ser zelosa defensora da própria independência se achava moralmente obrigada a respeitar a alheia, e já que desaparecida a anarquia, tinham desaparecido os motivos do proceder de 1816". O exército de ocupação ficaria à disposição do poder executivo português "para lhe dar o ulterior destino que julgasse conveniente".

O melhor, no entender de muitos em Portugal, seria reforçar na Bahia o baluarte levantado pelo general Madeira e donde se contava que partiria a reconquista colonial que estava falhando pelos meios parlamentares e administrativos. No Brasil, por causa seguramente dessa possibilidade, foi o parecer da comissão das Cortes mal recebido: independente mesmo disso, o sentimento público no Rio de Janeiro, principalmente entre os realistas, repelia qualquer intento de imolar a Cisplatina a quaisquer outras combinações mais favoráveis a Portugal [6].

A Colônia do Sacramento fora um ninho de contrabandistas, donde se fazia com Buenos Aires um escambo altamente frutuoso. Agora Montevidéu representava a chave do intercurso mercantil com o Uruguai e o Paraná e as relações de interesse assim criadas com o Rio da Prata de certo influíram naquela opinião hostil à renúncia, pelo receio de ver cerrar-se ao intercâmbio estrangeiro posição tão importante do ponto de vista econômico, o que não deixaria de acontecer no caso de restituição à soberania espanhola.

A conservação da Banda Oriental representava para o Brasil uma vantagem mercantil, política e estratégica de que ele seguramente se não quereria despojar. Se entre as províncias do norte a impressão era menos marcada e mais frouxo o apego à conquista de Dom João VI era porque a distância e o alheamento em que viviam as províncias não permitiam que se concebesse tal interesse como sendo de ordem vital para o conjunto. Com a independência é que viriam uma maior uniformidade de juízos e uma maior conformidade de sentimentos.

A moção de retirada caiu nas Cortes, na sessão de 2 de maio de 1822, por 84 votos contra 28, influindo seguramente para tal resultado o empenho que todo povo mostra em conservar aquilo de que uma vez se apossou. Bastantes membros do Congresso estimavam sinceramente o rei e não queriam contrariá-lo desmanchando um cometimento que fora tanto do seu peito. A popularidade de Dom João VI é indiscutível apesar da sua fraqueza, antes física que moral: o encarregado de negócios de França no Rio de Janeiro observava na sua correspondência oficial que nas verrinas saídas dos prelos libertados do Rio de Janeiro o monarca era sempre pessoalmente respeitado.

Entre a representação brasileira, mesmo a que se não deixava levar pela consideração de que abandonar a Cisplatina ao seu destino era alienar os benefícios de um tráfico altamente prometedor, havia o temor, que para os portugueses constituía pelo contrário um incentivo, de que a continuação da ocupação pudesse servir para futuras transações com espanhóis ou com outro povo. Terras do Brasil não eram o mesmo que as terras patrimoniais de Portugal: eram terras de índios, sem tradições e sem história, que tanto fazia atribuir a este ou aquele. Barbacena escrevia de Londres a José Bonifácio [7]: "Não é possível que V. Exa. saiba até aonde chega o ódio, e sinistras intenções das Cortes de Lisboa sobre o Brasil. Quiseram primeiramente ceder aos franceses a margem esquerda do Amazonas a troco de Tropas que fossem subjugar o Brasil, mas o Governo Francês repeliu toda e qualquer negociação. Quiseram depois renovar o tratado de comércio com a Inglaterra, garantindo esta o atual sistema do Governo de Portugal, e todas as alterações que ele fizesse no Brasil, mas esta proposição ainda foi repelida com mais desprezo do que fizera o Governo Francês. Projetam agora abandonar Montevidéu, ocupar Santa Catarina, revolucionar as Províncias do Norte, e chegam mesmo a execração de lembrar o levantamento dos negros".

Notas

[editar]
  1. Ofício de 5 de março de 1822.
  2. Armitage, ob. cit.
  3. J. da Silva Lisboa, ob. cit.
  4. Carta de 14 de março de 1822.
  5. Carta cit. de 14 de março
  6. Armitage, ob. cit.
  7. Carta de 1.º de maio de 1822, no vol. VII das Publicações do Arqu. Pub. Nac.