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O Movimento da Independência/XIII

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No mesmo dia da partida da Divisão Auxiliadora para Portugal (15 de fevereiro) recebia o príncipe regente no Paço da Cidade a deputação de Minas Gerais que vinha, tendo à sua frente o vice-presidente da junta mineira, desembargador José Teixeira de Vasconcelos, manifestar ainda que com alguma tardança os sentimentos da província com relação aos famosos decretos de 29 de setembro de 1821. A aludida demora fora o efeito de rumores de agitação contrária ao movimento nacionalista local, os quais vieram aliás a confirmar-se.

A deputação não ocultava sua animada versão à atitude das Cortes para com o reino americano e fazia votos pela reunião no Brasil de outra assembléia representativa que elaborasse sua legislação particular e adequada às condições do Brasil, tendo em vista o que representara o povo fluminense quando com grande acerto lembrara ao príncipe que "há uma distância mui considerável entre o meio-dia da Europa e o meio-dia da América: a natureza humana aqui experimenta uma mudança sensível, um novo céu, e por isso mesmo uma nova influência sobre o caráter de seus indivíduos; é impossível que povos classificados em oposição física se possam reunir debaixo do mesmo sistema de governo; a indústria, a agricultura, as artes em geral exigem no Brasil uma legislação particular, e as bases deste novo código devem ser esboçadas sobre os locais onde depois hão de ir ter sua execução".

Também a deputação mineira entendia que em cada província se organizassem todos os tribunais indispensáveis às necessidades da sua população. Não havia necessidade de serem de acordo com os modelos obsoletos cuja abolição as Cortes justificavam pela sua disparidade com o meio constitucional. A comissão especial dos negócios do Brasil assim se referia ao assunto, como que respondendo às críticas formuladas: "É pasmoso sobremaneira que se queira a conservação de Tribunais que tanto peso fazem à nação e que estão em perfeita contradição com o sistema representativo por ela admitido. Uma representação formada da flor da nação, não é mister escorar-se nas fórmulas decrépitas de corporações permanentes, para quem o dia de hoje é como o de ontem. Semelhantes estabelecimentos são o luxo da ordem social, que a política reforma, todas as vezes que na organização de um país se olha para a utilidade e não para o aparato".

A junta mineira resolvera que os deputados eleitos da província, em número de treze, não seguissem para Lisboa "sem Minas saber a decisão de tudo" - escrevia o príncipe a seu pai [1] - e declarava mais "que seja qual for a decisão sobre a minha retirada, ela sempre se oporá a que eu regresse a Portugal, custe-lhe o que custar. Estimarei que V. M. faça constar isto tudo ao soberano Congresso para que ele assim como ia por uma precipitada deliberação acabando a Monarquia, tome em consideração as representações justíssimas feitas, e agradeça a salvação da nação aos briosos paulistas, fluminenses e mineiros". No seu discurso o desembargador Teixeira de Vasconcelos, falando pela junta, recordou quanto Portugal era devedor à capitania de Minas Gerais, antes de juntar os rogos desta província para que Dom Pedro ficasse e aguardasse a resposta das Cortes. Nos cento e dezenove anos que decorrem de 1700 a 1819, o quinto do ouro subira a 553 1/2 milhões de cruzados, calculando em 1.200 réis a oitava e não falando na quantidade de ouro que não era manifestado nas casas de fundição e que por essa forma se subtraia à cobrança da porcentagem real. Todo esse metal precioso ia para Portugal.

O desembargador Teixeira de Vasconcelos era o porta-voz da maioria apenas da junta, cuja minoria não aprovava, nem a homenagem ao príncipe que equivalia ao mais formal reconhecimento da sua autoridade de regente, nem a suspensão da viagem dos representantes às Cortes. Com efeito, enquanto a deputação vinda de Vila Rica assim fazia ato de adesão ao governo central brasileiro e a cidade do Rio de Janeiro punha luminárias por esse motivo e pelo da partida de Jorge de Avilez e da sua tropa, estalava na capital de Minas um pronunciamento às ordens do tenente-coronel português da cavalaria de linha Pinto Peixoto, revolucionariamente aclamado brigadeiro. Esse movimento, favorecido pela atitude dissidente e a breve trecho rebelde, de dois membros da junta, obedecia a inspiração do juiz de fora Cassiano Espiridião de Melo Matos e tendia a colocar de novo a província dentro da órbita da influência portuguesa, não se pode dizer na sua dependência, porquanto o novo governo avocava atribuições ilimitadas e tomava providências sobre todas as matérias, quando o governador legal, que era D. Manuel de Portugal e Castro, não queria mais do que retirar-se deixando em funções uma junta provisória prestando obediência às Cortes. Ele repelia a idéia de ver suceder-lhe a luta armada que a resolução do príncipe regente frustou.

Chegada a informação ao Rio de Janeiro, não se limitou Dom Pedro a esperar o desenrolar dos acontecimentos para assumir uma atitude. Decidiu ir em pessoa providenciar sobre o seguimento dos sucessos políticos e, sem anunciar previamente sua viagem, partiu a 25 de março, apenas acompanhado do desembargador Estevão Ribeiro de Rezende (futuro marquês de Valença) e de dois criados, deixando José Bonifácio praticamente na qualidade de regente, pois que lhe confiava a presidência do conselho de ministros para o despacho do expediente das secretarias do Estado e repartições públicas.

O governo anárquico de Minas não tinha elementos para firmar-se, apesar de ter chamado a si o direito das nomeações: com a presença de Dom Pedro logo ruiu do seu frágil pedestal. Recebido com entusiasmo em Barbacena, São João d'EI Rei, São José e Queluz, o príncipe parou a três léguas de Vila Rica, no capão de Lana, e mandou Estevão Ribeiro de Resende, nomeado interinamente secretário de Estado, cominar o governo provisório, perguntando-lhe se o reconhecia ou não como regente do Brasil, pois não queria empregar a força armada, nem expor o povo e a tropa de Vila Rica a serem imolados por esses facciosos de cuja existência lhe chegara a notícia, tanto assim que ordenava ao tenente-coronel, comandante da cavalaria de linha de Minas Gerais, José da Silva Brandão e ao coronel de milícias Sousa Guerra Godinho, que prendessem Pinto Peixoto e o conduzissem ao Capão de Lana, onde pernoitava e para onde convocava toda a guarnição de Vila Rica a fim de fazer sua entrada na capital mineira, "acompanhado de grande guarda, como convinha ao decoro de sua real pessoa". Igual ordem de prisão de Pinto Peixoto era dirigida ao governo provisório, do qual dois membros, desembargador Manuel Inácio de Melo e Sousa e coronel José Ferreira Pacheco, tinham ido ao seu encontro a fazenda de Cataguases, respondendo-lhes Dom Pedro que "já era tarde", embora lhes permitisse acompanharem a comitiva.

Constam estes pormenores do ofício-relatório que dos incidentes da sua viagem mandou o príncipe dirigir por Estevão Ribeiro de Resende ao ministério no Rio, dele constando também o que as outras narrativas do episódio no geral referem - que em Vila Rica, em oposição ao sentimento dominante, estava preparada a resistência contra a entrada do príncipe como regente, desobedecendo a junta às suas ordens e simulando até a princípio ignorar sua entrada na província. Entretanto essa entrada fora mais do que ruidosa, fora triunfal.

Dom Pedro teve a felicidade, que foi uma habilidade, de se não deixar intimidar nessa emergência pelas conseqüências do seu ato, e pelas vilas por onde ia passando e onde lhe chegavam os ofícios de adesão e reconhecimento das câmaras das Vilas pelas quais não passava, tinha ido mandando os comandantes da pouca tropa de linha fazerem marchar seus esquadrões, os da milícia fazerem mover seus batalhões e os capitães-mores congregarem suas ordenanças, formando-se para a eventualidade da resistência manter-se outros corpos, de voluntários, sendo o prazo dado no Capão de Lana.

Relata porém uma versão que Pinto Peixoto por si se dirigiu até o local onde parara o príncipe, a fim de beijar-lhe a mão e dar garantias da segurança e sossego da cidade. Segundo outra versão, que é a verdadeira pois que se acha, ainda que não terminantemente, assaz claramente corroborada pelo ofício - relatório de Estevão Ribeiro de Resende [2], a ordem de prisão foi cumprida e o oficial revoltoso assim trazido à presença de Dom Pedro, que "depois de o ouvir, conhecendo a sem razão com que fora denunciado, generosamente lhe mandou entregar a espada". Melo Moraes de conta própria refere, e sua narrativa pode afinal casar-se com a de Estevão Ribeiro de Resende, posto que esta mais diplomática por ser oficial, que Pinto Peixoto caiu aos pés do príncipe, o qual o rebaixou do posto de brigadeiro, ilicitamente grangeado, e o responsabilizou pela manutenção da ordem por ocasião da sua joyeuse entrée, mas no dia imediato o promoveu efetivamente por mercê sua e em virtude dos poderes que lhe andavam delegados. Ainsi se vengent les rois... se é que o futuro imperador, a quem não faltava o senso das realidades e que temperava o seu quixotismo com o sal do bom senso, não procedeu desse modo para evitar de se indispor com a tropa, entre a qual era Pinto Peixoto popular, e ter talvez que voltar atrás sob coação. O comandante do novo corpo de caçadores criado pela junta provisória e que, juntamente com Pinto Peixoto e o juiz de fora presidente da câmara, eram os espíritos dirigentes do motim abortado, foi despachado para o Rio, para onde resolveu o príncipe que fosse também o batalhão de caçadores a render o esquadrão de cavalaria mineira mandado como reforço.

Para o Rio de Janeiro levou o príncipe consigo Pinto Peixoto, apresentando-se com ele no teatro em delírio. Antes disso, escrevia Estevão Ribeiro de Resende que em Vila Rica mesmo o príncipe o incorporara no seu séquito como comandante das armas interino, uma vez que ele veio render-lhe preito logo depois da junta, à qual fora intimado o comparecimento e o conseqüente reconhecimento do caráter político do príncipe regente. Aliás em rigor esse reconhecimento era exigido antes para impressionar a população e desprestigiar de todo o governo rebelde, já pelo príncipe declarado cassado, antes de partir, pelo decreto de 23 de março, no qual faz sobressair que a junta agora dissolvida e que fora aprovada por efeito "da sua bondade paternal, apesar de uma parte dos membros dela ter sido eleita por subornos e conluios, havia reunido em si não só o poder executivo e econômico, mas até o legislativo e judiciário, com manifesta rebeldia às Cortes, a El-Rei e ao seu delegado".

Com o ofício-relatório de Resende concordam todas as descrições da efusão do acolhimento dispensado por Vila Rica, excedendo toda a expectativa e encantando os que assistiram a semelhante espetáculo, que foi no entanto igualado pela recepção brilhante de Mariana, onde entre outros dísticos festivos se lia o seguinte:

Consigo não traz Pedro Marte irado; Traz a filha de Themis ao lado.

Nessas vilas, como nas outras, foram tocantes as demonstrações em honra do príncipe. Eram Te Deums solenes, cortejos de caráter a um tempo religioso, civil e militar imponentes, arcos ornamentais, festões de seda e colchas de damasco nas frontarias das casas, crianças simbolicamente vestidas, chuva de flores, girândolas de fogo, bombas e roqueiras, músicas, nuvens odoríferas de bálsamos e aromas que se queimavam. Tem-se a impressão de que foi uma manifestação espontânea, a que não presidiria talvez um gosto discreto mas da qual trasbordava genuína simpatia, com muito gasto de galão de ouro, muita lhama de prata, muita figura emblemática e muita alegria.

Não pode haver dúvida da sinceridade do júbilo que reinava na grande província, nem da dita que ao príncipe se deparou e que lhe permitiu dessa vez abafar a discórdia das facções e sobrepor-lhes, depois de eliminado o governo anárquico sem derramamento de sangue, a fórmula amável da concórdia juntamente com o rígido princípio da autoridade. Não descurou Dom Pedro o organizar a reação e o seu paço provisório de Capão de Lana esteve por um triz a converter-se num acampamento para debelar "os malvados", mas o seu coração estimou que se lhe oferecesse ensejo de aplicar as nobres e humanitárias palavras dirigidas pelo regente aos fluminenses depois da partida da Divisão Auxiliadora: "Eu teria visto com viva mágoa frustrados todos os meus votos a favor da humanidade, acesa a guerra civil, e vítima de seus horrores povos inocentes, que anelam viver livres e tranqüilos debaixo do império das leis. Não é só com as armas tintas de sangue e em campos juncados de cadáveres que se alcança honrada fama; com a vossa judiciosa moderação, e segura confiança em meus paternais cuidados, e ordens do governo, foi mais belo e honroso o vosso triunfo do que se o conseguisses em combates, ainda com assinalada derrota dos inimigos".

O regresso foi feliz como o fora a ida e nele pôs Dom Pedro toda a alacridade, então juvenil, do seu temperamento. Anos depois seria ele, como imperador, recebido nos mesmos sítios com dobres a finados, pelo assassinato em São Paulo do jornalista Badaró. Então fora tudo como que um sonho que se concretizasse, por um lado na consolidação da sua autoridade executiva sobre uma fração importantíssima do território brasileiro; por outro lado na sua definitiva incorporação na pátria nova que se formava. Essa viagem foi denominada sua verdadeira nacionalização e o visconde de Porto Seguro pensa que deve ter sido um poderoso incentivo para ela o efeito da natureza mineira, selvática e majestosa. É fato que Dom Pedro nada conhecia do Brasil além de Santa Cruz e, por mais bela que seja a Baía de Guanabara, o espetáculo das montanhas e dos rios donde tinha sido canalizado para Portugal o jorro de ouro e de diamantes do século XVIII, era certamente próprio a exaltar uma imaginação como a sua que, se se não deixava porventura seduzir pelas paisagens pitorescas, sempre se mostrou disposta a deixar-se empolgar pelas perspectivas de grandeza moral e política.

Começou logo em Minas a frase de apaziguamento. As forças com ordem de avançar foram mandadas sustar, soltos os presos políticos, suspenso o juiz de fora Melo Matos, abrindo-se sumário de culpa sobre sua tentativa de rebelião e violências por ocasião da entrada do príncipe, disperso o núcleo de discolos e dadas as ordens para se proceder à eleição de uma nova junta provisória e dos procuradores ao conselho de Estado. A proclamação de retirada dizia na linguagem empolada, própria do gênero: "Se entre vós alguns quiserem (o que eu não espero) empreender novas coisas que sejam contra o sistema da união brasílica, reputai-os imediatamente terríveis inimigos, amaldiçoai-os e acusai-os perante a justiça que será pronta a descarregar tremendo golpe sobre monstros, que horrorizam aos mesmos monstros... Vós amais a liberdade, eu adoro-a... Uni-vos comigo, e desta união vireis a conhecer os bens que resultam ao Brasil, e ouvireis a Europa dizer: o Brasil é que é grande e rico; e os brasileiros é que souberam conhecer os seus verdadeiros direitos e interesses. Quem assim vos fala deseja a vossa fortuna, e os que isto contradisserem amam só o vil interesse pessoal, sacrificando-lhe o bem geral. Se me acreditardes seremos felizes, quando não grandes males nos ameaçam. Sirva-nos de exemplo a Bahia".

Partiu Dom Pedro de Vila Rica a 20 de abril e a 25 recebia, ao declarar da tribuna real no teatro que deixara Minas em paz, uma das ovações mais estrondosas da sua vida, na qual alternaram as aclamações e as pateadas. Porto Seguro qualifica o seu ato de "um lampejo de gênio" e relembra a este propósito o artigo, ora ditirâmbico, ora pindárico de Januário e Ledo no Reverbero, em que se dizia: "O Deus dos Cristãos, a constituição brasílica e Pedro, eis os nossos votos, eis os votos de todos os brasileiros. Príncipe, não desprezes a glória de ser o fundador de um novo Império. O Brasil de joelhos te mostra o peito, e nele, gravado em letras de diamante, o teu nome... Príncipe, as nações todas têm um momento único, que não torna quando escapa, para estabelecerem os seus governos. O Rubicon passou-se; atrás fica o inferno; adiante está o templo da imortalidade".

Pelo que toca ao príncipe, é penhor dos sentimentos que trazia na alma a carta que cinco dias depois de chegado, a 30 de abril, escrevia para Lisboa a Antônio Carlos, tratando-o de "meu amigo e do meu amigo Brasil" e do "mais digno deputado americano", pedindo-lhe para tornar públicas todas as cartas por ele escritas a Dom João VI, orgulhando-se de ser o "maior brasileiro e que pelo Brasil dará a última gota de sangue" e dizendo-lhe que, "se lá não o apoiarem, em lugar de se cansar com debates, volte, que os brasileiros o desejam cá para as suas cortes municipais".

O processo da sua nacionalização estava de fato terminado.



Minas estava conquistada pelo afeto, mas havia outros lances a ganhar, pelas armas ou pela astúcia. Para o lado do Norte os horizontes permaneciam carregados, quando não tempestuosos. A 22 de junho escrevia o príncipe a El-Rei: "O Madeira na Bahia tem feito tiranias, mas eu vou já pô-lo fora, ou por bem, ou a força de miséria, fome, e mortes feitas de todo o modo possível, para salvar a inocente Bahia". O que se passara para justificar semelhante linguagem?

A vida da primitiva junta não fora de rosas, andando o sentimento brasileiro sobressaltado com a pressão portuguesa, e o pronunciamento dos tenentes-coronéis José Egídio Gordilho de Barbuda (futuro marquês de Jacarepaguá) e Felisberto Gomes Caldeira, com uma porção mais de oficiais, quase lhe cortou a existência a 3 de novembro de 1821. Na sua proclamação aos habitantes da Bahia essa junta, presidida por Moura Cabral, conta que, "aqueles perdidos na opinião pública, e todos inimigos parciais do governo, por lhes não haver fartado a insaciável sede de torpes lucros e tresloucados despachos, se arrojaram a perpetrar o horrível crime de atentar tumultuariamente contra a existência deste mesmo governo, que, com tanto risco e tamanho denodo, foi levantado por vós sobre as ruínas do antigo despotismo, e percorrendo as ruas com alaridos, apresentaram-se nos paços do conselho, acompanhados de alguma gente da plebe, raros oficiais de linha e pouquíssimos paisanos, sem representação civil, arrombaram com suas espadas a caixa em que se guardava o estandarte, arrancaram-no daquele depósito, forçaram alguns dos membros do corpo do nobilíssimo senado, que então ali se achavam, a atravessar a praça e, violando o respeito devido ao palácio do governo, invadiram-no armados com punhais e pistolas, que bem se viam escondidos por entre seus vestidos, e quiseram obrigar a junta provisional a demitir-se e (o que mais é) a autorizá-los para a seu sabor estabelecerem um novo governo, que fartando-lhes sua venenosa ambição, vos lançaria sem dúvida no pélago da anarquia"[3].

A tentativa falhou porque, enquanto confabulavam e discutiam rebeldes e autoridades, as tropas fiéis formaram no largo e ocuparam o palácio e imediações e a junta teve espírito para dominar a situação. O desfecho foi a prisão de uns tantos oficiais e a deportação de outros para Lisboa, onde foram soltos em abril de 1822. A tranqüilidade nem por isso porém se restabeleceu.

À junta aclamada sucedeu ajunta eleita em 1.º e empossada a 2 de fevereiro de 1822, tendo por presidente o velho Dr. Francisco Vicente Viana que, segundo relata Drummond, tinha o sestro de responder às dificuldades com um suspiro e uma história do tempo do marquês de Pombal, e por secretário o desembargador Francisco Carneiro de Campos. Todos os membros [4] eram brasileiros, menos um, e esta circunstância era de natureza a emprestar um aspecto favorável à causa da regência que já então se tornara a causa nacional. De fato, ao participar sua instalação, o novo pessoal governativo, se fez seu protesto solene de adesão ao rei e à constituição, reservou suas palavras mais carinhosas para o príncipe real.

Uma questão de precedência entre oficiais superiores, redundando num conflito de jurisdição militar, gerou porém uma condição tal de antagonismo entre os interesses em presença que a Bahia se converteu no principal centro armado, no bastião da resistência portuguesa à supressão do seu predomínio.

Dos fatores da primeira hora constitucional um conservara íntegra sua popularidade, que era o brigadeiro, por aclamação popular, Manuel Pedro de Freitas Guimarães, brasileiro, mas "pedreiro livre" como escreve Cairu, como tal ligado à "cabala maçônica" formada pelos clubes jacobinicos e partidário intransigente do regime liberal, ocupando o governo das armas como o oficial de maior patente da guarnição. A promoção regular a brigadeiro do coronel Inácio Luís Madeira de Melo, comandante do regimento 12 de infantaria, justificava no entanto sua preferência para aquele governo, pela escolha feita em Lisboa a 9 de dezembro de 1821 (dia em que foram nomeados os vários comandantes de armas, de acordo com a nova organização ultramarina), tanto mais quanto sua antigüidade era mandada contar desde 18 de dezembro de 1820.

O sucedido indicava contudo claramente que nunca uma nomeação análoga recairia num brasileiro. Nenhum se podia encontrar mais fiel adepto da regeneração do que o tenente-coronel Manuel Pedro, declarado benemérito e honrado pelas Cortes de Lisboa: a mercê recairia sempre naquele que dispusesse, como era o caso com Madeira, das simpatias da legião constitucional lusitana e fosse de têmpera a sustentar a preservação da união sui generis, que Portugal concebera. Madeira no entanto fora um revolucionário à força. Conta-se182 que no pronunciamento de 10 de fevereiro de 1821 ele não tomou parte; seu regimento foi porém seduzido pelo tenente-coronel e Madeira compareceu na refrega, humilhado por lhe ver escapar pela primeira vez o comando da sua gente. Seus soldados, ao vê-lo, aclamaram-no e fizeram-no assim participar do movimento.

Chegou a carta régia de nomeação, mas faltavam-lhe certas e importantes formalidades: não estava registrada na contadoria da corte, nem fora referendada pelo ministro competente, nem sequer era comunicada à junta de governo local. Nem esta nem a câmara quis determinar o registro para a posse, embora a junta admitisse a validade da carta régia tal como se encontrava. A atitude de ambas as corporações permitia entretanto que fosse a mesma discutida e até recusada para fazer valer um direito. Formaram-se a respeito discrepâncias de opinião; uma representação com mais de 400 assinaturas subiu à câmara municipal para que se aguardasse a decisão das Cortes; cada parcialidade seguiu desde 15 de fevereiro argumentando a seu modo e jeito.

De tudo isso resultou a congregação extraordinária de um grande conselho composto do senado da câmara, das corporações de justiça, fazenda e marinha e dos notáveis da cidade - pessoas condecoradas, como as qualifica Cairu - o qual adotou (19 de fevereiro) o recurso esdrúxulo de ser o governo das armas exercido até nova ordem por uma junta militar de 7 membros, entre eles os dois brigadeiros, Madeira em todo caso como presidente. Anuiu este se o consentisse a oficialidade portuguesa entre a qual, desde começo, lavravam protestos que determinaram uma tensão difícil de remediar e que o prolongamento da sessão até o nascer do sol não conseguiu dissipar.

A declaração aliás do brigadeiro português de que avocaria a autoridade plena se corresse risco a Constituição, causou sensação e preludiou o rompimento do mesmo dia 19. Madeira, cada vez mais metido em brios, assumiu de fato o comando e pôs em armas não só seus soldados como os marujos dos navios surtos no porto. A antinomia degenerou assim fatalmente em conflito sangrento entre as forças portuguesas e brasileiras, o qual durou até a tarde de 20, mais de 100 mortos caindo varados pelas balas e praticando-se de ambos os lados deploráveis atentados, figurando no número como o pior o bárbaro assassinato por mãos portuguesas da abadessa do convento da Lapa, acompanhado do espancamento do velho capelão da casa.

Madeira dá nos seus informes circunstanciada relação das peripécias dessa luta a que os brasileiros se afoitaram sem chefes, recolhendo-se afinal no forte de São Pedro. Cairu assim resume a situação: "Tudo anunciava grande catástrofe, por não cederem os sitiados do forte, e parecerem resolutos à defesa, não obstante as intimações de Madeira para se renderem. Mas as tropas ali encurraladas, e sem preparativos, nem recursos, por fim reconhecendo a impossibilidade de resistência à decisiva força superior, e perdendo toda a confiança no seu chefe, evacuaram em 21 do mês de noite o forte da parte do baluarte marítimo. Daí resultou entrar nele Madeira com sua tropa, achando-o vazio de defensores, apenas, existindo aí solitário, com alguns oficiais e cadetes, o seu rival, a quem logo prendeu".

Prendeu-o e deportou-o para Lisboa, após cassar-lhe as patentes de promoção a coronel e brigadeiro por acesso revolucionário, que ainda não tinha tido a confirmação real. As circunstâncias converteram em ditador militar o transmontano espadaúdo e guapo, cuja voz sonora se ouvia de um extremo a outro do regimento (183). Por seu lado Manuel Pedro, no primeiro aniversário do pronunciamento de 10 de fevereiro de 1821, concedera de sua alta mercê um posto de acesso a todos os oficiais do seu regimento de artilharia de linha, que tinha sido pars magna do acontecimento, e mandara decorar-lhe a bandeira com um dístico em letras de ouro.

Como é natural, Madeira conta nos seus ofícios as coisas muito pormenorizadas, à sua feição, querendo provar "que não fez mais do que o que foi absolutamente necessário para se defenderem as tropas do seu comando". Nem desmerece o valor do adversário, antes o encarece, para mostrar que, se não fosse socorrido, a situação podia tornar-se crítica. Para justificação do ataque, que vem sempre não se sabe como, seus soldados propalaram - o que em ocasiões idênticas é corrente - que do interior do convento da Lapa tinham atirado contra eles. Abriu-se uma devassa, de ordem da junta ao juiz do crime da cidade, a qual resultou contrária a Madeira e seus batalhões, pronunciados por autoria de guerra civil. O ofício da junta baiana para Lisboa estigmatiza o proceder da legião lusitana, "cujos louros ali se manchariam do sangue dos seus irmãos" [5].

Nesse ofício declara a junta não ter até então cumprido as ordens do príncipe regente, mas que "não podia dissimular que, afora uma fração, só numerosa na classe mercantil desta cidade, a maioria da província sem dúvida deseja reunir-se aquele augusto centro da família brasileira". ninguém porém compreendeu e descreveu melhor a situação dos partidos do que o brigadeiro Madeira; não pode haver sido um tarimbeiro bronco, como o descrevem os inimigos, quem assim se expressava [6]: "Três são os partidos que existem nesta cidade: dos naturais de Portugal o partido quase geral é puramente constitucional e a este alguns há dos naturais do país que se unem; dois são os partidos que estes seguem, a saber: os mais poderosos, já em posses e já em empregos de representação, ligados aos togados do Rio de Janeiro, querem uma constituição, em que como lords figurem independente do governo de Portugal, e por isso trabalham para a separação; é este o motivo por que o poder legislativo de V. M. é ali atacado nos papéis públicos com o maior vilipêndio. Os que pelas suas posses ou empregos não ombreiam com aqueles, querem uma independência republicana em que só figurem os naturais do país; têm-se chocado ambos estes partidos até aqui, tendo sido o resultado favorável ao primeiro constitucional; porém agora, julgando-se ofendidos ambos os corpos por ser notado o geral americano por fraco e rebelde, trabalham a reunir-se, e se o conseguem, como é de esperar, é necessário grande força para o rebater, e por isso quanta maior brevidade houver em prestar novas providências e virem mais forças, maior será o resultado ao bem da nação e dos do partido constitucional, que aliás será sacrificado".

Sobre a cabeça de Madeira, como sobre a de Luís do Rego, têm sido atirados inúmeros apodos. São eles os dois grandes verdugos da história brasileira a soldo da tirania portuguesa. Um e outro eram militares briosos, com os defeitos inerentes à educação de quartel - a prepotência e a arrogância dos que estão habituados a mandar para serem obedecidos - mas aditos às suas obrigações disciplinares e patrióticas, não merecendo condenação por sabê-las executar com observância e até com severidade. Madeira achava-se ali representando o governo vigente em Portugal, que era o das Cortes, que o próprio rei declarava acatar: não lhe seria honroso, nem digno, deixar-se suplantar na sua autoridade. Entre a junta abertamente simpática à regência brasileira e o general leal e incorruptível que desprezou todas as tentativas de suborno, cavou-se um fosso impossível mais de ser transposto.

Drummond veio de Pernambuco a Bahia no mês de julho, numa barca à vela, das que transportavam farinha de trigo dos Estados Unidos, com o fim de ajudar o trabalho dos patriotas e aproveitou-se das suas antigas relações em Santa Catarina com o general Madeira, que ali servira, para levar a José Bonifácio todas as informações que pôde colher numa inteligente espiagem pela qual se preparava para ulteriores funções no exterior. Saiu para o Rio quando fez escândalo com um artigo publicado no Constitucional - único jornal que defendia a causa nacional num meio terrificado pelos contrários e que, já então forçado a renunciar à pena hábil e veemente de Francisco Gê Acaiaba de Montezuma (depois visconde de Jequitinhonha), saído para o Recôncavo, seria pouco depois empastelado por oficiais portugueses - convidando a junta a dissolver-se pela passividade a que se achava reduzida sob a coação da autoridade militar.

Nas anotações à sua biografia, onde relata estes fatos, conta Drummond que por mais de uma vez foram feitas a Madeira propostas de transação extremamente vantajosas para ele, pois que lhe permitiriam permanecer no Brasil elevado a tenente-general e com meios de fortuna, as quais invariavelmente repeliu, não com atitudes de teatro, mas com a convicção serena de que devia cumprir o seu dever, embora a causa estivesse perdida. Madeira não se iludia quanto ao desenlace dessa contenda "entre pai e filho, que se não queriam" como ele dizia, e na qual lhe caberia infalivelmente o papel de vítima expiatória. Sua honra de militar vedava-lhe porém proceder diverso desse, em que a Drummond se depara mais curteza de inteligência do que nobreza. O soldado desconhecia o ponto do discernimento, que existia para o diplomata, onde cessa a honradez e se desobriga o juramento.

Do Rio de Janeiro animavam evidentemente as disposições da junta da Bahia por meio de Cartas, ofícios, intimações de retirada a Madeira e proclamações aos baianos, tudo em linguagem muito patética e muito recheada de tropos; porém a resistência seguia sempre, apoiada na guarnição, na sua grande maioria portuguesa. A situação de complicada passou a ser insustentável para um governo de eleição popular, que desde a nascença tinha os seus movimentos tolhidos e que pela falta de exercício, conquanto constituído de bons brasileiros, apresentava no dizer de Drummond o defeito da fraqueza. Sobre ela pesava um César constitucional, garantido no seu comando até por uma esquadra, pois que os portugueses tinham, na frase de Drummond, "o mar livre, uma esquadra sua, muitos navios mercantes, uma cidade abastada e um comércio rico em seu favor".

Seus recursos militares não eram todavia de tamanha superioridade que permitissem a Madeira prover-se francamente do Recôncavo, para onde desde março se dirigia a emigração de São Salvador e donde lhe foi interceptado o abastecimento, do que ele fazia responsável a junta. Menos ainda lhe permitiriam ir desalojar o governo revolucionário brasileiro que, "com as pessoas mais gradas da província", se formou pelo esforço bem acolhido do ouvidor de Santo Amaro Araújo Gondim, de Rebouças e outros.

A vila de São Francisco da Barra foi a primeira a pronunciar-se contra a ditadura militar [7] e as vilas do Recôncavo foram-se-lhe seguindo uma após outra com fulminante rapidez, cabendo a palma à da Cachoeira por ter tido que lutar e tê-lo feito com êxito num combate de três horas com uma canhoneira mandada postar por Madeira para bloquear esse centro importante de tráfico do interior com a capital e paralisar seu comércio. Passava-se isto a 25 de junho. Na Cachoeira se constituiu uma junta interina de "conciliação e defesa" e em setembro tornou-se ela a sede da junta de procuradores que assumiu o governo local da Bahia [8]. Desde começos de julho que se achava insurgido o interior contra a capital, faltando por sua vez aos revoltosos da Cachoeira, cuja câmara se proclamava composta de "súditos devotados do príncipe regente", os meios de expulsar a guarnição portuguesa de São Salvador, e desde maio que Borges Carneiro pedia nas Cortes de Lisboa, na sessão de 23, que fossem despachados para a Bahia 2.600 homens para, juntos com os 1.400 que lá havia, perfazerem uma força de 4.000 homens, que ele reputava capaz de arcar com a situação.

Nesse debate e a esse propósito dizia Muniz Tavares que as tropas portuguesas tinham sido a causa de todos os conflitos ocorridos no Brasil e que, se se exasperassem os brasileiros com outras remessas, corria-se o risco deles "declararem, por uma vez a sua independência". Do centro o príncipe regente estimulava os da sua grei. Data de 15 de junho a platônica ordem de retirada a Madeira, da qual Dom Pedro assumia a responsabilidade para com el-rei, "não podendo restabelecer-se a paz, o bem e alegria dos habitantes dessa província, nem a minha própria alegria, enquanto não se praticar na Bahia o mesmo que felizmente se executou nesta corte e em Pernambuco, sendo até necessário, para tranqüilidade de todas as províncias e para se apertarem de novo os relaxados vínculos de amizade entre os dois reinos, que o Brasil fique só entregue ao amor e fidelidade dos seus naturais defensores".

Na mesma data uma carta régia à junta da Bahia recomendava-lhe quanto fosse necessário "para o cômodo regresso da tropa", fazendo constar em toda a província o "muito que o tinham magoado as suas desgraças, bem como os ardentíssimos desejos que tinha de remediá-las e de cooperar com todas as suas forças para que este tão rico tão grande e abençoado reino do Brasil (conhecido só nas Cartas geográficas por alguns que sobre ele legislaram!) venha a ser em breve tempo um dos reinos constitucionais mais felizes do mundo". A 17 era redigida a proclamação aos baianos: "Vós vedes a marcha gloriosa das províncias coligadas; vós querereis tomar parte nela, mas estais aterrados pelos invasores: recobrai ânimo. Sabei que as tropas comandadas pelo infame Madeira são susceptíveis de igual terror: haja coragem e haja valor. Os honrados brasileiros preferem a morte à escravidão; vós não sois menos; também o deveis fazer para conosco, entoardes vivas - à independência moderada do Brasil - ao nosso bom e amável monarca el-rei o Sr. Dom João VI e à nossa assembléia geral constituinte e legislativa do reino do Brasil".

Todos estes documentos e outros da mesma época traem a autoria direta de Dom Pedro: são inquestionavelmente da sua lavra, pela impetuosidade e desassombro, pelo torneio da frase, pelas incorreções gramaticais, pela peculiaridade de certas locuções, não raro familiares, de que fazem repetido uso. Só do Rio podiam porém vir, além das frases de alentar, os reforços terrestres e marítimos que podiam facultar à causa nacional a vitória, com tanto mais certeza quanto não só a sublevação se generalizara fora do foco de oposição lusitana, como o comando português havia cometido o erro inicial de não conservar a posição de Itaparica, a qual não pôde depois recobrar [9].

A própria junta de São Salvador manifestava-se ostensiva e clandestinamente, oficial e particularmente, em favor do príncipe regente, sustentando esta política o Constitucional, impávido na brecha, mesmo depois de Montezuma no Recôncavo, até o atentado de que foi alvo a sua tipografia. Quanto ao senado da câmara, mandou registrar o decreto relativo às eleições para o conselho de procuradores e desde 12 de junho que quisera pronunciar-se pela conservação de Dom Pedro como centro da unidade brasileira, pelo que o governador das armas mandou rondar o paço do conselho e evitar com ameaças de prisão que a vereação se efetuasse, do que esta se queixava para Lisboa a 26 do mesmo mês.

Socorros mesmo não faltaram a nenhuma das duas parcialidades, com a diferença que os de Portugal foram mais prontos, mais abundantes e aparentemente mais eficazes. Para os que sustentavam a união das províncias como preliminar da dos reinos, os auxílios de gente e de dinheiro não foram intencionalmente mesquinhos: vieram para a Bahia os auxílios possíveis e continuaram vindo, de maneira que chegou o momento em que as forças independentes sobrepujaram as da antiga metrópole e levaram a melhor, não só em terra como no mar. O que o governo do Rio menos tinha para dar era dinheiro e ainda assim contraiu para ajudar a libertação da Bahia um empréstimo de 400 contos. Nem foi de desprezar-se, muito longe disso, o esforço local, se bem que o governo provisório lutasse com dificuldades crescentes à medida que aumentavam as forças, só tardiamente podendo satisfazer as requisições. As comissões ou caixas militares adrede estabelecidas desenvolveram grande atividade para fornecer pré e etapa, recebendo para isto donativos particulares, nos pontos ocupados [10].

Em meados de julho saiu do Rio de Janeiro uma esquadrilha comandada por de Lamare e composta de uma fragata, duas corvetas e um brigue, transportando o general Labatut, nomeado comandante das forças de ataque, 34 oficiais para serviço, 260 praças, 6 canhões de campanha e bastante armamento e munições. A escolha de Labatut parece ter sido de José Bonifácio. Era um oficial francês que servira na guerra peninsular e estivera depois um ano (1812 a 1813) ao serviço dos libertadores da Colômbia, não se entendendo porém com Bolívar e sendo, ao que se diz pelas suas arbitrariedades, expulso do país. Assim foi que das Antilhas passou à Guiana Francesa e daí ao Rio de Janeiro, onde foi admitido no exército como brigadeiro.

Labatut parece por tudo ter sido um homem difícil de lidar-se com ele. Facilmente brigava: é verdade que pelo fato de ser estrangeiro e em posição de destaque, tinha também que lutar contra os inevitáveis preconceitos nativistas dos oficiais a quem comandava. Já antes de deixar o Rio a expedição, - refere Accioli - urdira-se contra ele uma conspiração para privá-lo do comando, pelo que mandou prender vários dos seus subalternos.

A pequena expedição não pôde desembarcar em ponto algum da costa da Bahia por causa da esquadra de cruzeiros, para a qual foi nomeado em Lisboa comandante, a 31 de agosto, João Félix Pereira de Campos. A de Lamare tinha sido recomendado que evitasse combate por causa da muita carga que levava. Labatut foi desembarcar em Maceió a 21 de agosto, dali seguindo, a solicitar reforços, para Pernambuco, onde chegou a 27 e obteve as forças comandadas pelo major José de Barros Falcão de Lacerda. De regresso a Alagoas, continuou por terra até a Bahia com toda sua gente, passando por Penedo a 28 de setembro. Sua passagem por Alagoas e Sergipe, caracterizada muito embora por tal presteza de movimentos, foi útil à causa nacional. Na primeira província os portugueses fiéis ao reino europeu tinham-se acantonado em Vila Nova para organizar resistência, e em Sergipe dominava Pedro Vieira, partidário de Madeira. Animado pela presença da tropa, o povo resolveu essas situações.

A divisão naval com que Madeira começou a patrulha da costa era formada por 4 corvetas, 2 brigues e 1 sumaca, mas logo se viu aumentada de mais 2 corvetas e 1 navio armado, vindos de Lisboa com tropas [11]. O navio São José Americano, da frota que transportava a Divisão Auxiliadora, arribado a Bahia a 18 de março por escassez de provisões, como consta das suas declarações, forneceu a Madeira 206 homens mais, mas as tropas chegadas de Lisboa em princípios de agosto somavam 1.200 homens e pouco tempo depois, a 30 de outubro, vieram com uma forte esquadra de 10 vasos, da qual fazia parte a nau Dom João VI dois batalhões de infantaria, um corpo de artilharia e soldados avulsos para preencherem vagas. Robusteceram-se assim consideravelmente os contingentes naval e militar, aumentando também por isso e pelas medidas tomadas por Labatut do ponto de vista estratégico, a falta e portanto a carestia de víveres na capital. Nazareth foi o último ponto donde veio farinha para seu suprimento.

A 1.º de abril de 1823 uma nova expedição viria ancorar no porto de São Salvador, elevando todas as forças de que para o combate supremo podia dispor Portugal, graças ao esforço admirável que realizara para não ceder sem honra. Com o seu espírito de detalhe refere o barão do Rio Branco que o poder naval português ficou dispondo de embarcações montando 438 canhões: só a nau Dom João VI era armada com 74 canhões e as fragatas Constituição e Pérola, uma com 54 e outra com 46, devendo agregar-se aos 15 navios maiores, as charruas e transportes e a flotilha do Recôncavo.

Em novembro de 1822, por ocasião do ataque às posições de Pirajá, Madeira tinha às suas ordens - ainda segundo os cálculos de Rio Branco - 8.621 homens. Suas forças, incluídas as milícias, subiam em abril de 1823 a um efetivo de 9 a 10.000 homens, mais de metade de soldados aguerridos nas campanhas peninsulares, a opor ao total de 13.405 homens das tropas brasileiras no mesmo mês e ano - 11.000 combatentes, descontado o pessoal de comissariado e dos hospitais.

Pernambuco uniu-se ao centro pelo tempo em que se declarava aguda a crise baiana, extremando-se os dois campos e abrindo-se a guerra civil. Sua atitude chegou porém a preocupar seriamente o governo da regência ao ponto que Dom Pedro, depois de receber no Paço da Cidade a deputação que lhe foi tributar homenagem, não se conteve que não assomasse radiante à janela e bradasse para o povo aglomerado em baixo e assim participando diretamente da vida política: "Pernambuco é nosso!". Não o era até então, apesar das mensagens dos pernambucanos residentes no Rio e redigidas por Manuel Caetano de Almeida e Albuquerque, em que se diz que "o rasgo do Fico colocou o príncipe acima de todos os outros do universo, deu ao Brasil o impulso capaz de elevá-lo a um grau superior na escala das primeiras potências do mundo, forneceu à casa de Bragança um assento indestrutível e ensinara aos reis a consultarem o coração humano e a pesquisarem a origem e a necessidade do pacto social".

Não custara pouco obter o resultado que justamente alegrava Dom Pedro. Tivera-se antes como certo, desde que se instalara a junta eleita de Pernambuco, que ela não acompanharia as Cortes. Era demasiado fresca e demasiado viva a recordação de 1817 para qualquer aproximação íntima de Portugal, mesmo no terreno constitucional, e o que maior temor inspirava era seu possível republicanismo, com a sugestão da confederação esboçada pelos precursores e que não tardaria a ser a do Equador. Manuel de Carvalho, intendente da marinha em 1822, já exercia bastante influência nas coisas públicas e estava a caminho de ser o ídolo da classe popular.

Gervásio Pires Ferreira, o presidente da junta, era uma esfinge, cujas boas graças era forçoso ao governo da regência alcançar, embora violentando o fado. Pernambuco optando pela causa comum, era a Bahia colocada entre dois fogos e o espírito reputado belicoso da população pernambucana alistado em prol do ideal de independência ligado ao de união nacional.

A junta nunca foi incondicional na sua sujeição voluntária às Cortes. Sua repugnância a assumir compromissos definitivos, quer com o Soberano Congresso de Lisboa, quer com a regência do Rio, provinha em grande parte de um mais pronunciado sentimento democrático, que era já uma tradição política filha dos acontecimentos e que emprestava fortaleza ao particularismo, em obediência ao qual o governo do Recife procurava suas vantagens. Aquela repugnância provinha também da idiossincrasia de Gervásio Pires Ferreira, que desde sua prisão na Bahia, onde se conta que simulou durante anos perfeita nudez para escapar aos interrogatórios, ficara sendo um enfermo da vontade. O visconde de Cairu escreve menos caridosamente que era "um caráter anfíbio".

Sua afonia pode mesmo ter sido um fenômeno nervoso. Nesse estado doentio, depois que, recuperada a voz, já não carecia de valer-se do papel ou da pedra para escrever as respostas, valia-se de subterfúgios para não agir e só cedia sob pressão, parecendo então que nada lhe era custoso sacrificar. Até lá sua indecisão se comprazia em suscitar problemas de casuística constitucional: estava na alçada de el-rei delegar sua autoridade executiva no seu filho como regente, quando já reconhecera a soberania das Cortes? e outros que tais, que para alguns dissimulavam um profundo cálculo político.

Dizia-se que o rico negociante pretendia aproveitar-se do prestígio moral que o circundava e com que subira ao poder, para conduzir entre escolhos mil o barco do Estado ao porto feliz da independência com a República, onde a província não conseguira fundear em 1817. Porto Seguro, que não acredita na genial velhacaria com que se quis dotar Gervásio Pires, aponta sem as explicar diversas incongruências nos seus atos: ter feito embarcar sem promover reação o batalhão dos Algarves em janeiro de 1822 e entretanto consentir em perseguições contra os portugueses domiciliados em Pernambuco; aplaudir o Fico e vangloriar-se junto às Cortes de continuar afastado da regência; alcançar com refinada tática, como confessa o autor da História Geral, que das tropas transportadas de Portugal pela esquadra de Francisco Maximiliano de Sousa nenhuma ficasse no Recife e resistir aos emissários do príncipe para esposar-lhe o partido, furtando-se até a mandar pôr em execução o decreto de eleição dos procuradores ao conselho a reunir-se no Rio de Janeiro.

Explicava-se sua hostilidade a esse conselho de Estado por entender que semelhante criação invadia as atribuições das Cortes e do soberano e poderia converter-se num instrumento do governo central do Rio de Janeiro para dilatar e ao mesmo tempo robustecer sua autoridade sobre todo o Brasil, ao que Gervásio Pires era infenso como representante da autonomia pernambucana. José Bonifácio respondeu a tais objeções dizendo tratar-se de um conselho consultivo, para julgar da aplicação ao Brasil das leis votadas em Portugal e nem sempre adaptadas ao reino americano, assim cuidando do levantamento nacional, ouvindo os ministros sobre seus projetos e com eles discutindo a oportunidade dos mesmos [12].

No Rio tinham corrido notícias de que a tropa portuguesa chegada em dezembro a Pernambuco aí encontrara boa acolhida e boa camaradagem, e com isto não só se impressionaram os dirigentes como os agentes do movimento de emancipação. Foi por estes decidida a ida ao Recife de um dos 9 iniciadores do clube da resistência, que se transformou depois no clube da independência, compreendendo entre outros José Mariano de Azeredo Coutinho, Nóbrega, José Joaquim da Rocha, os dois Drummonds [13]. A escolha recaiu precisamente em Antônio de Meneses de Vasconcelos Drummond, que de fevereiro a junho fez o seu trabalho de sapa.

A 1.º de junho, reunidos no paço municipal de Recife o senado da câmara com o juiz de fora como presidente, o procurador do povo Basílio Quaresma Torreão, representantes militares de cada um dos batalhões de linha - um de artilharia, dois de caçadores - e do esquadrão de cavalaria e representante do clero, declararam ser vontade unânime do povo e das sobreditas corporações que fosse reconhecido regente do Brasil, com o poder executivo inerente ao cargo, o príncipe Dom Pedro, independente do executivo de Portugal, se bem que sujeito às Cortes e ao rei e em união com os irmãos de Portugal e dos Algarves, "em tudo o que se não encontrar com os nossos direitos".

A junta relutou bastante em aceder a essa intimação, negando-se o membro que estava presidindo interinamente a sessão, cônego Manuel Inácio de Carvalho, a dar andamento ao reconhecimento e juramento reclamados. Foi quando, depois de trocadas várias explicações e não poucas falas, o presidente Gervásio Pires interveio com a sua casuística: "Ou isto é representação, ou consulta, ou resolução já tomada; se é representação o governo tomará o seu acordo e a deferirá; se é consulta será preciso convocar as autoridades para se discutir. Se porém, acudiu o Mayer e o Meneses, é resolução que o povo já decidiu? Ao que disse o presidente: Para que estão os senhores abusando da inocente credulidade deste povo? Repetindo porém os mesmos perturbadores: Sim, senhor, é o povo que assim o quer. Então respondeu o presidente: Se é resolução, sou um paisano fraco e desarmado; assino de cruz; venha o livro da ata da câmara, que eu e o governo assinaremos dez vezes, se é preciso" [14].

A esta sessão compareceram pessoas estranhas às corporações e até à província: o bacharel Mayer, "que tinha sido nomeado pela câmara para ir ao Rio de Janeiro beijar a mão a S. A. Real por ter tido a bondade de ficar no Brasil"; Drummond, apelidado na ata Meneses, chamado ao fazer-se mais embrulhado o transe e, após algumas negaças mais da junta, um terceiro "partidista da assinatura, um sr. João Estanislau de Figueiredo Lobo, desconhecido por todos, chegado a esta terra oito dias antes, talvez como emissário de algum partido desorganizador, o qual disse: O povo tem assumido os seus direitos, o povo quer; é preciso obedecer. Então saiu o Mayer da sala; demorou-se um pouco fora, e quando entrou corriam alguns homens, dizendo: O povo está em comoção, porque lhe foram dizer que o governo não quer reconhecer o príncipe, e o corpo de artilharia correu para os quartéis, e muita gente com eles, para virem atacar o governo".

O elemento decisivo foi com efeito o militar, como soe em casos tais. O elemento decisivo foi então encarnado pelo tenente de artilharia Wenceslau Miguel Soares, que representava seu batalhão. Saiu dizendo que ia apaziguá-lo, já que o motim roncava fora e voltou para avisar que a artilharia não se moveria se a junta assinasse. Entretanto Drummond e o desconhecido discutiam insistindo no argumento de que o príncipe real "já tinha descido da qualidade de delegado de S. M. uma vez que el-rei tinha assinado o decreto da sua retirada para Lisboa, e que por conseqüência o poder executivo que hoje exercia era o que as províncias do sul lhe tinham conferido". O príncipe regente representava portanto uma autoridade revolucionária. O cônego Manuel Inácio, que era forte discutidor, pediu vênia para responder, ponderando que "para podermos admitir essa proposição, era preciso que argüíssemos a S. A. Real do crime de déspota e de usurpador de jurisdição, pois que ele tem continuado a exercer o poder executivo sobre esta província sem que nós lhe tenhamos conferido, nem nos julguemos autorizados para lhe conferir".

O fato mais positivo é que a junta estava coata, segundo observou Filipe Neri Ferreira; o que os três de fora negavam fazendo notar que o povo apenas queria o príncipe com o poder executivo sem restrição, como ele o exercia no Rio de Janeiro e el-rei em Portugal. Acudiu o cônego que o poder do príncipe constituía uma mera delegação para o Brasil, parte do reino unido; mas concordava em que se ajuntasse - "do modo que o mesmo real senhor se reconhece delegado". Aí já os outros queriam que se acrescentasse hoje, querendo referir-se à investidura do Sul.

A discussão era puramente técnico-constitucional, das que agradavam a Gervásio Pires, mas não podia eternizar-se, embora faltasse, na opinião da junta, para se poder aquiescer com o que se estava chamando vontade popular, que esta se manifestasse pelos seus órgãos legítimos, que eram as câmaras municipais. Gervásio Pires acabou por ir "refrigerar-se" como reza a ata, isto é, tomou um copo d'água e diante de outro apelo, de um moço do Ceará Grande, para que não corresse o sangue, pediu o livro e assinou. Assinaram todos, conforme testemunha o secretário que redigiu a ata, padre Laurentino, Gervásio Pires no entanto protestando não ser perjuro e continuar obedecendo às Cortes e a el-rei. O trio interventor não achava dúvida em que se obedecesse às Cortes, "mas há de ser no que não se opuser aos decretos do príncipe".

As tergiversações da junta não cessaram depois de nomeada a deputação que devia ir ao Rio participar tão grata notícia ao chefe do poder executivo do Brasil autônomo, e da qual era o membro mais conspícuo Filipe Néri Ferreira, personagem igualmente da revolução de 1817 e parente de Gervásio. Ora era um dos três deputados que não estava pronto, ora era a escuna, e Manoel de Carvalho, à frente do arsenal, entrava no jogo ao que diz Drummond, para agravar a demora. Por fim como os dias passavam e nada acontecia de contrário à resolução forçadamente tomada pela junta ou de fagueiro aos instintos republicanos de alguns, lá se foi a embarcação a 2 de julho, chegando no Rio a 19, alegrar o coração dos que na capital suspiravam pela adesão de algumas unidades, mais do Brasil desunido.

Foi na verdade um dia de festa e tanta era a excitação, que observa Drummond que ninguém reparou quanto o discurso de Filipe Néri Ferreira era pálido e baldo de entusiasmo. A crítica de Drummond carece neste como em outros pontos de eqüidade. O discurso podia não ser sincero, mas salvava esplendidamente as aparências; tratando o príncipe ora de "anjo tutelar que Dom João VI por sua bondade, suma perspicácia e previsão do futuro, se dignou deixar como penhor da sua ternura e amor", ora de "jovem herói que, qual outro Tito, vai já fazendo as delícias deste vastíssimo reino". Desculpava-se até o orador de não ter ido antes a deputação por causa das vicissitudes provenientes do estado do reino unido e da "natureza das grandes mudanças, que não tinha dado tempo a que se pudessem gozar frutos sazonados".

Drummond era pois por demais exigente na eloqüência que reclamava de Filipe Néri Ferreira, o qual no entanto, pela dubiedade do seu proceder, dava razão às tramas que por esse tempo estava tecendo no Recife Bernardo José da Gama, para acabar com a própria junta e substituí-la por outra de caráter mais francamente unionista que ele dirigisse ou inspirasse. Esse desembargador e futuro visconde de Goiânia fora a Pernambuco, despachado do Rio pelo elemento mais poderoso da maçonaria, que era a facção avançada, com os mesmos intuitos que Drummond, com uma missão todavia mais radical pela gente que a instigava, visando a derrubar quando a ditada por José Bonifácio se contentava com atrair. Já encontrou porém consumada a adesão e prestes a partir a deputação.

Gama era adversário de José Bonifácio e não atendeu ao pedido de Drummond de não promover a dissolução da junta: verdade é que Gervásio Pires continuava irremediavelmente a tergiversar, valendo-se da câmara de Olinda e pretextando agora ter que consultar as câmaras municipais e proceder primeiro ao recenseamento da população, antes de fazer eleger os deputados à Constituinte brasileira, no que foi novamente contrariado e compelido a agir diferentemente pelo povo e tropa (3 de agosto). Diz Rio Branco [15]que auxiliava grandemente Gervásio Pires nessa política que até o fim seguiu, o padre Venâncio Henriques de Resende, republicano separatista que fez parte da Assembléia Constituinte de 1823.

Logo que Bernardo José da Gama pôde fazê-lo, realizou seu intento: ajudado pelo capitão Pedroso da revolução de 1817, de regresso do calabouço de Lisboa com o indulto das Cortes, levou a cabo a 16 de setembro um pronunciamento que lhe não aproveitou diretamente, porquanto não figurou nem no governo temporário formado a 17, nem na junta nomeada a 23 pelos eleitores do Recife e Olinda [16].

Num tópico sobretudo agiu Filipe Néri Ferreira no Rio de Janeiro com hipocrisia e foi na questão do tratamento dos oficiais, que ele aliás apodava de facciosos no ofício de 28 de junho ao príncipe regente, em que historiava o reconhecimento do executivo brasileiro. Esses oficiais eram os da promoção da junta de Goiânia. Havia contudo outros, promovidos por Luís do Rêgo e que eram os que se lhe tinham conservado fiéis, cuja lista fora para ser confirmada em Lisboa. Os primeiros recebiam entretanto desde a deposição do capitão-general o soldo dos seus novos postos e todos usavam as respectivas insígnias. Naturalmente os da promoção nacionalista eram pela causa do príncipe, porque esta encarnava a independência na qual, segundo de lá mandava dizer Drummond para o Rio desde sua chegada, se consubstanciava o sentimento da terra, "precisando os pernambucanos mais de quem os contivesse do que de quem os animasse a marchar", sendo natural que assim fosse num meio como o que produziu o movimento de 1817.

Por sugestão de Filipe Néri Ferreira ao ministro da guerra, que desde 27 de julho era Nóbregai [17], ficou a sorte das duas promoções entregue ao arbítrio da junta pernambucana, a qual não deixaria de vingar-se daqueles que a tinham forçado a submeter-se se Drummond não fizesse revogar a ordem ou melhor... se a junta não tivesse deixado de existir.

A mudança de política em Pernambuco foi proveitosa à própria província porque sua condição estava deslizando rapidamente para a anarquia sob pretexto de conquistar a liberdade. As notícias trazidas de Pernambuco pelo cônsul geral inglês Chamberlam, quando por lá passou em maio de 1822, eram que os portugueses se viam perseguidos, correndo o risco de sê-lo não só os Outros europeus como toda a população branca [18]. Poucos dias depois [19] escrevia o encarregado de negócios da Áustria que a junta de Pernambuco, "justamente alarmada depois da expulsão das tropas portuguesas e atemorizada pelo espírito da população negra, rogara a S. A. Real que lhe enviasse tropas brasileiras".

A mudança foi também eficaz na esfera de influência pernambucana que se exercia então de Alagoas [20] ao Ceará, podendo dizer-se que, afora a Bahia, só restava o Pará-Maranhão para ligar sua sorte à do Brasil unido. Este trabalho estava reservado ao sea-power criado pela jovem nacionalidade e cuja direção foi confiada a lord Cochrane, que se sabia andar pouco satisfeito com os que o tinham convidado a prestar seus serviços à causa da emancipação das colônias espanholas do pacífico. Escreveu-lhe naquele sentido, a mandado de José Bonifácio (setembro de 1822), o cônsul brasileiro em Buenos Aires, Manuel Correia da Câmara; sua carta foi de 4 de novembro e o almirante respondia a 29, aceitando. Segundo Cairu, o próprio Dom Pedro escreveu diretamente e do seu punho.

Cochrane era um valente marinheiro, mas um espírito sórdido. Nessa época em que lutar e morrer pela liberdade dos outros povos não era coisa rara, ele saíra da Inglaterra, mas não impelido pelo romantismo de Byron e muito mais lhe assentaria do que a este bardo expirar nos lugares em que os aronautas foram arrebatar o velocino de ouro. A sua preocupação como almirante dos países exóticos sul-americanos cifrou-se nas presas. O lado moral da luta em que andava envolto escapava-lhe inteiramente. Sua reputação de aventureiro corria aliás mundo. Mareschal, escrevendo a Metternich [21], dele dizia que era "um bandido audaz, capaz de tudo, só conhecendo um fito e um desejo, o ouro; pronto igualmente a praticar um grande atentado e uma miséria por um escudo, contando-se a esse respeito os atos mais extraordinários".

Notas

[editar]
  1. Carta de 15 de fevereiro de 1822.
  2. Documentos publicados por Melo Moraes.
  3. Documentos publicados por Inácio Accioli nas Memórias Históricas da Bahia por Melo Moraes na História do Brasi1-Reino e Brasil-Império e por J. da Silva Lisboa ma História dos principais sucessos.
  4. Eram vogais Francisco Elesbão Pires de Carvalho e Albuquerque, Francisco Martins da Costa, cônego José Cardoso Pereira de Melo, tenente-coronel Manuel Inácio da Cunha Meneses e desembargador Antônio da Silva Teles, além do brigadeiro Manuel Pedro de Freitas Guimarães, comandante das armas.
  5. J. da Silva Lisboa. ob. cit.
  6. Ofício de 7 de março de 1822.
  7. J. da Silva Lisboa, ob. cit.
  8. Era seu presidente o capitão-mor Francisco Elesbão Pires de Carvalho e Albuquerque; 1.º secretário o bacharel Montezuma, a princípio Francisco Gomes Brandão, procurador da Cachoeira e encarregado da guerra; 2.º Secretário Miguel Calmon du Pin e Almeida (futuros marquês de Abrantes), procurador de Abrantes e encarregado da fazenda; e vogais, desembargador Araújo Gondim, procurador de São Francisco; capitão-mor Manuel da Silva e Sousa Coimbra, procurador de Maragogipe; capitão Manuel Gonçalves Maia Bittennsurt, procurador de Jaguaribe e padre Manuel José de Freitas, procurador da Pedra Branca,
  9. Segundo escreve Porto Seguro com mais visos de verdade, Itaparica só foi abandonada por Madeira em fins de outubro, quando Labatut tilmou o comando dos independentes.
  10. Inácio Accioli, ob. cit.
  11. No arsenal da Bahia achava-se quase pronta a fragata Constituição, cujo construtor se recusou formalmente a incendiá-la, como lhe propôs Drummond, segundo este relata na sua autobiografia.
  12. J. da Silva Lisboa, ob. cit.
  13. Drummond, Anotações cit.
  14. Ata da sessão de 1.º de junho, entre os documentos publicados por Melo Moraes.
  15. Notas à História da Independência.
  16. Eram seu presidente Afonso de Albuquerque Maranhão, seu secretário José Mariano Cavalcanti de Albuquerque e seus vogais o morgado do Cabo Francisco Paes Barreto, Francisco de Paula Gomes dos Santos, tenente-coronel Manuel Inácio Bezerra de Melo, Francisco de Paula Cavalcanti de Albuquerque e João Nepomuceno Carneiro da Cunha. Foi a chamada "junta dos matutos", pela preponderância que nela teve o elemento rural.
  17. Refere Mareschal (ofício de 3 de junho) que Oliveira Álvares foi substituído porque disse ter-se esquecido de remeter a Madeira a carta régia intimando-o a retirar-se, a qual ele devia ter referendado e haver feito seguir com a carta régia à junta. Foi preciso expedi-la por uma embarcação especial para alcançar a outra.
  18. Ofício de Mareschal a Metternich de 3 de junho de 1822.
  19. Oficio de 18 de junho.
  20. O movimento de adesão das Alagoas, de 28 de junho, foi um reflexo do de Pernambuco, sendo embarcados para Portugal os oficiais de 1.ª linha e empregados civis discordantes.
  21. Ofício de 17 de maio de 1822.