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O Movimento da Independência/XXI

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Boda molhada, boda abençoada, diz o rifão português, e assim deveria ter sucedido à boda do Imperador com a nação brasileira, a julgar pelas fortes bátegas d'água que assinalaram o dia da cerimônia posta em cena por Debret, o pintor de história emigrado da corte dos Bourbons para o Rio de Janeiro de Dom João VI e em cujo cotação nunca cessaram de palpitar as saudades da época napoleônica.

A moda conservava-se ainda toda pelos arcos de triunfo e nada menos de cinco, devidamente alegóricos, se destacavam desde o campo da Aclamação até à rua Direita, para os quais - imitações de madeira e lona, destinados a vivre l'espace d'un matin - contribuíra largamente o Grande Oriente, que com justa razão considerava a festa como a sua própria. Era ao mesmo tempo uma festa militar, porque mal poderia um império desprender-se da pompa guerreira. Três mil praças no cálculo de Porto Seguro, seis mil no de Rio Branco, sempre minucioso nos pormenores, especialmente desta natureza, mas tendendo invariavelmente a acentuar a valia militar da nação, formaram a guarda do jovem soberano. Para o seu efetivo concorreram o Rio de Janeiro, Minas e São Paulo, não faltando o batalhão dos henriques porque as tradições da guerra holandesa associavam intimamente no espírito público as três raças que nela tinham combatido juntas pela restauração portuguesa e entravam agora a inflamar a ênfase da retórica patriótica expressando-se pela voz da independência, a qual, "mais poderosa que o trovão, retumbava do Amazonas ao Prata", com a variante, geograficamente exagerada, "do equador ao pólo".

O Espelho, ao descrever os festejos da Aclamação, o menos que chama Dom Pedro é de numen tutelar, expressão muito usada entre os publicistas brasileiros, e compara-o com os maiores vultos da história - Alexandre, Augusto, Tito, Luís, não sei se São Luís ou Luís XIV - perdendo positivamente a fala como diz ("as vozes expiram na garganta") quando trata do esplendor do golpe de vista do espetáculo, já pelo luzimento da tropa a postos, já pelas cores vivas das colchas dependuradas das janelas e das varandas onde se ostentavam senhoras, muitas delas vestidas de verde e de amarelo.

O juramento imperial era o que se poderia denominar a pedra de toque, do ponto de vista político, do regime que se ía inaugurar. Os liberais pretendiam expurgá-lo de todo caráter aristocrático e sobretudo excluir ab initio as prerrogativas da realeza de um sabor que lhes parecia arcaico, o veto absoluto por exemplo. Na reunião da câmara municipal do dia 10 de outubro ficara porém decidido, por proposta de Pedro da Costa Barros, major da brigada nacional da marinha, que se era "conforme a todos os sólidos princípios do sistema convencional até reconhecido pelas Cortes de Lisboa, ser livre, quando alguma nação muda o seu pato social e forma de governo, separar-se qualquer parte da mesma nação se as condições do novo pacto lhe não agradarem - o que acontece ao Brasil relativamente a Portugal, por serem manifestamente lesivas as condições do mesmo pacto social que este lhe prescreve - não lhe parecia ser o dia 12 próprio para S. A. Real prestar o juramento do estilo, por ser costume prestar-se este no ato das coroações dos monarcas, ato que se não verificava naquele dia, devendo reservar-se a prestação do mesmo juramento para o dia da coroação do mesmo senhor".

Costa Barros mostrou-se assim o que hoje denominaríamos um tradicionalista, mas a sua sugestão foi por todos aprovada e a ata da sessão traz como primeira assinatura a de José Clemente Pereira, que era dos constitucionais rubros. O que dois dias depois se incluía na cerimônia da aclamação era a aceitação do título imperial mediante a investidura nacional que estabelecia a legitimidade do regime aos olhos da facção avançada, ao passo que a consagração de um novo trono o tornava aceitável aos que se apegavam ao passado, no que este pelo menos oferecia de garantia da ordem e preservativo da anarquia.

Nas curtas palavras proferidas pelo Imperador fez-se mesmo abstração de toda referência à futura lei orgânica, limitando-se Dom Pedro a declarar que aceitava aquele título soberano, com a restrição de constitucional, porque estava convencido de que tal era a vontade da nação, faltando, pela escassez do tempo apenas, as representações de certas câmaras a juntar às que tinham sido apresentadas, e tendo-se pronunciado favoravelmente a respeito o conselho de Estado e de procuradores gerais.



A crise política começou pois verdadeiramente na ocasião da aclamação, ou melhor começara poucos dias antes da solenidade, pretendendo a facção democrática cercear a autoridade imperial no próprio momento em que ela era conferida, o que só não tentou realizar porque o príncipe e seu ministro, sabedores de suas intenções, tomaram precauções para tolhê-las e iludir semelhante propósito. A questão era de quem predominaria - o soberano ou a assembléia, a coroa ou a constituição?

Os democratas entendiam que o príncipe devia subordinar-se à lei orgânica adotada, mais do que isto, elaborada pela nação. Os conservadores, como José Bonifácio, não queriam ver o soberano simples mandatário da nação, antes queriam repartir a soberania nacional entre monarca e parlamento, cabendo muito embora ao monarca a sua parte pela investidura de uma autoridade superior ao parlamento que era a vontade direta do povo, manifestada por uma espécie de plebiscito que lhe confiara a direção executiva dos negócios públicos, ao passo que aos representantes eleitos da nação ficava exclusivamente reservada a tarefa legislativa, isto é, a redação dos estatutos a serem aplicados pelo executivo. Estabelecia-se deste modo um pacto em virtude do qual o soberano a nada se obrigava senão a rejeitar aquilo que fosse inadmissível, conservando-se portanto a porta aberta para as suas afirmações eventuais de autoridade que contrabalançassem as demasias da liberdade.

Assim definia José Bonifácio a Mareschal a situação [1] ao explicar-lhe a necessidade da solução da completa independência e fazendo valer a pressão que sobre ele e o príncipe tinha exercido o conhecimento de certos fatos, entre outros a existência de um tratado ofensivo e defensivo de Portugal com a Espanha contendo o compromisso da devolução de Montevidéu, a negociação de um empréstimo na Inglaterra, dando o governo constitucional em garantia a ilha da Madeira para lhe serem facultados os recursos de debelar a resistência brasileira, e um projeto de manifesto do rei contra seu filho a que Dom João VI seria coagido a dar sua assinatura.

José Bonifácio insinuava além disso ao principal dos governos da Santa Aliança que a aclamação imperial seria inevitável uma vez que se reunisse no Rio de Janeiro a assembléia representativa, e que melhor era que se fizesse da maneira por que ia ter lugar - este colóquio ocorreu no dia 11 à noite - sem colocar numa dependência perigosa o Imperador, que assumia tal título mercê da grandeza territorial do país, um dos maiores da terra.

O diplomata austríaco estava de resto perfeitamente convencido de que o ministro brasileiro tinha razão, ou pelo menos de que a aclamação era fatal, o que lhe dava razão, e informou mesmo a sua corte de que o entusiasmo popular fora muito grande, especialmente quando Dom Pedro e Dona Leopoldina apareceram na varanda do palacete do campo de Sant'Anna e mostraram à multidão, erguida nos braços paremos, a princesinha Dona Maria da Glória.

O povo não cuidava de melindres constitucionais: um príncipe desempenado e garboso, capaz de belas atitudes, produzia mais apelo sobre sua imaginação do que qualquer teoria de direito público. Para aumento da satisfação geral, recebeu-se de Lisboa poucos dias depois, a 16 de outubro, a notícia de que as tropas destinadas à reconquista do Brasil tinham desembarcado dos navios que as deviam transportar, o que levava a crer na desistência pelas Cortes do seu plano.

Mareschal consolava-se facilmente da independência, que era em suma toda em prejuízo de Portugal, com a convicção de que se achava possuído de que caíra inteiramente qualquer idéia de república tanto assim que a Monsieur d'Andrada adviera como que uma reconquista do seu prestígio que os seus inimigos tinham procurado marear. E tanto melhor, ajuntava o diplomata, porque, a despeito da sua petulância e do seu ardor, era ele incontestavelmente um estadista de recursos e sinceramente devotado a seu amo e à causa monárquica, donde o empenho da oposição em fazê-lo sair do gabinete.

As formas ou convenções, quando não fosse a cautela inerente à profissão, obrigavam porém Mareschal a não prejulgar os sentimentos do seu governo com relação à transformação política de que o agente estrangeiro estava sendo testemunha; pelo que este se abstinha de dar ao príncipe e princesa tratamento de majestade e, para evitar dificuldades dai procedentes, deixava de comparecer na corte; sem que isto implicasse sombra de desrespeito ou desafeição para com as augustas personagens, pela ventura das quais fazia os votos mais calorosos.

Nos conselhos diplomáticos da capital brasileira não reinava a tal propósito uniformidade de opiniões. O cônsul geral e encarregado de negócios da França Maler, que era um esturrado, dera por terminadas as suas funções políticas e julgava apenas subsistentes nas relações mercantis que não excluíam mais da corte, como antigamente, os respectivos agentes comerciais, pelo que os cônsules gerais inglês e russo, Chamberlain e Langsdorff, assim se considerando apesar de igualmente encarregados de negócios, tinham comparecido ao beija-mão do Paço, com isto armando, no dizer de Mareschal, à popularidade brasileira. Langsdorff, que se interessava pelo país científica e economicamente, estudando-lhe a história natural e ocupando-se de colonização européia nas suas terras, aconselhara-se a respeito com José Bonifácio e compareceu até no campo de Sant'Anna.

Se bem que conservasse muitos dos atributos essenciais e todos os atributos exteriores da realeza, Dom Pedro não criou logo uma nobreza especial, pelo que o felicitaram publicamente os democratas, que apontavam a casta aristocrática como encerrando o princípio corruptor das nações. É difícil compreender como eles harmonizavam o seu republicanismo - pois que negavam a coexistência de outra soberania com a soberania popular - com a exaltação do dinasta que outra coisa não era Dom Pedro, não obstante o caráter democrático que pretendiam emprestar à sua ascensão ao trono. Verdade é que no íntimo do seu pensamento o trono constituía uma solução temporária, e no dizer de João Soares Lisboa, à frente do Correio do Rio de Janeiro, imperadores desse quilate equivaliam a presidentes, sendo aliás um "Dom Pedro I sem segundo".

Entretanto instigado pelo seu ministro, a quem os adversários não poupavam e pensavam em depor por meio de um pronunciamento que os levasse ao poder, Dom Pedro patenteava não renunciar à sua função suprema, tanto mais prestigiosa quanto na sua modalidade se combinavam neste caso a feição tradicional e a feição popular. Nem hesitou em aprovar uma série de medidas contra os seus apologistas radicais. A 21 de outubro o Correio do Rio de Janeiro era suprimido e dado ao seu redator o prazo de uma semana para sair do Império; José Clemente Pereira era intimado a solicitar sua demissão; o padre Lessa era desterrado para vinte léguas da Corte, e a vários militares eram dadas comissões no interior, entre os índios.

José Bonifácio quis porém forçar a nota, conquanto no conselho dos procuradores já se tivessem levantado protestos pelos seus atos arbitrários, sem forma de processo, contra a liberdade de imprensa e de reunião. Entendeu ele englobar nas detenções os seus inimigos paulistas, a começar pelo Francisco Inácio da bernarda, e pôr cobro à atividade do Grande Oriente, que o desfeiteara, vibrando contra o mesmo a deliberação do seu imperial grão-mestre, o que era um refinamento de vingança.

A fraseologia era a do costume, qualificando-se os contrários de "perversos" e os seus projetos de "tramas infernais", e lançou-se a idéia de decretar a lei marcial contra as chamadas "chicanas forenses".

Tudo isto, enxergando-se por trás da divergência política o elemento pessoal que mais a azedava, determinou prontamente uma reação e Dom Pedro, cuja natureza era acessível à verdade, despontando facilmente no seu espírito, amigo de novidades, assomos de decisão voluntariosa e quiçá por vezes injusta, mas também impulsos de demência e magnanimidade, caiu em si quando viu três procuradores no conselho protestarem contra as medidas de rigor e ouviu falar em petições monstros em favor do jornalista condenado. Ledo, que pretendera pôr o mar de permeio depois que Dom Pedro sobre ele desfechara verbalmente a sua cólera, correndo que emigrara para Buenos Aires, não o fez porque o soberano se mostrou disposto a deixá-lo ficar em paz.

A reabertura do Grande Oriente foi ordenada, Dom Pedro não podendo esquecer que, na frase de Mareschal [2], o ato do dia 12 fora entiérement leur ouvrage . O certo é que a 27 de outubro já José Bonifácio informava o agente diplomático austríaco de que fora aceito o seu pedido de demissão apresentado ao Imperador e motivado pela discrepância de vistas. Na verdade Dom Pedro e Dona Leopoldina tinham ido repetidas vezes solicitar do ministro que não desamparasse seu posto de responsabilidade, mas também de confiança. Mareschal reputava o Príncipe capaz de desenvencilhar-se num momento de apuro dos laços perigosos em que se deixara enlear e que prolongavam uma situação ambígua, pois não havia dúvida que o "clube obscuro de franco-maçonaria" a que se referia Mareschal tinha realmente tomado a iniciativa da aclamação imperial, mas com isto lucrando o partido democrata que tão bem se poderia denominar republicano.

Por outro lado a luta política que assim se esboçava era de feitio a açular a índole apaixonada de um jovem cedo sacudido no terreno de ação e que em alguns dos seus ímpetos dava antes mostra de carecer de influência moderadora no exercício da "maior amplitude de poder" [3] com que o fora brindar o povo, para que ele encarnasse superiormente a defesa dos seus direitos.



O novo ministério organizou-se com certa dificuldade, porque mesmo havia a impressão de que seria uma coisa muito transitória. Foi José Bonifácio substituído nos negócios do império e estrangeiros pelo conde da Palma, por haver recusado o lugar o barão de Santo Amaro; Caetano Pinto na justiça pelo chefe de polícia João Inácio da Cunha (futuro visconde de Alcântara); Martim Francisco na fazenda pelo desembargador Tinoco da Silva; Luís Pereira da Nóbrega na guerra pelo coronel João Vieira de Carvalho (depois marquês de Lages), e Farinha na marinha pelo chefe de esquadra Luís da Cunha Moreira, veterano da expedição de Caiena e depois barão de Cabo Frio:

Nada havia que dizer contra a honradez deste pessoal escolhido para a alta administração, mas o prestígio dos Andradas superava a boa reputação dos seus substitutos e, como sempre acontece, a opinião, que neste caso lhes era positivamente favorável, recebeu estímulo de uma propaganda eficaz. Mareschal na sua correspondência, escrita sob a impressão imediata dos acontecimentos que se iam desenrolando, não mostrava confiança no futuro desse gabinete sem cor e sem força no seu dizer; composto de verdadeiros verbos de encher (pièces de remplissage). O único dos ministros que não era uma personagem nula e desconhecida era o conde da Palma, o qual aliás parece que nem chegou a tomar posse do cargo: galant homme, dele escrevia o diplomata austríaco, mas que dera mostras na Bahia, ao romper a crise constitucional, de não ter energia para arcar com as situações anormais.

José Bonifácio retirara-se entretanto para uma chácara em Botafogo, senão amuado, pois que não recusou seu concurso para a escolha dos novos ministros, pelo menos despeitado e patenteando com esse afastamento o desfavor em que caíra em resultado das intrigas armadas em redor do trono a fim de monopolizar o valimento imperial, daí resultando o que Melo Morais [4] denominou "funesto choque de animosidades e interesses, uns cidadãos se esconjurando contra suspeito despotismo, outros contra presumido democratismo".

Na cidade entrou logo, a 29 de outubro, a reinar bastante agitação, julgando-se os liberais ameaçados nas suas franquias e poucos seguros nas suas garantias porque os andradistas contra eles açularam a população, tratando-os de republicanos e carbonários, acusações que ainda correspondiam a pecados graves em vista do recentíssimo consórcio da realeza, personificada em Dom Pedro, com a autonomia nacional que o ministro da regência encaminhara com tanta constância quanta felicidade.

José Bonifácio e Martim Francisco não se tinham arredado do poder sem a intenção de volverem aos seus postos, tanto mais quanto a separação se efetuara em bons termos. É também natural, que Dom Pedro se não conformasse, passado o primeiro momento de uma aquiescência determinada pelo desejo de superar a exacerbação partidária que via crescer, com a ausência do seu acatado conselheiro numa emergência semelhante, quando ainda não fora reconhecido o seu trono nem pelas potências aliadas, nem muito menos pela antiga metrópole. Os da facção adversa aos Andradas tinham igualmente prestado seu apoio à solução monárquica, mas eram em suma demagogos contrários a uma coroa bem provida de prerrogativas e de preferência pautavam seu modelo pelos modelos peninsulares, execrados pelos que conservavam o respeito da autoridade tradicional.

Ainda era cedo para nutrir o soberano receios de tutela. As representações em favor da reintegração dos ministros demissionários atingiram pelo esforço dos seus amigos consideráveis proporções; a fraseologia apologética desmanchou-se: os Andradas eram os Franklins brasileiros, os anjos tutelares da regeneração política, a única âncora de salvação do Império, os Atlas que carregavam nos seus ombros o peso da república, os traumaturgos da independência. "O Imperador pareceu qual César circunvalado no Capitólio" - é como Melo Moraes define a situação.

O gosto pelos pronunciamentos militares, introduzido quando o constitucionalismo português se estendeu ao Brasil, fazia com que fossem de temer novas manifestações dessa índole e se por um lado o democrata Nóbrega era popular entra a tropa, por outro os amigos dos Andradas não se descuidaram de chamar a si oficiais da guarnição para que se juntassem as petições respeitosas dirigidas ao soberano para repor nas suas pastas os ministros "beneméritos da pátria" e punir os conspiradores desleais, que não tinham hesitado em semear a desunião na alta esfera governativa.

O povo seria antes sincero no apego que evidenciou por nomes feitos, cuja obra histórica era visível mesmo aos olhos dos ignaros, e o Imperador não foi de encontro aos seus próprios sentimentos anuindo ao que dele reclamavam. Segundo narra a Gazeta do Rio de Janeiro [5], ao ir a casa de José Bonifácio, que encontrou deserta, e ao ver das janelas a "turba imensa que se apinhava e que mais e mais se aumentava, resolve ir de novo pessoalmente não já com motivos próprios, mas com motivos gerais da necessidade pública, debelar a pundonorosa resistência, que até ali havia encontrado naqueles ânimos por extremo sensibilizados".

Saiu o Imperador, acompanhado pela Imperatriz, em demanda do retiro do seu ministro; seguia-os grande magote popular. Em caminho, na rua da Glória, encontraram-se com outro magote que entre aclamações - em charola, escreve com pouca gravidade o cronista Melo Moraes - trazia para a cidade os dois Andradas triunfantes. Vinham ambos a cavalo e Dom Pedro apeou-se do carrinho para abraçar José Bonifácio e o irmão e perguntar ao primeiro se não havia previsto bem a oposição popular à sua saída?

Porto Seguro, sempre hostil aos Andradas, quer que o encontro com o casal imperial tivesse sido casual e descreve, com intuito de ridicularizar, o espetáculo do ministro reintegrado debulhado em lágrimas, prostrado de joelhos diante de seu amo na casa do largo do Rocio, esquina da rua do Sacramento, onde este de novo compareceu, e dando expansão ao seu reconhecimento com as mãos levantadas para o céu. Era natural a emoção de José Bonifácio diante do que se passava, mas Mareschal na sua correspondência diplomática não insere traço algum grotesco. José Bonifácio conservou suficiente domínio sobre si mesmo para declarar da janela, onde apareceu com Dom Pedro, que só aceitava a reintegração com a condição de serem punidos os culpados, e o seu reconhecimento para com o soberano que o estava por tal modo distinguindo traduziu-se nos vivas que soltou e a que o povo correspondeu com júbilo. Vivam Pedro primeiro, segundo, terceiro, quarto, bradou ele, aludindo ao Pedro sem segundo dos democratas [6].

O gabinete recompôs-se com os dois Andradas e Caetano Pinto, que partilhou das ovações, continuando os dois novos ministros da guerra e marinha. Como intendente geral da polícia ficou provisoriamente o desembargador França Miranda. José Bonifácio queria sobretudo ver-se livre dos seus adversários, desembaraçar-se de uma oposição incômoda porque tendia a colocar sobre o tapete da discussão, apesar do protesto escrito de Ledo, de que trabalhara com afinco pelo sistema monárquico, a essência mesma do regime que o paulista ajudara tanto a fundar. No decreto de reintegração, de medo de parecer haver cedido ao povo com desprestígio da coroa, o Imperador afirma antes a sua prerrogativa constitucional de nomear ou demitir livremente os seus ministros, segundo as conveniências do serviço público, e até declara que aceitou as demissões solicitadas pelos dois Andradas e pelo seu amigo Caetano Pinto para que o povo pudesse pronunciar-se a respeito, "fazendo justiça à probidade e à virtude" e condenando "os autores desta vil cabala com que eles pretendiam engrandecer-se e promover tumultos, dissenções e finalmente a guerra civil".

É claro que semelhante consulta ao povo não passava de um pretexto para dar realce à concessão, que só se não pode dizer arrancada porque da parte de quem a fez, havia para isto boa vontade. Melhor fora ter deixado aí as coisas. José Bonifácio devia ver logo, aliás, que uma devassa não daria o resultado buscado, por não ser possível chegar a provar nada de positivo. O crime, se o havia - crime político bem entendido -, estava nas intenções mais do que nos atos, e os acusados eram pessoas de recursos intelectuais, que sabiam defender-se, sem falar na roda que lhes seguia o parecer.

O governo estava de antemão certo de encontrar resistências ao pôr em prática sua perseguição. Entretanto não esmoreceu, denunciando por uma portaria dirigida a todas as juntas provinciais e câmaras municipais o "partido anarquista descoberto pelo povo e pela tropa a 30 de outubro". A portaria não só apontava o perigo, como indicava os meios de prevenir-lhe os efeitos mediante a vigilância e prisão dos emissários despachados do foco da conspiração, cujos dirigentes eram mandados deter apesar de exporem - Nóbrega além de Ledo - a razão que os assistia em arredarem de si as acusações de meditarem e promoverem a ruína de instituições de comum acordo adotadas. Nóbrega foi levado para a fortaleza de Santa Cruz; outros, como Ledo e José Clemente, homiziaram-se no primeiro momento, o que constituía para José Bonifácio a melhor das soluções porque, conforme escrevia Mareschal para a sua corte [7], é fácil verificar pela justa ansiedade do ministério de pôr os acusados à distância que o processo a nada pode conduzir.

Pessoalmente Dom Pedro ganhava em relevo pela chegada à Bahia nos começos de novembro dos reforços de Lisboa, que se supusera de vez suspensos. Eram socorros militares, que iam dar novo alento a resistência portuguesa em São Salvador e navais, que representavam uma ameaça para toda a costa. O Império sentia-se falho de meios de ação e, com receio de que os dos contrários ainda se acrescessem com as tropas portuguesas de Montevidéu, onde Lecor, fiel a Dom Pedro, fazia causa a parte, tendo estabelecido em São José seu quartel-general, mandou o governo do Rio de Janeiro, a 14 de novembro, os transportes necessários para conduzi-las de lá para a Europa.

O governo do Rio de Janeiro sentia-se porém em dificuldades no fixar sua atitude para com Portugal e politicamente, neste terreno caminhava às tontas. Pensara, informava Mareschal para Viena, em declarar abertamente a guerra contra a ex-metrópole, outorgar cartas de corso e tratar com toda severidade os portugueses residentes no Brasil que fossem hostis ao Império, assim se prevenindo, pelas medidas prescritas, contra os constitucionais portugueses e espanhóis que as perturbações políticas nos seus respectivos países fizessem porventura emigrar para a América. Um senso mais vivo das realidades depressa convencera porém o ministério brasileiro de que uma declaração de guerra era ociosa, desde o momento em que existia um estado de hostilidades; que a instituição de corsários produziria prejuízos comerciais de que sobretudo se aproveitariam aventureiros estrangeiros, mas não contribuiria para se formar uma marinha nacional; e que providências opressoras sem uma razão de salvação pública tornariam odioso o governo e só fortaleceriam o partido democrata [8].



A devassa foi reclamada pelo próprio Ledo na representação que dirigiu a Dom Pedro a 2 de novembro e na qual censura seus adversários no poder pelo esquecimento que suas arbitrariedades evidenciavam das fórmulas e dos princípios constitucionais, necessários para chamar ao grêmio da união política, "que ainda flutua nos embates da contradição entre os povos das províncias" aquelas "cuja acessão ao nosso sistema não está geralmente decidido". Os acontecimentos de 1823 e 1824 vieram depressa dar razão ao leader democrata, que no referido documento desafiava seus perseguidores a exibirem "o corpo de delito sobre que assenta sua nojosa e negra inculpação a tal respeito".

Ledo achava que ele era quem tinha razão de insurgir-se contra práticas anárquicas dos detentores da autoridade, como por exemplo as "assembléias tumultuárias", segundo denomina os ajuntamentos populares promovidos contra ele e seus amigos defronte da casa onde se reunia o senado da câmara. Requerendo uma ação criminal, conforme a lei, a fim de ser apurada sua conduta, mostrava ele impavidez física e moral, não se deixando acobardar pela atitude de manifesta parcialidade adotada por Dom Pedro para com o seu ministro, de quem dissera o soberano ser o dia de triunfo e caber todas as homenagens, recusando por se permitir que o povo puxasse o seu carro desde o ponto do encontro com José Bonifácio até o coração da cidade.

A devassa foi no próprio dia mandada abrir, mas o governo como que antecipava seu resultado qualificando as pessoas contra quem ia proceder o inquérito dos representantes do poder judiciário de "facciosas e perturbadoras da ordem" - "já infamadas na opinião pública" na expressão de Cairu. E sem esperar mesmo pela palavra da justiça e sem que se os pudesse argüir de flagrante delito, foram deportados para o Havre, a 20 de dezembro, Nóbrega, José Clemente, afinal encontrado, e o cônego Januário da Cunha Barbosa, de regresso de Minas. Ledo conseguiu permanecer acoutado até poder embarcar às ocultas para o Rio da Prata numa embarcação sueca, pela proteção do respectivo cônsul que assim o livrou das tramas dos aduladores dos Andradas e das violências dos capangas oficiais.

A vários outros se estendeu a malevolência do governo, inculpando-os de quererem que fosse adotada provisoriamente a Constituição Portuguesa quase integral enquanto os representantes brasileiros não elaborassem a do Império. Os acusados foram contudo declarados afinal inocentes por falta de provas, apesar dos esforços do juiz sindicante para culpá-los, aduzindo adrede fatos que os perseguidos taxaram de "desfigurados e falsificados" [9].

O bom senso aliás indicava que os mesmos que a 12 de outubro tanto se tinham assinalado na aclamação imperial, não se haviam de por dezoito dias depois a conspirar para destruírem sua própria obra. Sua questão era não com o império: na sua representação a Dom Pedro, Ledo até aventa que "os povos querem ser bem governados e não se importam com formas de governo". Ele combatia os Andradas, que Armitage acusa de terem-se tornado arbitrários e intolerantes quando empolgaram o poder [10] .

As testemunhas, visivelmente preocupadas em agradar o poderoso ministro reintegrado no favor imperial, depuseram sobretudo que tinham ouvido este ou aquele Ledo ou José Clemente especialmente desacreditar José Bonifácio, sugerir a conveniência que haveria em derrubá-lo, qualificar de despótico seu governo, aspirar por uma mudança radical em vez do prolongamento do passado. Tudo se cifrava pois em conversas, quando muito em propósitos, não se mencionando propriamente gestos positivos de tentativa armada contra as instituições.

A testemunha mais fidedigna e menos sujeita talvez a influência dos Andradas foi Antônio Teles da Silva, futuro marquês de Resende, fidalgo da casa de Penalva, camarista predileto e amigo dedicado de Dom Pedro. Este falou sem hesitar em conspiração tramada nos clubes secretos em que, sob a denominação de "franco-maçonaria" se reunia o "nefando partido, cujos infames membros tinham por fim a destituição do governo monárquico no Brasil, pela introdução dos princípios demagógicos e anárquicos que se contém nos estatutos das sociedades dos carbonários, radicais, comúneros e cavaleiros de liberdade, nomes da mesma seita em diferentes países, que parecendo-se com a sociedade dos pedreiros livres nas exterioridades, diferem sumamente nos fins e alvo a que tendem".

Teles da Silva era porém duplamente suspeito para o caso: em primeiro lugar, como ele próprio declarou no seu depoimento, tinha profundas queixas dos acusados, os quais haviam pretendido macular sua reputação por motivo de discordância de opiniões políticas; em segundo lugar tal discordância era irreconciliável, porque Teles da Silva aborrecia de coração O sistema constitucional, tanto que se referindo à assembléia representativa do Brasil que se ia reunir, não diz que ela teria que elaborar a lei orgânica da nação, mas sim que havia de coordenar as leis fundamentais do Estado. No seu entender eram entretanto os contrários que ignoravam o verdadeiro espírito constitucional e advogavam a adoção de princípios quiméricos "inconjugáveis com a forma de um governo monárquico e que, apresentando uma aparente perspectiva de beleza considerados teoricamente, são realmente inexeqüíveis na prática".

O mais que se apurou contra os democratas foi que se declaravam avessos a despotismos e que não queriam absolutamente ser tidos como corcundas. No fundo vê-se a intenção dos seus inimigos de irremediavelmente malquistá-los com o Imperador; insistindo em que, por ocasião da publicação dos primeiros decretos das Cortes, o pensamento dos democratas não foi resistir, nem representar em contrário, antes obedecei; organizando-se de acordo com as recomendações de Lisboa uma junta fluminense, como as havia noutras províncias, tendo esta embora o Príncipe por Presidente.

José Clemente, a figura central do Fico, teria pois apenas sido um convertido pelo "grande concurso dos leais habitantes do Rio de Janeiro, que o constituíram órgão de seus puros sentimentos" (depoimento de Teles da Silva). Também pelo que toca à aclamação imperial, a cooperação dos democratas teria sido nula desde o momento em que tal era a vontade geral das populações, manifestando-se em São Paulo, em Pernambuco, nas Alagoas e noutros pontos "restando unicamente dar aos desejos dos povos uma forma legal". Ainda assim, recordou a testemunha, em desabono dos acusados; que no conselho de Estado do dia 11 de outubro, Ledo opinara que o príncipe daria prova da sua coerência com os princípios do liberalismo que professava, deferindo o uso do título imperial para tempo posterior a instalação da Assembléia Geral e recebendo portanto dela, que era a representação nacional, a investidura da sua dignidade.

Teles da Silva e os que com ele comungavam, enchiam-se de horror, ou pelo menos assim o diziam, com a doutrina aventada no Correio do Rio de Janeiro, de que os reis eram "meros administradores do tesouro das graças e poderiam ser argüidos e até refutados réus pela nação quando se demasiassem na distribuição das graças".

Algumas testemunhas secundárias falaram em tratarem os conspiradores "de arranjar uma República" (depoimento do tenente-coronel Couto de Meneses, natural de Braga), tirando-se do Brasil o tigrezinho ou o leãozinho, porque ambas as denominações, aliás distintas na hierarquia zoológica, eram dadas a Dom Pedro. As provas porém dessa intentada mudança de regime não passavam do juramento prévio e incondicional da Constituição que fosse elaborada pela Assembléia e da retirada do ministério dos dois Andradas, a qual os liberais tanto almejavam. O padre José Cupertino de Jesus, paulista residente no Rio de Janeiro, depôs mesmo que num Jantar em casa do cônego Januário, a que assistia Lêdo, ambos estes corifeus democratas declararam "que não convinha por enquanto outro governo senão o monárquico constitucional, e que só depois de aclarado o povo poderia admitir-se o governo federativo, à imitação do da América Setentrional, atenta a nímia distância entre umas e outras províncias".

Isto é o que era o lógico e razoável, o que estava de acordo com as circunstâncias que aconselhavam de preferência a adoção de um regime monárquico, posto que assegurando por meio de garantias liberais os direitos políticos dos cidadãos e os foros soberanos da nação. É possível que Ledo tivesse de si próprio a opinião que exarava quando se gabava de que ele e José Clemente seriam capazes de revolucionar um reino uma testemunha chegou a dizer ao mundo inteiro -, mas não ficou demonstrado que ele visasse mais do que a queda dos ministros e que se abalançasse até a queda do príncipe que fora mais nas suas mãos do que um instrumento de liberdade, que fora um agente consciente dessa liberdade. Na folha democrática pelo menos, na frase da testemunha Vasconcelos Drummond, "as máximas revolucionárias apareciam com honestas cores".

A 21 de abril de 1823, declararia o imperador, ao remeter a devassa ao chanceler servindo de regedor da Casa da Suplicação, que "não queria ver a inocência oprimida, nem o Império do Brasil perturbado com facções". Era o ocaso do favor dos Andradas que se anunciava.



Prosseguira entrementes o governo imperial a cercar-se dos atributos da soberania. A 10 de novembro era o corpo diplomático estrangeiro na capital notificado da adoção da bandeira e do tope do Brasil, sem que entretanto lhe houvesse sido previamente participada oficialmente a aclamação. No mesmo dia [11] distribuía o imperador aos regimentos da guarnição do Rio de Janeiro o novo emblema da pátria independente, depois de benzido pelo bispo capelão-mor; ratificando-se, por ato de piedade religiosa, diz Melo Moraes, a provisão régia de 25 de março de 1646 pela qual Dom João IV o fundador da dinastia de Bragança, tomou Nossa Senhora da Conceição por padroeira do reino de Portugal e seus domínios.

Dom Pedro, invocando sua qualidade de generalíssimo, pronunciou nessa ocasião uma alocução vibrante, e os navios de guerra da Inglaterra e da França ancorados no porto do Rio de Janeiro, saudaram com os tiros das suas peças a bandeira imperial içada no tope de proa, ato que contudo não envolvia o reconhecimento por parte dos seus governos e não passava de uma cortesia do hóspede estrangeiro para com o único pavilhão nacional desfraldado.

Os democratas, segundo o depoimento do capitão-mor José Joaquim da Rocha, "queriam pôr em Dom Pedro a coroa, cingir-lhe a espada imperial, revesti-lo de todas as exterioridades magníficas, porque reverte para a nação tudo quanto se lhe dá" e ele não passava a seu ver do mandatário executivo da mesma, à qual cabia até, por meio dos seus representantes, conceder as recompensas em vez do imperador; a quem os serviços públicos eram prestados como ao chefe do Estado e não a título pessoal. Por isso a opinião democrática não aprovou a criação da Ordem de Cavalaria do Cruzeiro, simultânea da coroação, bem como o início da formação de uma classe aristocrática pela concessão do título de barão da Torre de Garcia d'Ávila.

A coroação teve lugar a 1.º de dezembro, aniversário da restauração portuguesa do senhorio da Espanha associada com a Casa de Bragança, e foi um misto do cerimonial usado na sagração de Napoleão em Notre Dame e dos imperadores da Áustria em Frankfort, combinação portanto de tradicionalismo e de modernismo revivido dos romanos. Imitou-se também um pormenor da coroação dos reis da Hungria, consistindo em fender o ar com o gládio, alusão nacional ao título de Dom Pedro de defensor perpétuo do Brasil, sua primeira investidura popular tornada hereditária na sua família, o que a despojava do primitivo caráter democrático se é que a não queriam mesmo converter, no dizer de Mareschal [12], numa arma contra a democracia.

O Imperador apareceu vestido de uma túnica de seda verde golpeada, calçado de botas de montaria com esporas e ostentando um manto de veludo verde forrado de cetim amarelo, bordado de estrelas e com uma guarnição de ouro. Não se julgando que a nota nacional fosse suficientemente fornecida pelos diamantes mineiros da coroa e no intuito de remontar até a nota indígena pela exibição da arte plumária dos aborígenes, ajuntou-se a indumentária imperial uma romeira de papos de tucano.

A cerimônia dividiu-se entre o Paço da Cidade, com as salas forradas de verde e ouro, e a capela imperial, ligada àquele por uma galeria adornada e alcatifada por onde o povo viu desfilar a corte - à frente os arqueiros com suas alabardas, logo os músicos com seus tímbales e charamelas, depois o rei de armas, arauto e passavante, em seguida procuradores gerais das províncias carregando as insígnias imperiais, moços fidalgos fazendo sua aprendizagem, dignitários novos de velhos cargos, como o de condestável, preenchido pelo conde da Palma. Atrás do pálio, sob cujo docel caminhava o soberano e cujas varas eram sustentadas por outros procuradores das províncias, como que a afirmarem a coesão nacional operada pelo império, marchava o senado da câmara, rematando o préstito nova guarda de arqueiros.

Após o ritual eclesiástico, precedido de um sermão de frei Sampaio, que tomou por tema a unção de Salomão, e concluído pelo Te Deum das solenidades festivas, volveu o cortejo ao Paço, onde o Imperador, sentado no trono, firmou o juramento pronunciado sobre o evangelho, ao pé do altar, e depois repetido ao povo, de uma das varandas, como sendo o cumprimento do que ele prometera. Esse juramento era de zelar a religião católica apostólica romana, sustentar e defender os direitos da nação, manter e observar a constituição que a Assembléia Legislativa elaborasse, contanto que ela fosse digna dele e do Brasil.

Ao efetuar-se a coroação que no dizer de Mareschal despertou vivo entusiasmo, já se tinha recebido a notícia do êxito do combate de Pirajá travado a 8 de novembro e que constituiu uma vitória das armas brasileiras sobre as portuguesas na terra baiana. O pavilhão imperial já tremulava portanto aos olhos dos brasileiros, nesse instante, aureolado de glória militar, se bem que algumas nuvens maculassem o azul do céu da independência, que todavia ainda se não enfarruscara.

O imperador recebera a unção sagrada que o fazia aos olhos dos monarcas europeus soberano legítimo e aos seus próprios olhos e do seu povo plus que roi: para que florescesse verdadeiramente um império, faltavam porém as condições necessárias. Sobre que fundamentos havia de descansar um regime de essência monárquica posto que constitucional, onde não existiam uma nobreza privilegiada, um exército disciplinado e um clero sectário do direito divino dos reis? O clero brasileiro era das classes nacionais a mais liberal; o exército só se conseguia reforçar com mercenários; a nobreza não se trazia do berço, antes se conquistava no decorrer da existência, deixando de formar uma casta para significar uma distinção individual. O Império foi pois de fato desde o seu início uma democracia coroada, em que o executivo começou por prevalecer e o legislativo acabou por predominar.

Notas

[editar]
  1. Ofício de 19 de outubro
  2. Ofício de 4 de novembro.
  3. A expressão é de José Clemente no discurso pronunciado a 12 de outubro.
  4. Brasil-Reino, Brasil-Império.
  5. N.º 132 de 2 de novembro de 1822.
  6. Oficio de 4 de novembro.
  7. Ofício de 22 de novembro.
  8. Ofício de 22 de novembro.
  9. Processo no Brasil-Histórico de Melo Moraes, 1867.
  10. "E como convinha iludir o povo com as aparências das formalidades da lei, mandou-se proceder a uma devassa, não para conhecer se o crime existia, que este se deu por existente. nem para descobrir os conspiradores, que estes se deram por convencidos, nem finalmente para os punir, porque a pena lhes foi imposta e executada antes da culpa pronunciada, mas somente para iludir, ou antes para tapar a boca aqueles que falavam nas formalidades da lei."
  11. Melo Moraes dá a data de 12 para a expedição aos agentes diplomáticos e consulares do decreto de 18 de setembro. Mareschal porém especifica a data de 10.
  12. Ofício de 3 de dezembro.