O Pão de Ouro/Capítulo VI

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Quando Gaspar acordou, as trevas, que reinavam na caverna, já não eram tão espessas, um fraco crepúsculo, que parecia entrar por uma abertura no alto da abóbada, permitia avistar-se mais claramente e à alguma distância, como em uma noite não muito escura, mas sem estrelas nem luar. Era o dia, que surgira, não para aquele inferno de perpétuas trevas, mas para o mundo exterior. Todavia a alma de Gaspar expandiu-se algum tanto com aquele escasso clarão, que sempre lhe permitia lobregar alguma coisa entorno de si: rezou a Nossa Senhora dos Aflitos, e esperou.

Os tatus brancos afugentados pela luz do sol, que não podiam suportar, começaram a recolher-se de tropel a seu covil. Depois de terem roído esfaimadamente os restos dos ossos do defunto esquartejado essa noite, e de terem devorado mais algumas alimárias e frutos trazidos do campo, estenderam-se no chão pelos cantos da caverna empilhados uns sobre os outros e começaram a roncar como porcos em ceva. Com o surgir do sol começava para eles a noite; tinham ceado; era bom, que agora dormissem. Só dois vultos ficaram em pé de vigia a Gaspar, e para se não deixarem furtar do sono, roíam ossos, brincavam e tagarelavam. Meia hora depois apareceu a salvática[1] amante de Gaspar; a um aceno dela os dois vigias se retiraram e sumiram-se nas trevas da espelunca.

Os amores de Kora a heroína, da gentil Paraguaçu, de Atalá e da meiga Celuta, e de todas essas formosas filhas das florestas nada tem de comparável com a paixão, que o jovem paulista mesmo do meio da mais espessa escuridão e sem se fadarem, soube inspirar à aquela misteriosa princesa das trevas. Somente não se podia dizer se era bela ou não; porém em compensação, podia-se dizer com literal exatidão e não por hipérbole como é manha de todos os poetas e romancistas, que ela era alva como jaspe, como neve, ou como casca de ovo.

Romeu ao avistar Julieta no topo da escada furtiva do palácio dos Montecchi não sentiu tão violento abalo, seu coração não palpitou com tanta ânsia, como o de Gaspar ao ver encaminhar-se para ele no meio das sombras da caverna, anhelante e com os braços abertos aquele anjo das trevas alvo como ossada sem sepultura. Oh! que sim; mas o sentimento de um, era de prazer e de amor; e o do outro, era de asco e de horror.

Todavia Gaspar resolvido a aproveitar-se do amor da selvagem para procurar um meio de escapar daquele sepulcro infecto em que estava condenado a viver, tratou de apresentar-lhe a melhor cara possível, e entregou-se com toda a complacência a seus estranhos carinhos, e os retribuiu com a amabilidade, que pôde. A liberdade e a luz do céu, de que se achava privado, valiam bem aquele penoso sacrifício.

A ninfa mostrou-se contentíssima, trouxe-lhe frutos, dançou em roda dele, dando gritinhos de prazer e retirou-se. Durante o dia apareceu ainda duas ou três vezes. Quando veio a noite, saiu com seus companheiros, mas ficaram de vigia ao prisioneiro seis ou oito guardas.

Oito dias passou Gaspar naquele estranho e tristíssimo modo de vida, ganhando tempo e contando com impaciência os dias e as horas. Durante esse tempo esmerou-se em tornar-se o mais agradável possível à sua amante, e procurou ganhar-lhe a confiança, mostrando-se satisfeitíssimo com a sua nova sorte, e cada vez mais submisso e amoroso. No fim desse prazo abalançou-se a expressar à sua amante por meio de gestos e sinais o desejo, que tinha de também sair à noite com ela, somente para vê-la sempre ao pé de si, e não ficar por tanto tempo privado de sua companhia; pintou-lhe com mímicas expressivas o seu extremoso amor, e do melhor modo que pôde, deu-lhe a entender que nunca por motivo nenhum a abandonaria, e que o seu maior gosto seria viver e morrer junto dela. A índia a princípio pareceu hesitar, e ficou pensativa por alguns instantes; mas por fim deu-lhe a entender que sua súplica seria atendida, e que na seguinte noite lhe seria permitido sair com ela.

De feito assim aconteceu; na seguinte noite Gaspar experimentou o indizível prazer de ver a luz límpida de um céu estrelado, e de respirar a longos tragos o ambiente puro e perfumado daquelas deliciosas solidões, depois de ter jazido por mais de oito dias na escuridão profunda de uma espelunca infecta e asquerosa. Aquela noite límpida e estrelada, posto que sem luar, pareceu-lhe um dia esplêndido, e quase que seus olhos estranharam aquela luz serena, tão afeitos estavam já com as trevas. Em face daquele espetáculo, seus pulmões se encheram de ar vivificante, seu coração se dilatou, e alentou-se de novas esperanças.

Entretanto Gaspar era vigiado de perto por sua amante, que o não deixava um só momento, e por um grupo, que de certo por ordem dela os acompanhava sempre em certa distância. Também Gaspar era matreiro, e não seria tão desasado, que arriscasse logo uma fuga sem probabilidade alguma de sucesso. Ele bem sabia que aquela gente tinha à noite uma espantosa penetração de vista, e o faro e a velocidade dos melhores cães de caça. Portanto foi ele o primeiro, que pressuroso convidou sua companheira a recolher-se à caverna, logo que pressentiu a aproximação do dia.

Assim volveram-se mais alguns dias a Gaspar, o qual para entreter-se e encurtar o tempo, passava-o a observar os estranhos costumes daquela gente, que quase se não distinguia dos brutos, e os trabalhos, em que empregavam suas noites. Apenas saíam das furnas, derramavam-se em grupos pela campanha. Uns internavam-se pelos matos farejando a caça, que perseguiam com incrível celeridade através das mais emaranhadas brenhas, dando uivos e ganidos como uma verdadeira matilha de cães. Outros com a agilidade do quati andavam trepando pelas árvores para colher frutos, ou para surpreender os pássaros e roubar-lhes os ninhos.

Outros percorrendo os campos davam caça às perdizes e codornizes, que colhiam de surpresa em seus escondrijos, ou esfuracavam o chão com as unhas já para arrancar os tatus de seus buracos, já para roubarem o mel às abelhas do chão. Outros esgravatando as fendas dos rochedos andavam a cata de lagartos, cobras, sapos, lagartixas e outros répteis e insetos, que tudo lhes servia de alimento. Assim passavam as noites a caçar o alimento só para aquele dia, pois toda caça, que apanhavam quase sempre a escorchavam e devoravam no mesmo instante e no mesmo lugar a maneira dos lobos e panteras.

Durante esse tempo Gaspar em suas sortidas noturnas procurou portar-se por tal modo, que desvanecesse toda e qualquer desconfiança, que a índia pudesse nutrir ainda a seu respeito. Assim já ela ousava afastar-se a sós com ele para longe dos outros grupos, e deixava-se ir sem susto para aonde Gaspar a queria conduzir sem serem espionados por ninguém. Nessas ocasiões, se Gaspar o quisesse, poderia tê-la agarrado e sufocado com as mãos, e escapar para sempre à sua triste escravidão. Mas repugnava à sua consciência e doía ao seu coração nobre e generoso matar tão cruelmente aquela que, fosse porque fosse, tinha sido a salvaguarda de sua existência, e embora sem o querer e sem o saber, lhe proporcionava meios de escapar daquele horrível e abominável cativeiro. Demais a empresa não era isenta de perigo; um grito só, que ela soltasse, podia ser ouvido dos seus, e tudo estava perdido; mesmo poderiam dar falta dela, a tempo que aqueles insignes galgos pudessem ir-lhe no encalço e apanhá-lo. Um meio somente lhe ocorria de libertar-se com segurança e sem fazer grande mal à sua libertadora; para levá-lo a efeito só esperava um ensejo favorável. Este enfim se apresentou.

A noite já ia bastantemente avançada; os tatus brancos fatigados de suas correrias por campos e brenhas, avizinhavam-se pouco e pouco para seus covis. A índia e Gaspar algum tanto afastados dos outros, marchavam pela orla, de um capão ao longo de um delicioso vargado. Súbito um lindo e veloz animalzinho saltou diante deles, e desapareceu pelo mato. A índia salta após ele pela brenha a dentro; Gaspar a acompanha. Veloz como o gamo ela corre através das balsas emaranhadas; Gaspar a custo a pode seguir de longe; mas ela o chama e espera. Tendo faro de cão como todos de sua raça vai descobrir de novo o bichinho na moita, a que se acolhera. Ei-lo que salta outra vez, e a índia que de novo o persegue pressurosa através das brenhas. Assim se foram pouco e pouco alongando e se entranhando pelo bosque, e a pobre e descuidosa filha da noite nem se lembrava quão longe andava já dos seus. Voltaram sobre seus passos até chegarem ao campo, donde tinham partido. A índia trazia nas mãos o animalejo; mas a coitada quase não podia suster-se de fadiga; Gaspar também a custo podia andar. Ambos sentaram-se oprimidos de cansaço. Gaspar fez que ela reclinasse a cabeça sobre seus joelhos. Ela a princípio relutou, e apontou para o oriente dando a entender o receio, que tinha do que o dia os surpreendesse ali. Gaspar expressou-lhe, que ele não dormiria, e que ainda mesmo que o dia os apanhasse, ele a carregaria nos ombros para o seio de sua caverna. Tranquilizou-se a índia, e daí a instantes adormeceu profundamente sobre os joelhos de Gaspar.

Mais uma hora, e o dia ia luzir. Uma hora só de sono para a pobre indiana, e o sol da vida e da liberdade ia surgir para Gaspar! Imagine-se com que sofreguidão e impaciência ele contava os minutos e os instantes, com que ansiedade voltava de contínuo os olhos para o oriente, com que tremor de coração aplicava o ouvido à escuta de alguma voz, de algum rumor, que indicasse a presença dos tatus brancos. Mas o que ninguém pode imaginar é a viva alegria com que saudou os primeiros clarões dessa aurora, que vinha arrancá-lo de um túmulo e restitui-lo à luz, à vida e à liberdade! O prazer indizível, que experimentou quando olhando em roda de si, se viu a sós com a índia no meio daquela imensa solidão. Estava salvo!

Quem os visse ali, — aquele par solitário em meio daqueles risonhos e fecundos ermos, ela suavemente adormecida nos joelhos dele, ele embevecido no espetáculo da natureza, que em torno se lhe despertava entre esplêndidas galas e rumores harmoniosos, — quem os visse ali, julgaria ver aos fulgores da primeira aurora outro Adão e outra Eva no seio de um novo Paraíso.

Somente em dois pontos se acharia diferença; um é que a Eva do Gênesis não seria por certo tão alva como esta; outro é, que o novo Adão trazia sempre uns calções esfarrapados e os restos de uma capa.

Talvez se pense, que Gaspar poderia escapar deixando a índia adormecida, sem que lhe fosse mister esperar pelo alvorecer do dia. Engano; Gaspar era assaz precavido para compreender, que ela poderia acordar bem depressa, gritar pelos seus, e tudo estaria perdido para sempre. Não assim de dia, porque a luz do sol aqueles desgraçados nada enxergavam, e mal podiam dar um passo sem tropeçar e cair.

Quando o sol dardejou seus primeiros raios, Gaspar depositou cuidadosamente sobre a relva a cabeça da índia adormecida; contemplou pela primeira vez à luz do dia aquele corpo, que não era mal feito, porém de alvura tão excessiva, que fazia repugnância; os cabelos eram finos, corredios e de um louro quase branco; o rosto era irregular, mas não inteiramente destituído de graça; porém as unhas curvas e compridas, e os dentes aguçados, que se viam por entre os lábios entre abertos, davam-lhe um ar feroz e repulsivo. Gaspar depois de ter lançado um último olhar de comiseração sobre aquela infeliz selvagem, pôs-se a fugir a bom andar para longe daqueles sítios fatais.

Mal tinha dado uma centena de passos, Gaspar ouviu gritos atrás de si; assustado voltou o rosto. A mísera talvez pelo contato da relva fria na cabeça, tinha acordado, e em pé voltando-se para todos os lados com os braços estendidos dava gritos lastimosos, e estorcia-se um uma indizível aflição. Dava alguns passos vacilantes com as mãos estendidas como quem apalpa nas trevas, e logo caía e se estrebuchava no chão arrancando os cabelos em desespero. Gaspar teve pena dela, e quem deixaria de tê-la! Um sentimento de dó e também de gratidão por aquela infeliz criatura, que fora o instrumento de sua salvação, deteve por alguns momentos as plantas do paulista naquele solo fatal; teve dó da mísera e de todas de sua raça, fadada a tão abjeta e monstruosa condição.

Salvo das garras dos tatus brancos e daquele ignóbil e misérrimo cativeiro, que tinha Gaspar diante de si?… O deserto profundo, incomensurável, mil novos trabalhos e obstáculos a superar, mil novas fadigas e azares a afrontar! Mas antes isso, do que ser condenado a viver nas trevas entre aqueles monstros, último rebutalho da natureza humana! Antes morrer vendo o céu, a luz, a natureza, do que viver sepultado na perpétua escuridão daquelas horríveis espeluncas.

Não é nosso propósito, e nem poderíamos referir todos os riscos, fadigas, privações e trabalhos, por que teve de passar o nosso herói atravessando sozinho e sem outro recurso mais que a sua audácia, astúcia e robustez, aqueles vastíssimos e inóspitos sertões até chegar à sua pátria. O certo é que o intrépido aventureiro chegou são e salvo a S. Paulo de Piratininga, onde contou a seus patrícios pasmos e boquiabertos as estranhas aventuras, que acabamos de relatar. Não podemos garantir a veracidade delas, mas asseguramos que não é invenção nossa, pois ouvimos essa tradição de pessoa mui sensata e autorizada, e que tinha boas razões para dar-lhe inteiro crédito.

Fundados na relação de Gaspar, e dirigindo-se por suas indicações, muitas outras bandeiras de paulistas partiram em diversos tempos para aquelas remotas regiões em demanda daquele novo jardim das Hespérides. Exploraram muitos países desconhecidos, descobriram riquíssimas minas de ouro e diamantes, muitos rios caudalosos e vales de riqueza e fertilidade espantosa; mas o verdadeiro vale do Pão de Ouro, esse nunca, nunca mais foi encontrado.

É que de certo a fada mãe do ouro tinha então estabelecido ali os seus palácios e jardins encantados, e lhes pusera por guardas aqueles monstros alvos de figura humana. Vendo porém, que mesmo assim eram descobertos e violados os seus tesouros, assentou do transferi-los para outros sítios em sertões mais profundos e remotos.

FIM

  1. Seria acaso "selvática"?